Senhor Presidente da Academia Taguatinguense de Letras, Escritor J. Simões; Senhores acadêmicos que compõem esta mesa; escritores e confrades; acadêmico Ronaldo Mousinho, pela mão do qual cheguei a esta Academia; senhores professores e diretores de colégios; autoridades presentes. Querida esposa, Célia; querido filho, Ciro; Rafael, sobrinho com quem divido o pão. Querido irmão, Inocêncio Regis, esposa e filhos, que representam, neste evento de rara felicidade, minha família ausente, sobretudo nossa idolatrada mãe, que ainda mora em Remanso, nos confins da Bahia. Amigos conterrâneos da Bahia, que aqui labutam pela vida, e agora testemunham uma página importante da minha vida; cumprimento-os na pessoa do doutor Manuel Bonfim Ribeiro. Colegas e amigos da Subsecretaria da Receita do Distrito Federal, minha acolhedora casa desde 2001, que aqui comparecem para ratificar uma amizade. Não menos queridos, vizinhos da QNL, nesta cidade, lugar que escolhi para deitar meu domicílio. Caríssimos novos amigos, que tive a felicidade de angariar aqui, no Distrito Federal, especialmente em Taguatinga, onde, conscientemente, escolhi viver meu dia a dia — ato do qual não me arrependo. Por fim, senhoras e senhores, queridos jovens estudantes.
É praxe em eventos e solenidades desta natureza o empossando dirigir palavras para enaltecer as qualidades do Patrono da Cadeira que está a assumir. Peço permissão para quebrar um pouco o protocolo e iniciar esta manifestação mostrando aos senhores o significado desta data e deste evento para a minha pessoa.
Quando me vejo criança, menino, em Remanso, lá no final da Bahia, depois de Pernambuco e ao lado do Piauí, sonhando, estudando, testemunhando as dificuldades que meu pai enfrentava para manutenção digna da nossa família.
A cidade onde nasci, hoje, só existe no fundo da minha alma, no sentido mesmo das palavras. Isto porque Remanso foi engolida, inundada pelas águas da grande barragem de Sobradinho. Hoje, só existe na saudade e na memória de todos que lá nascemos.
Vejo-me aos dezesseis anos, concluindo o curso ginasial, momento da grande inflexão, da grande passagem da minha vida. Lá, na minha pequena cidade, só dispunha do curso normal-pedagógico e eu queria ir um pouco além do curso pedagógico. Queria galgar a Universidade e sonhava até em ser um Advogado, Médico, Engenheiro; o que não seria possível lá, na minha cidade.
Fazendo das tripas coração, meu pai, homem pobre, com ajuda da tia Ana e Sebastião Alves, conseguiu me manter, a duras penas, em uma cidade maior, Petrolina, no Estado de Pernambuco, onde fui cursar o antigo curso Científico. Foi o primeiro passo importante da minha vida. Arribei da minha cidade. E nunca mais voltei para morar. Voltei, e volto ainda, como visitante, para matar saudades.
Após, imaginem os senhores, fui morar em um pensionato, ainda em Petrolina, onde obtive a complacência da senhora Zita, que me fez um abatimento de cinquenta por cento. Vejam os senhores, fui morar em uma praça, cujo nome popular era Praça da Biblioteca. Exatamente naquela praça estava instalada a Biblioteca Municipal da cidade!
E ali, em contato com os livros e com os maiores autores infantis e juvenis de todo o mundo, abriu-se-me um universo sem tamanho!
A leitura transporta-nos aonde queremos ir, através da seleção dos livros que lemos. Devorei tudo que podia em termos de leitura: literatura, história, geografia… Eu era um ávido leitor cotidiano, todos os dias pela manhã e à tarde, um universo sem tamanho à minha disposição. A leitura foi o instrumento que pavimentou minha estrada, referencial e passaporte para a vida, enfim, que me transformou em Escritor.
Estou muito emocionado; mas, não me sinto plenamente realizado, pois não me vejo no porto final. Nunca haverá o último porto. Qualquer porto que nós cheguemos é, só provisoriamente, o porto final. Dali, partiremos para outros voos, outras viagens. E minha viagem continuará através da produção literária.
