Os olhos de peixe do menino Haroldo

Por Astrogildo Miag*

Era uma vez um menino chamado Haroldo, que morava com a família em pequena cidade na beira do Rio São Francisco. Gostava muito de cabeça de peixe; a avó chamava sua atenção:
— Cuidado pra não engasgar, tem muita espinha!
Degustava devagar para não perder as duas bolinhas brancas dos olhos do peixe, que guardava em um frasco transparente.
No café daquele dia Haroldo saciou-se com cabeça de Curimatá, peixe muito apreciado pelos beiradeiros do São Francisco. Retirou as bolinhas brancas, limpou bem e separou para guardar. A mãe reprovou:
— Menino danado, já lhe disse pra não guardar o que não presta. Onde já se viu guardar olho de peixe?
Haroldo viu-se obrigado a jogar sua relíquia no lixo. Após, arrumou-se e partiu à escola da professora Florinda.

À noite, feito o dever de casa escoltado pela mãe, recolheu-se ao quarto. Dormiu e sonhou estar em tempo e lugar desconhecido, onde rico era quem tivesse olhos dos peixes extintos do Rio São Francisco. E a forma de trazê-los era cercar um pedaço do rio e plantar olhos de peixe. Em trinta dias os cardumes se multiplicariam até povoar novamente as águas. Feliz quem pudesse plantar peixes!

Manhã cedo, Haroldo levantou-se inquieto e foi conferir o frasco onde guardava os olhos de peixes. Não encontrando, danou-se a chorar perguntando quem o pegara. Que frasco, perguntou a mãe.
— Meu frasco com olho de peixe — respondeu chorando.
— Quer dizer que você guardava mais porcaria?
O menino disse que não era porcaria, eram limpos e sabia até de que peixes eram! Mas,não adiantou choro, o frasco fora mesmo ao lixo e nada podia ser feito.
Tão chateado ficou que, à noite, sonhou estar em lugar encantado e tão longe que ninguém sabia onde era.
A riqueza era olho de peixe, que valia muito mais que ouro.

Acordou assustado. A avó perguntou-lhe o que era. Respondeu chorando: — Não tenho mais meu vidro com olho de peixe, que vale muito dinheiro. E agora, vovó?
Carinhosamente a avó respondeu-lhe:
— Não se preocupe, meu neto. Você gosta de guardar olho de peixe e de estudar. Os olhos de peixes que juntou com muito cuidado, perderam-se. Então estude, estude muito! Se olho de peixe tem valor, estudar tem mais valor ainda. Estude pra ser um homem de bem!
Haroldo foi abraçado carinhosamente pela avó.
Naquele momento prometeu a si mesmo estudar mais ainda para, quando crescesse, ajudar as pessoas a juntar os olhos de peixes necessários para seguir com segurança as estradas da vida.
Muitos anos depois, Haroldo teve a felicidade de reproduzir a história aos netos, que lhe perguntaram o que era mesmo olhos de peixes, Respondeu-lhes:
— Olhos de peixes é o trabalho, estudos e conhecimentos que se vai acumulando; cada dia guarda-se um pouco, até que se transformam em sabedoria e ferramenta de vida. Muitos não lhes dão importância, mas, não deixem de guardá-los no transcorrer da caminhada…
……………………….
*Escritor, autor de A santa do pau oco, O purgatório de Eduardo, Memórias de um coroinha, Era uma vez um comunista, O legado da loucura, Lampião, governador de Brasília, O homem que morreu cinco vezes, O legado da loucura e Em Brasília zero hora. 

