São João de fogo morto…

É São João, das mais alegres festas nordestinas. Permite a participação plena de todos por nada exigir, apenas equiparar-se ao matuto, ou seja, apresentar-se de forma simples e bonita. A Festa mudou muito. Não cabe arguir se para melhor ou não; mas, difícil não recordar os folguedos, ainda mais nas cidades do interior nordestino. Como esquecer o pipocar dos fogos iluminando a noite e o fumaceiro cobrindo a cidade?
Famílias inteiras chegavam de Salvador, São Paulo e outros lugares distantes para festejar, como recomendava a música: “Vamos, vamos Joana, vamos na carreira, vamos pra fogueira festejar o São João…”.
Meninos trocavam os tostões por qualquer enfeite da festa. Mais tarde, receberiam dos pais alguns fogos para iluminar a noite, quantidade e qualidade proporcional às condições da família. Dinheiro era difícil. Eu costumava receber uma caixa de fósforos “elétricos” coloridos, chuvinha prateada e alguns traques, pequenas bombas no formato de palito, com recomendação de “muito cuidado pra não se queimar”. Os meninos misturavam-se na rua e produziam uma festa de pipocos e fumaça. Os mais velhos tocavam traques na mão, virando o rosto, e até colocavam bombas sob latas e penicos que voavam aos ares sob o impacto da explosão. Infelizmente, acidentes aconteciam, não raramente com gravidade.
Após, arribávamos em busca das fogueiras, símbolo maior do São João de antigamente. Quem não conhece a música “a fogueira está queimando em homenagem a São João”?
Em Remanso, minha terra, queimavam muitas fogueiras. A mais famosa era a de Zé Clementino, animada pela família e parentes da capital. Um festão! Comida e bebida farta animada por sanfonas, zabumbas e saxofones, todos esperando o momento da queima da fogueira.
Logo, as labaredas lambiam o tronco da árvore trazida de longe e enterrada em frente à casa. As pessoas ávidas para avançar as prendas amarradas aos galhos e desejando a “caixinha de segredo”, pequena embalagem recheada de dinheiro, sempre no galho mais alto. Era o sonho de todos. A pressão era tanta que muitas vezes não esperavam a fogueira queimar; era derrubada “crua” mesmo, como se falava. Os acostumados vestiam várias roupas molhadas para proteger do fogo e dos busca-pés, faziam carreira e tentavam derrubam a fogueira. Nem sempre conseguiam.
Quando a grande árvore corroída pelo fogo sinalizava cair, todos se preparavam, inclusive os tocadores de busca-pés, cuja função era afugentar os mais afoitos.
Logo, o fogaréu consumia o tronco e a fogueira arriava. Palmas, gritaria, foguetes e busca-pés! O povo disputava no braço as prendas nos galhos: sabonete, loção, macarrão, bolacha, cachaça e, principalmente, a caixinha do segredo. Os busca-pés faziam a festa, a fumaça turvava a noite, o povo gritava, caia, levantava e corria das fagulhas do bicho!
Aos poucos, a fogueira virava cinzas e morria. O local adquiria perfil esfumaçado de guerra, mas, para felicidade geral, entre os feridos todos se salvavam. E começava o forrozão temperado com muita fumaça e licor. Viva São João! Fogos dos mais diferentes cortavam os céus. Como tudo era novidade, os meninos diziam:
— Desse eu nunca tinha visto!
E hoje? O São João perdeu o perfil rural. Urbanizou-se. Foi ficando distante até esvanecer-se por trás do caminho e da vida de cada um. Virou fogo morto. Cinzas, como as fogueiras que animavam as noites frias do dia 23 de junho. Tudo tem seu tempo. É como diz o povo: Águas que vão não voltam…
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*Astrogildo Miag é Escritor. Autor de: A Santa do Pau Oco, O Purgatório de Eduardo, Memórias de um Coroinha, Era uma vez um comunista, O legado da loucura, Lampião, governador de Brasília e O homem que morreu cinco vezes.
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