Senhores acadêmicos, colegas, amigos, utilizei estas palavras e fatos para fazer referência à figura do meu querido pai, maior exemplo que tive na vida. Nasceu do nada, de família do interior do interior da Bahia, era um homem de bem. Com muita luta conseguiu um lugar ao sol… Já não está aqui. Partiu jovem, aos 58 anos de idade!
A meu pai, que tanto se sacrificou para atender uma reivindicação daquele menino renitente, ofereço este momento. À sua memória, meu pai! Onde você estiver, veja que a semente que ajudou a germinar e fertilizar eclodiu e gerou frutos. O fruto não é esta Cadeira que ora assumo na ATL, mas, a vida digna que me legou, pautada na responsabilidade e respeito à dignidade de todos que partilham nossa vida. Obrigado, meu pai, por tudo… (pausa) Obrigado, aos senhores, por ouvir este desabafo. É momento de muita emoção…
Segunda parte do discurso de posse. Panegírico a Eudoro de Souza:
Eudoro de Souza, patrono da cadeira 27 da Academia Taguatinguense de Letras, que ora assumo, nasceu em Lisboa, Portugal, em 27 de dezembro de 1911. Cursou a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Especializou-se em Filologia Clássica e História Antiga, na Universidade de Heidelberger, na Alemanha. Desenvolveu atividades docentes e de pesquisas na Europa, destacando-se seus trabalhos realizados em Portugal, França e Alemanha.
Em Portugal, iniciou a vida de escritor, que o transformaria num dos maiores expoentes da filosofia universal. Traduziu, direto do grego, a Poética de Aristóteles, publicado em Portugal, e que seria reeditado no Brasil, em 1966. Em 1953 chega a São Paulo. Integra-se ao chamado “Grupo de São Paulo” — formado por intelectuais que vão se unir em torno da revista Diálogo e do Instituto Brasileiro de Filosofia. Exerce, ainda, atividades docentes na Universidade de São Paulo, na Pontifícia Universidade Católica, no Instituto Brasileiro de Filosofia e na Faculdade de Filosofia de Campinas.
Em 1955, muda-se para Santa Catarina, onde é um dos fundadores da Faculdade de Filosofia daquele Estado. Sete anos depois, por indicação de Agostinho da Silva, Darcy Ribeiro consegue trazer o mestre Eudoro de Souza para Brasília. Ou seja, em 1962, vem para a nova capital Federal, tornando-se um dos fundadores da Universidade de Brasília. Aqui, lecionou Língua e Literatura Clássica, História Antiga, Filosofia Antiga e Arqueologia Clássica, em cursos de graduação e pós-graduação. Sua especialidade em cultura clássica o transformou no estudioso helenista vivo mais citado do mundo. Contudo, mais do isso, sua formação universalista permitiu-lhe percorrer as vicissitudes do ser, desde o pensamento pré-socrático até as indagações da atualidade.
Em 1965 fundou o Centro de Estudos Clássicos da UNB. Publicou Dionísio em Creta e outros ensaios, em 1973. Traduziu direto do grego As Bacantes de Eurípides, com introdução e comentários. Publicou em 1975 Horizontes e Complementaridade: Ensaios sobre a Relação entre Mito e Metafísica, nos Primeiros Filósofos Gregos. Um dos seus trabalhos mais conhecidos. Em 1978, publicou o livro Filosofia Grega. Em 1980, trouxe ao mundo acadêmico o livro Mitologia.
Já de algum tempo com a saúde debilitada, faleceu em setembro de 1987, aqui, em Brasília, deixando seu grande legado cultural ao Brasil.
Mas, como disse o próprio Eudoro de Souza: “Morre primeiro o homem humano, para renascer no desumano ou transumano e, depois, a morte deste desumano, para renascer no divino, no mito e na tradição, que é a sua subjetividade irredutível”. Ou seja, vai-se o homem, o elemento material; mas, permanece a sua subjetividade, o seu legado intelectual, a sua produção artística, filosófica e literária.
O próprio Eudoro de Souza informou-nos que o mito é a narrativa de um tempo, um fato ancestral exemplar ou paradigmático, que precisa ser lembrado e atualizado pelo rito. Os ritos são os lugares e tempos de reificação, de recriação de mitos. Exatamente o que realizamos neste momento. Esta solenidade é um rito que nos remete a um filósofo grandioso, para que seu exemplo de sabedoria e clarividência permaneça e frutifique entre nós. Frutos, refiro-me a algo que nascerá, crescerá e amadurecerá depois em novas gerações, através dos jovens sucessores da nossa sociedade. E estes reproduzirão, amanhã, parte do que agora realizamos para manutenção de tradições e realizações culturais daqueles a quem sucedemos. Ou seja, senhores e senhoras, a vida é um vai-vem ininterrupto de fatos, de experiências e de coisas boas e ruins. É o passar inelutável do tempo, deixando-nos com a sensação de vazio na mente ao descobrirmos que poderíamos ter feito, mas não o fizemos.