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O voto é a força do povo

Seria o último comício antes das eleições se a campanha eleitoral não tivesse o prazo alongado por conta da seca. O povo não entendeu a decisão do juiz e perguntava o que tinha a ver o “c…” com as calças. O candidato da oposição, tido como “já eleito”, insatisfeito, dizia que o juiz estendera a campanha pra dar tempo de recuperação à candidatura do prefeito. O juiz nem tomava conhecimento; o dia todo no fórum.A campanha seria finalizada em comícios no interior do município. O candidato Zé Marcelino, da oposição, escolheu como local o povoado Riacho, curral eleitoral da família Loura. Para receber os eleitores e prestigiar o candidato, Manuel da Loura mandou matar três bois. O juiz, informado pelo secretário do prefeito, despachou servidores da justiça para confiscar os bois. Na estrada, Zé Valter, um dos servidores, matutava a forma de cumprir a ordem…— Mandar é fácil, queria ver ele juiz prender esses bois. E se os bichos já estiverem mortos? O povo passando fome e não ter direito a um pedaço de carne de boi? Dia de eleição sempre foi dia de fartura!O outro servidor da justiça, Antonio Castelo, tentou explicar que agora só a justiça eleitoral podia dar comida no dia da votação. Quem retrucou foi Zé Bichim, que acompanhava o grupo como segurança… — O povo só devia votar de pança cheia! Juiz nenhum tem condição de dar comida a tanta gente. Onde já se viu? Eleição sempre foi muita festa e fartura, agora querem acabar? Quem vai perder é o candidato do prefeito que aceitou esse tipo de coisa. Já perdeu meu voto…Ao chegar ao Riacho a comitiva viu a frente da casa enfeitada com bandeirolas. Recebidos pelo dono da casa, leram a ordem judicial que mandava confiscar os bois. Manuel da Loura não acatou, inclusive os bois já estavam retalhados na salmoura. A seção eleitoral era na fazenda dele e matar boi no dia da eleição era tradição de família e não ia deixar o povo votar e voltar sem comer um pedaço de carne assada!Antonio Castelo não teve como negar o direito ao fazendeiro. Tentou negociar sugerindo que não fosse distribuída bebida. O fazendeiro acatou:— É melhor mesmo. A comida não posso negar; a carne já está na salmoura só esperando o fogo amanhã cedo. Então, diga ao doutor juiz que a ordem dele chegou um pouco atrasada.Antonio Castelo lembrou ao Manuel da Loura que desobedecer ordem judicial era cadeia certa. Quem tomou as dores foi Zé Bichim:— Ordem judicial não tem nada a ver com dar comida ao povo. Ordem judicial é pra não ter roubo, não ter compra de voto. Todo mundo que vem votar come e bebe. Se esse povão chegar e não tiver comida, você se responsabiliza? Voltaram sem cumprir a ordem. Informado, o juiz ainda pediu reforços ao exército, sem êxito. Foi aconselhado a deixar o trem correr. E assim foi feito.Como era tradição, o último comício foi um festão. Abraçados, os eleitores juraram votar em Zé Marcelino pra derrubar o prefeito ladrão. Depois, rezaram Pai Nosso, Ave Maria e bateram palmas. Nesse exato momento riscou uma viatura, de onde apearam o juiz e a força policial. Chegaram fotografando, gravando e filmando tudo, inclusive as garrafas de cachaça vazias e o povo com cara de bêbado, até o candidato Marcelino. Deram voz de prisão e recolheram todo o material de boca de urna: santinhos, recortes de papel com nome e número do candidato. Pra completar, o secretário do prefeito, que chegou na viatura, tirou um pacote de dinheiro das calças e jogou no chão pra quem quisesse avançar. O povo disputou o dinheiro no tapa, devidamente fotografado e filmado de forma que desse pra pegar Zé Marcelino e Manuel da Loura, como se deles originasse o dinheiro.Feito isso, juiz e polícia tomaram o rumo da cidade. O povo perguntou o que fazer com tanto dinheiro. Inocente, Marcelino disse que pegassem o dinheiro e votassem nele. Alguém, não se sabe quem, gravou o diálogo.O resultado das eleições não deixou dúvidas sobre o desejo do povo. Marcelino foi vitorioso em quase todas as urnas. A comemoração foi animada, até o padre participou. Um Trio Elétrico veio de longe animar a festa. Manuel Moura chorava de alegria. Por fim, cansados e um pouquinho embriagados, recolheram-se. Marcelino, o eleito, quase não chega em casa; foi carregado pela multidão que gritava “o povo unido jamais seria vencido!”Mas, ainda não era o final da história. Passados alguns dias das eleições chegou uma força-tarefa da justiça eleitoral, protegida por um caminhão com soldados do exército. Determinaram toque de recolher às dez horas. Quem desobedecesse seria enquadrado na lei de segurança nacional. Logo, descobriu-se o motivo da intervenção: A força-tarefa conduziu Zé Marcelino, o eleito, ao quartel da cidade e deu-lhe voz de prisão por incitar a desobediência civil. Como prova, apresentaram as fotografias e gravações daqueles episódios já citados. O prefeito eleito ainda tentou defender-se; foi aconselhado a não se rebelar sob pena de descer preso para a capital. O povo quedou-se frente às baionetas e metralhadoras. E foi com tristeza que viu Abidiel Machado tomar posse como prefeito reeleito, que todos sabiam ser corrupto e ladrão. Foram anos de sofrimento e de tristeza. O município mergulhou na escuridão até o raiar definitivo da democracia, quando foi eleito prefeito um jovem do povo.O resultado da história? Manuel da Loura partiu deste mundo. O juiz foi acusado e condenado por corrupção. O prefeito Abidiel Machado arribou e foi morar no sul país; dizem até que já morreu. E Zé Marcelino, eleito e não empossado, nunca esqueceu os fatos. A depressão vem quando se lembra dessa triste história. Pior foi a alcunha que ganhou dos adversários para o resto da vida: o candidato que ganhou fogo na roupa, como se referia antigamente aos perdedores em contendas eleitorais. Mesmo assim, acredite: O voto é a força do povo!———————-*Escritor, autor de A santa do pau oco, Purgatório de Eduardo, Memórias de um coroinha, Era uma vez um comunista, Legado da loucura, Lampião, governador de Brasília, O homem que morreu cinco vezes e A curva do vento, de onde foi retirado este texto. Os livros podem ser adquiridos na página da Editarte.com.br, amazon.com.br e principais livrarias.

