Vivia pelas ruas, de porta em porta; bate e espera. Se não aparecer alguém e estando aberta a porta, entra sem permissão, não sabendo estar cometendo crime de violação de domicílio, tipificado no Código Penal. Quando alguém o atende e pergunta-lhe o que quer, a resposta é automática: “Um dinheiro pra comprar pão, pois estou com fome e não comi nada hoje”. Ante a negativa, declina o verdadeiro objetivo da abordagem:
— Então deixa eu usar o sanitário.
Muitos o deixavam entrar, com pena. Afinal, apertado, na rua, sem lugar adequado, pedir para usar o sanitário (a privada ou a sentina, nomes antigos) é como implorar um copo d’água. Quem haveria de negar água, ainda mais a um senhor de certa idade? Pois, a pessoa de boa fé que fizesse a caridade sofreria as consequências. O dito cujo se trancava no banheiro e não se propunha sair durante todo o dia. Após tentativas infrutíferas, geralmente deliberavam arrombar a porta do reservado e grande era a surpresa: o homem dormia sentado no vaso sanitário. Dormir sentado no vaso era um transtorno obsessivo. Como era pobre e naquele tempo pobre não tinha direito a sanitário privativo em casa, a chamada privada, o homem saía em peregrinação por um momento de descanso.
Ficou conhecido. Quando apontava na rua, gritavam: “Lá vem o homem do sanitário. Fecha a porta!”. Logo, a voz suplicante anunciava… Ô de casa! Uma caridade por amor de Deus… Quem é, perguntavam. Um pobre largado da vida, e com três filhos pra criar, lamuriava-se. A dona de casa abre a porta. Pois não, senhor…
— Uma caridade. Nem que seja um pedaço de pão.
— Acabou.
— …de beiju.
— Acabou também.
— Um ovo.
— A galinha não pôs ainda.
— Então me dê um copo de água.
Como negar o copo com água? A mulher entrou em busca da água; o homem escorregou pelo corredor lateral direto ao sanitário. Entrou e fechou a porta. Ao sentar, murmurou… “Meu Deus, já estava cansado. Dois dias sem dormir…”.
A mulher retornou com a água, desculpando-se…
— Não está muito fria, não. Enchi o pote agora. — Olhou em volta. — Onde esse homem se meteu? Parece que arribou no mundo? Ei, tome a água!
Nem sinal do sedento e tudo volta ao normal. Volta ao trabalho, precisava terminar a costura de uma camisa. O tempo passa. Quase meio dia. A filha retorna da escola. Depois de toda a manhã no colégio, banheiros de uso coletivo e nem sempre em boas condições de higiene, precisava ir ao sanitário. Encontra a porta fechada. Empurra. Fechada mesmo. Volta. Muda a roupa, recolhe a farda ao guarda-roupa. Volta ao sanitário, empurra a porta. Continua fechada. Pergunta…
— Mãe, tem alguém no sanitário?
— Ninguém.
— A porta está trancada por dentro.
— Deve ter sido o vento; empurre com força.
— Mais força, só se derrubar. Por dentro fecha com ferrolho? Vento nenhum sabe trancar ferrolho. Não entrou ninguém aqui?
A mãe para, mira o telhado para se lembrar…
— Por aquela porta não entrou ninguém. Só um homem me pediu água. Vim buscar a água, mas não o encontrei mais.
A filha arregalou os olhos: — Mãe, era ele! O homem!
— Era homem mesmo, ora.
— Era o homem do sanitário!
— Não é possível!
Correram ao sanitário e bateram na porta: — Tem gente aí? — Sem resposta. O homem certamente dormia o segundo sono. Gritaram por socorro. A vizinhança atendeu: O que foi? O homem do sanitário! Se trancou aqui em casa.
— Vou chamar alguém pra arrombar a porta.
— Não vou deixar ninguém arrombar minha porta!
O drama continuou por um bom tempo. Ninguém tirava a razão da dona da casa, fechadura naquele tempo custava os olhos da cara. Mesmo só o ferrolho ainda sairia caro, pois, de tão careiro, o marceneiro quase metia a mão no bolso dos clientes.
O delegado é chamado a intervir. Visivelmente contrariado, desceu do veículo, armado e paramentado, acompanhado pelos dois soldados do destacamento policial.
— Só faltava essa! Com tanto bandido matando e assaltando a força policial foi chamada para arrombar porta de sanitário! Que lugar mais atrasado!