Ai de quem pensar que teremos nova chance para realizar o que não realizamos por medo, indecisão ou apego a coisas meramente materiais e do momento. A vida é um caminhar ininterrupto, cujo objetivo final é a partida eterna, o além. O homem quer viver mais; a criança, crescer, tornar-se adulto. Vivem, contabilizam com alegria o passar do tempo, festejam aniversários. Paradoxalmente, brindam a própria destruição — desculpem-me o mórbido pessimismo.
Então, senhoras e senhores, este é o perfil do escritor que nos serve de patrono e exemplo. O merecedor maior desta cadeira 27 da Academia Taguatinguense de Letras, porque a recebeu por merecimento mesmo depois da sua morte. Assumo, com a responsabilidade de honrá-lo no exercício do mister de Acadêmico. E um dia, também, com a minha partida (pois todos iremos um dia), será assumida, quem sabe, por algum desses jovens aqui presentes. Que reviverá feitos culturais dos ancestrais, como estímulo para prosseguir no ônus de dedicar-se à atividade cultural, num país em que os olhares públicos são pragmáticos e só se voltam para a concretude dos lucros e da geração de saldo positivo no balanço de pagamentos do país. Mas haverá, sempre, o reduto dos obstinados portadores da chama da leitura, da cultura e das artes, como meio de levar à compreensão da sociedade sua condição de vilipendiada pelas classes políticas descompromissadas, cujo objetivo maior tem sido se locupletarem das riquezas do próprio Estado; riquezas que construímos com trabalho e muito sofrimento. Se não, como nos referimos a um ex-ministro do Estado Federal, que, fora do comando do executivo e cassado pelo Legislativo, continua desfilando pelos gabinetes públicos ou a bordo de jatinhos particulares, oferecendo mundo afora as benesses do Brasil, como se nada tivesse ocorrido e permanecesse o mesmo Ministro de Estado?
Mas, senhoras e senhores, voltemos ao nosso patrono.
Eudoro de Souza foi muito mais que essa biografia lida no início da exposição, embora rica e vasta por si mesma. Conhecendo, de perto e ao vivo, o berço do pensamento clássico da Grécia antiga, tornou-se o maior helenista, ou seja, o maior conhecedor da cultura clássica grega em todo o mundo!
Entretanto, no que pese a dedicação aos estudos de uma sociedade do passado, nosso patrono sempre teve compreensão precisa do seu tempo. Sua interpretação da realidade sócio-cultural, empreendida na segunda metade do século passado, permanece nítida, e com validade estendida ao nosso século 21. Assim, dizia o patrono desta cadeira 27:
“Vivemos uma situação kafkiana, na qual somos possuídos pelos objetos que julgamos possuir. É o objeto que possui o sujeito e não o contrário!”. (Vejam, senhores, o que nos dizia Eudoro de Souza). “Estamos possessos das coisas que possuímos. As pessoas querem cada vez mais ter coisas. E cada vez, as coisas mais os têm. Nós somos muito mais possuídos que possessores ou possuidores das coisas que possuímos. Basta que ponham à venda um novo produto de consumo para que este se torne necessário, e nós fiquemos presos a ele. É o objeto que possui o sujeito, e não o contrário. Assim, nós estamos possessos das coisas que possuímos”.
É uma afirmação atualíssima, capaz de demonstrar a submissão do homem às coisas materiais, momento vivido pela sociedade, onde o ter suplanta o ser. Infelizmente e com tristeza, afirmo, mas não defendo, o homem vale pelo que tem e não pelo que é. Esta é a ótica predominante. Mas, se aceitarmos que o ter suplanta o ser a sociedade estará irremediavelmente condenada à coisificação, ao embrutecimento, à luta incessante pela busca de bens e objetos suntuosos. Simplesmente, porque o paradigma maior será o ter! A consequência danosa e irreversível (que inclusive estamos a ver) será o sepultamento da ética e das boas práticas morais. Será a mistura do privado com o público, com boa parte dos administradores públicos achando-se no direito, e até no dever, de apossar-se das riquezas da sociedade, acobertados na impunidade que nos acompanha desde tempos imemoriais.