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A magreza de Aniceto de Abreu

Meu nome é Aniceto de Abreu, nasci em Morpará, beirada do São Francisco. Notícias, só quando Jurandir Barroso, da Barca Riachuelo, encostava no porto entregando querosene, fósforo e sal aos bodegueiros e carregando mel, mamona e couro de bicho do mato. Por Jurandir fiquei sabendo que eu era muito magro quando perguntou a meu pai:— Fulgêncio, esse menino não bota corpo nem engrossa a batata da perna. Será que tá doente?— Tá vendendo saúde, Jurandir! Não fez doze anos e já carrega nas costas um fardão de algodão!E continuei com minha magreza. Tão magro que fui levado por mamãe ao médico, em Ibotirama. Subi na balança, o doutor anotou o peso e mediu altura. Deitei na mesa de ferro; abriu meus olhos, apertou a barriga. Por fim, chamou mamãe:— Esse menino não tem nada. Tá ficando rapaz, quando arranjar namorada vai engordar. — Doutor, o problema é essa magreza, só tem couro e osso!O médico garantiu não ser anormal e passaria com a idade, mas não acalmou mamãe. Continuou na mesma pisada de me ver engordar, inclusive envolvendo outras pessoas, como minha madrinha, que participava do esforço e chegava com novidade:— Comadre, trouxe esse remédio pra meu afilhado. Disse o moço da farmácia que é remédio pra mulher criar bunda. Não sei o que vai aconteceu com o menino, se quiser dar, dê.No outro dia mamãe chamou-me:— Meu filho, comadre Biluca trouxe esse remédio, disse que engorda de fazer gosto. São dois comprimidos por dia.Perguntei-lhe o nome do remédio. Pegou a embalagem e soletrou:—Le-ve-do de cerveja e hor-mô-nio feminino. É pra ganhar peso, quem disse foi o homem da farmácia.Acreditei no poder do remédio e aumentei a dosagem por conta própria. Quinze dias depois os comprimidos acabaram e eu magro do mesmo jeito. Danou-se, e agora? Queixei-me à mamãe, que mudou de ideia:— Vamos fazer diferente, meu filho; agora você vai comer muito de tudo!O dia transformou em maratona. De manhã, coalhada com buriti, rapadura e beiju de puba. Dois pratos de comida no almoço e “de-noite” repetia-se tudo. Sentia-me cheio e empanturrado, mas engordar que era bom, nada; e já estava desistindo.Uma semana depois da maratona chegou uma prima de Maria, a vizinha. Perguntou quem eu era e apresentei-me como filho de D. Rai. Olhou-me de cima a baixo:— Você é bonito, magro e alto, queria ser assim.Foi o primeiro elogio da minha vida. Engracei-me de Aparecida, e passei a acompanhá-la pra onde fosse, inclusive tomar banho no rio. Nadávamos, minha perna triscando na perna dela. Quando vi estava enganchado com ela.Duas semanas depois Cida foi embora e caí em tristeza sem fim. Mamãe dizia:— Esquece essa moça, Niceto, ela não vem morar aqui. Ainda mais com essa sua magreza!Mamãe não sabia do chamego. Alguns dias depois a vizinha chegou trazendo carta pra mim. Mamãe perguntou quem era, respondi que era dela. Indagou:— Ela quem, aquela moça?Sacudi a cabeça confirmando e fui ler a carta trancado no quarto. Com letra bonita dizia ter gostado muito de me conhecer e um dia voltaria pra