Com raiva, meteu o pé na porta, continuadamente, prestes a dilacerar a madeira. A dona da casa pedia calma:
— Devagar, delegado. Não precisa quebrar a porta toda, basta no lugar do ferrolho.
O delegado disse não admitir que paisano se intrometesse nas atividades policiais. Buscou adjutório dos dois soldados e colocaram a porta abaixo. Porta no chão, o mesmo espetáculo: o homem, sentado, traseiro tomando todo o assento do vaso, dormia e roncava indiferente ao barulho e aos passos destemidos da tropa militar.
— Levanta daí! Sanitário não é lugar pra dormir! Ainda mais na casa dos outros! Vai preso agora!
O coitado despertou do torpor. Abriu os olhos devagar… Assustou-se! Levantou-se agitado, já com as roupas nas mãos.
— Valei meu pai eterno! Que lugar é esse que não se consegue nem cochilar? Desse jeito vou morrer. Quem pode viver sem dormir? Já perdi a conta dos dias que não durmo! Agora que consegui um pouquinho vem esse povo todo como se eu fosse um criminoso!
— Você vai é preso! — tornava o delegado.
— Preso posso até ir, mas só depois que terminar meu cochilo. Agora, de jeito nenhum. Prefiro morrer!
O delegado enrijeceu os beiços, mordeu a língua de tanta raiva…
— Se estivesse sozinho você ia de qualquer jeito. Imagine estando com a força policial!
O homem não aceitava ordem nem ponderação. Só iria depois de saciar o sono. Os policiais nervosos. A dona da casa sem saber se livrava a casa do indesejado ou rogava pela vida do coitado. A filha, só de anágua e sutiã, aos berros, correu à rua afirmando não voltar para sentar no mesmo vaso usado pelo homem do sanitário. Fora, frente da casa, o povo aguardava o desfecho da agonia.
— Pega! Tira! Mata!
Os gritos determinaram o libelo. O delegado ordenou que segurassem os braços e as pernas do coitado. Seria retirado à força, sob pena de desmoralizar a polícia. Arrastaram no rumo da porta sob protesto de “não vou, não vou”. Vai, vai! — delirava a autoridade enquanto arrastavam o homem. De repente, no meio da contenda, um barulho seco, fogo de artifício ou de bala. Na rua, as pessoas esperaram a confirmação da suspeita. O corpo do homem amoleceu, perdeu as forças. O delegado viu a arma do soldado Araújo fora do coldre, no chão…
— Você matou o homem! Você matou o homem!
Araújo defendeu-se: — Eu não, delegado! Juro que não fui eu! Ele pegou a arma na minha cintura e puxou o gatilho. Juro que não fui eu!
— Foi você, sim! A responsabilidade é sua, não teve o devido cuidado com a arma que o Estado passou para as suas mãos.
— Mas não tive intenção, delegado! Não fui eu que puxei o gatilho!
— Vai ter que provar, todo mundo está vendo que a arma é sua! O tiro pegou bem na testa e a arma é sua!
— Mas, delegado…
— Nem mais nem menos. Em nome da segurança pública, em nome do Estado, está preso!
Ao soldado não restou alternativa senão oferecer os pulsos às algemas. Logo, saíam os dois policiais arrastando o corpo pelos braços, acompanhados pelo cabisbaixo Araújo, que enfrentaria a temida justiça militar em plena ditadura. Acabou. Ouve-se um plim-plim e a televisão anuncia a nova programação. Assusto-me. Uma voz chama:
— Nildo, Nildo… Está melhor? Foi ao banheiro? Conseguiu fazer?
Desnorteado, confuso, não entendi… Como? Como? E o homem do sanitário?
— Homem do sanitário? Você está sonhando? Quem deve ir ao sanitário é você mesmo, há três dias sem conseguir botar pra fora!…
Envergonhado, bati a mão espalmada no ventre ainda fofo, constipação intestinal que me acomete quando me excedo na bebida e na comida. Certamente, adormeci. Não fui ao banheiro nem terminei de assistir ao filme policial da programação da televisão, onde a polícia, no final, capturava e matava alguém — na minha percepção inconsciente, o homem do sanitário. Pior é que este homem era eu mesmo, precisando ir ao banheiro e morto de sono em decorrência da agonia intestinal.
Foi minha segunda morte. É sonhar demais…