Senhoras e senhores, prezados acadêmicos, as sábias palavras de Eudoro de Souza permanecem no nosso cotidiano. Extrapolam a realidade da época e permanecem atuais. Ele próprio nos dizia, em outra passagem do seu legado filosófico, que não se corrigia um erro com outro erro; mas, com reflexão, porque só tendo conhecimento da realidade é que poderíamos extirpar o que existe de negativo. Só podemos negar, conhecendo a realidade.
Este é o desafio que se apresenta para a sociedade brasileira. O desafio de buscar a educação como meio de libertação. A educação como instrumento da realidade e formação para a vida. Educação, como elemento de libertação das amarras de um sistema econômico e social ultrajante, onde poucos se assoberbam da maior parte das riquezas. O Brasil, nação rica, admirada como depositária das maiores riquezas naturais da humanidade, tem um povo miserável, faminto; e forte ao mesmo tempo, por conseguir sobreviver em situações inóspitas, auferindo renda inconcebível para manutenção da própria vida humana.
Senhoras e senhores, presenciamos um momento ímpar na América Latina, e no Brasil, com o ressurgimento do populismo. Que escraviza politicamente as classes menos esclarecidas em troca de uma sensação, puramente psicológica, de que tudo está bem e melhorará ainda, com fé em Deus! Enquanto isso, servem, inocente e ingenuamente, a projetos individualistas e inescrupulosos dos controladores do poder.
Um dia, perguntaram a Eudoro de Souza para que servia a filosofia. E Ele respondeu: “Não serve para nada. Ela é que é servida! A filosofia não é qualquer coisa que se transmita do professor ao aluno, como os demais conhecimentos. Um professor de filosofia, continuou Eudoro, não ensina ao aluno; faz com que ele aprenda. E alertava: É preciso abrir os olhos para a verdadeira cultura e ela se expressa na palavra”.
Em relação à realidade humana, Eudoro de Souza afirmava que os tempos atuais eram diabólicos. E explicou: “Chamo diabólico dentro do significado da palavra em grego, que quer dizer separar. O que separa é o diabólico, o que une é o simbólico. E nós estamos vivendo uma época diabólica, onde tudo está separado de tudo. Ninguém está unido a nada. É uma época de atomização. Cada um vive cheio de si, o que significa um oco completo”. E continuou o mestre: “No cotidiano se vê uma vontade muito maior de separar, de dividir que de unir. A maior parte das pessoas não sabe o que diz ou diz o que não sabe. Conhecer muitas coisas não significa saber”. (Pausa). Deixo estas palavras para reflexão dos senhores.
Caros confrades, senhoras e senhores, uma questão sempre abordada pelos filósofos é acerca do conhecimento, em si, e da extensão deste conhecimento para além do seu detentor. Para nosso patrono, educar é trazer para fora. E nas suas palavras, disse-nos o seguinte: “Nós vemos tudo como construção e não como criação. Quando uma pessoa julga estar dizendo algo novo não faz mais que um novo arranjo dos produtos da destruição de uma coisa que já existia. Para mim, a única solução para a Universidade em geral, é que ela não dê o diploma; porque os alunos querem é o diploma; tendo o diploma eles estarão satisfeitos. Quando houver universidade que não tenha diplomas, aí eu acreditarei que seja uma universidade séria. Por que a esta altura, quem for às aulas é por interesse em ser e não em ter”.
Apresentamos uma síntese do pensamento e da vida de Eudoro de Souza, um dos filósofos mais cultuados e versados na cultura grega; mas, com incursões no estudo geral da condição humana, como sujeito do seu destino, numa sociedade pragmática e movida pelo ter, pelo isolamento dos indivíduos que a compõem, e que não interpreta a educação como uma forma de libertação, mas, ao contrário, como forma de controle do homem em prol de interesses dos detentores do poder político. À primeira vista, parece-nos referir-se diretamente ao Brasil, mas esta é a grande capacidade da filosofia: ser universal e total em suas elucubrações.