reviver os bons momentos.Passei mais de mês matutando sobre minha vida, deixando sempre um lugar pra Cida. Até que resolvi correr atrás e não ficar parado esperando cair nos pés. Lembro como se fosse hoje; dia ensolarado, peguei a Barca do Jurandir Barroso e arribei pra Ibotirama atrás da felicidade.Endereço na mão, bati na porta da casa. Uma voz perguntou quem era; respondi “Aniceto!” Atendeu-me uma senhora distinta. Olhou-me de cima a baixo, perguntou novamente quem eu era. Antes que respondesse, Cida apareceu:— Essa é minha mãe! Aniz é um amigo que conheci no Morpará, vizinho de Tia Maria. É artista e veio conhecer a senhora, não foi Aniz?Não podia dar pra trás e confirmei tudo que Cida falava.Bem recebido, fiquei hospedado lá mesmo. Dois dias depois perguntou-me se eu queria trabalhar em Ibotirama, e saímos procurando emprego. Em uma semana já estava empregado na recepção de um hotel da cidade. Dia e noite no batente, as folgas passava feliz com Cida.Um dia “Seu” João, o pai, chamou-me:— Aniz, não sei o que você e minha filha andam fazendo. Então, acho melhor procurarem se casar.E não é que gostei? Ainda pensei: Quem casa engorda, agora vou engordar!Dois meses depois mamãe e papai vieram abençoar o casório e lembrou-me:— Agora vai, meu filho. Quem casa, engorda!Feliz com a notícia via-me elegante, corpo cheio e pesado. Mas, o tempo passou e eu magro do mesmo jeito. Recebi até uma carta de mamãe procurando as novidades; terminava perguntando se eu já tinha engordado. Disse mais: Se tivesse engordado pouco não me preocupasse, pois ia engordar muito quando os filhos chegassem, só de provar mingau e comida de menino.Porém, chegou o primeiro filho e eu magrelo do mesmo jeito. Partimos para o segundo, eu na certeza que a gordura chegaria, e nada. Até que desisti, deixei de lado esse querer engordar.Acomodei o espírito e aceitei ser magro mesmo. Nas folgas passei a correr até a Polícia Federal, lá fora da cidade. Criei músculo e agora quem não quer engordar sou eu. Corpo atlético pronto pra tudo, do jeito que Aparecida gosta. Ser feliz, ser amado e bem cercado pelos dois filhos é o que importa.De vez em quando volto a Morpará, rever a família e mostrar os filhos. Mais velha, mamãe me olha enviesado e diz:— Mas, tu não engordou mesmo, Aniz? O que tua mulher diz?Aparecida finge não ouvir; aflora um sorriso no canto da boca como se respondesse:Magro, alto e agora musculoso, é assim que gosto…E a vida continua. É como diz o ditado: Com Deus adiante o mar é chão. Estou muito feliz com meu chão…——————*Escritor, autor de A santa do pau oco, Purgatório de Eduardo, Memórias de um coroinha, Era uma vez um comunista, Legado da loucura, Lampião, governador de Brasília, O homem que morreu cinco vezes e A curva do vento. No prelo, em Brasília zero hora.Foto de C. Ferreira: Ibotirama, ponte sobre o São Francisco.

71Você, Maria Félix Fontele, Ildefonso de Sambaíba e outras 68 pessoas47 comentários8 compartilhamentos

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Em Conto da Quarta

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