Encerro estas palavras; ínfimas, considerando o teor da importante obra do patrono da cadeira 27 desta Academia de Letras, que ora assumo. Que o legado do professor Eudoro de Souza seja o farol na minha escuridão intelectual. Que esta assunção como acadêmico se concretize como uma forma de contribuir com a sociedade do Distrito Federal e do Brasil.
Peço permissão para externar duas passagens dos livros, Memórias de um Coroinha, e do próximo, Era uma vez um Comunista, ambos de nossa autoria:
– Nada na vida é o porto final. Ao ser alcançado, passará a se constituir em porto intermediário, passagem para outro porto que será, transitoriamente, o final. A insatisfação natural do homem só termina com a morte. Lute pelos seus sonhos!
– Na minha pobre percepção, Felicidade é o viver. É beber água, a substância mais simples do universo. Não tem cheiro, cor nem sabor, mas imprescindível ao ser vivo. A felicidade pode vir das coisas simples. Pode estar aos olhos e diante das mãos, mas nem sempre percebemos. Quantos já confessaram que eram felizes e não sabiam?
Neste momento, caros acadêmicos, querida esposa e filho, prezados amigos, senhores e senhores, neste momento, para mim, Felicidade é a posse na cadeira 27 da Academia Taguatinguense de Letras!
Muito obrigado a todos.
Saudação do escritor Ronaldo Mousinho a Astrogildo Miag:
Senhor Presidente da ATL Escritor J. Simões , distinto público. Tive a honrosa incumbência de recepcionar o novel-acadêmico Astrogildo Miag neste ato de investidura, o que farei de bom grado. A Constituição Federal determina em seu título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Cap. I, Art. 5º, incisos IV – é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato, e, IX – é livre a expressão e atividade intelectual, artística, cientifica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Caros confrades e confreiras, prezado público: O que é ser um intelectual, um acadêmico? Numa singela concepção, é estar em sintonia com a realidade sócio-político-cultural do seu tempo, com ela interagindo criticamente e buscando o crescimento humano, pessoal e coletivo. A cultura, que se iguala ao saber, é, segundo o Pe. espanhol Felipe Afonso Barcina ; “freqüentemente apontada como a mais elevada aspiração humana…única fonte de todo o bem e a raiz imortal de toda perfeição e felicidade”. É por meio do saber, sem dúvida, que o homem se identifica como ser cognitivo em relação aos demais viventes. Contudo, essa hierarquia não subsistirá se o manancial de conhecimento não for exercitado com ternura humanista e fraterna, sob pena de a natureza humana embrutecer-se e perder o elã divinal.
Onde podemos encontrar nossa natureza humana? Na filosofia, nas ciências e na arte, especialmente na arte poética, que são, para Tasso da Silveira “perfeitas antropofanias, desdobrando no tempo e no espaço todas as secretas dimensões interiores… por isto mesmo, a obra de arte diz muito mais que quis dizer o artista, é para ele revelação perpetuada nas formas de beleza o mistério último”. O homem é um ser filosófico por excelência, pois toda a sua vida está no aqui e agora, numa sublime perspectiva, disse Eudoro de Sousa, patrono do neo-acadêmico.
Vivemos um tempo de efervescentes descobertas, avanços em todos os setores do fazer humano e na revelação de ministérios. Tabus são questionados ou quebrados, dogmas são revistos, como, por exemplo, a recente publicação do achado científico-filológico, denominado oEvangelho de Judas; a cosmogênese e a antropogênese estão se desnudando, expondo surpresas e angústias milenares.
Diante de tudo isto, acadêmicos e intelectuais, não podemos ser apenas expectadores descomprometidos com nosso contexto histórico-cultural, mas partícipes ativos desse momento extraordinário. Requer-se ousadia e contínua inquietude. Não podemos, caros acadêmicos, nos alhearmos diante desta realidade instigadora, reduzindo nosso fazer literário a puro lirismo e mero sentimentalismo, ou ainda a manifestações personalistas e mornas, para não desagradar ou ferir brios.
O cidadão Astrogildo Miag:
Conheci Astrogildo Miag, epíteto literário de Astrogildo Regis Barbosa, em 2002, na grande Feira do Livro de Brasília. Naquele primeiro contato, já pude antever as virtudes do cidadão e intelectual no semblante sereno, mas, firme e confiante, e, com o desenrolar da amizade que as letras nos têm oportunizado, só tenho constatado o homem cooperativo, discreto e leal e de dignidade incomum que é Astrogildo Miag.
Natural da pequena e bucólica Remanso, na Bahia, Astrogildo Miag nasceu em novembro de 1955, filho de Raul Barbosa de Adnólia Regis Barbosa , in memorian. Ele, ex-cabeleireiro e comerciante, e ela, das prendas do lar. Família humilde, desprovida de posses materiais, mas rica de honestidade e muita determinação para vencer os desafios que a dura vida lhes pôs à prova, fibra essa que souberam transmitir ao filho ora apresentado.
O jovem Astrogildo enfrentou muito cedo os desafios peculiares que a existência põe aos nordestinos. Foi alfabetizado e cursou o antigo Ciclo Ginasial em sua cidade natal, com destacada atuação e surpreendente disciplina em busca do conhecimento. Desejoso de prosseguir os estudos que a sua cidade não oferecia, Astrogildo arribou para Petrolina-PE, onde viveu na casa da tia Ana e do seu esposo Sebastião Alves, que muito bem o acolheram. Ali, iniciou o antigo Científico, e, dois anos após, sempre instigado pela determinação de crescer e vencer, segue para Salvador, onde concluiu o 2º grau. Submete-se ao vestibular para Ciências Econômicas, é aprovado e gradua-se em 1979 pela Universidade Federal da Bahia.
Por dez anos, como funcionário da antiga EMATER, prestou assistência ao produtor rural e suas famílias no sertão baiano. Àquela altura, o jovem cidadão Astrogildo Miag, com pouco mais de vinte anos, forjava sua vida nos duros embates com realidades muitas vezes miseráveis, o que o instrumentalizou para enfrentar os sucessivos desafios e galgar rápida ascensão profissional: Gerente Estadual do Programa de Desenvolvimento Rural Integrado; Coordenador do Núcleo de Programação e Orçamento ; Assessor da presidência da EMATER e Assessor Técnico da Secretaria de Estado da Agricultura da Bahia, no governo Waldir Pires.
Com a mudança de governo, Astrogildo Miag retorna à empresa de origem, e, em 1990, decepcionado com a concepção retrógrada do serviço público, demitiu-se para atuar na iniciativa privada como produtor rural e comerciante. Frustrado em tal experiência, nove anos depois inicia o curso de Direito, ainda na Bahia. Em 2000, concorre ao concurso público na área fiscal-tributária, e hoje é Auditor Fiscal da Receita de Brasília. É casado com Célia Maria Ferreira Barbosa , com quem teve dois filhos: Ciro Ferreira Barbosa e Larissa Ferreira Barbosa , alunos do 3º grau, aqui presentes.
O Intelectual e Escritor Astrogildo Miag:
Astrogildo Miag assume neste momento a cadeira nº 27, cujo patrono é o luso-brasileiro Eudoro de Sousa, que chegou ao Brasil em 1953, fundou, com Darci Ribeiro, a convite deste, a Universidade Federal de Brasília, onde lecionou até 1986, quando faleceu. É tido como dos mais iluminados intelectuais pesquisador da cultura helenista no Brasil. Foi discípulo de Martin Heideger, filósofo metafísico que se debruçou sobre o sentido e a verdade do Ser. O empossando já é Membro Correspondente desta agremiação que hoje o recebe como Acadêmico titular, e cuja obra o credencia plenamente ao pleito.
Caro empossando, você ingressa nesse sodalício para servi-lo com sua inteligência, e consciente de que a luta pela cultura não deve ser jamais um devaneio elitista, mas uma ação de salvaguarda da dignificação da vida, como muito apropriadamente disse o confrade Guido Mondim, em solenidade como esta no HIGDF.
O intelectual e escritor Astrogildo Miag revelou-se ainda em sua juventude, quando cursando o 2º Grau em Petrolina-PE, sobressaía-se nos certames literários, e foi naquela oportunidade que o jovem estudante despontou como poeta. Foi como se naqueles primeiros passos já vislumbrasse a conquista da cadeira acadêmica que hora ocupa. Contudo, foi aqui em Brasília que Astrogildo Miag formalmente estreou na literatura. Ouçamos agora a leitura de dois poemas do poeta adolescente, do seu livro ainda inédito Nem só de pão vive o homem, pela aluna de Letras da Universidade Católica e estagiária da A.T.L Ester Chaves e pelo acadêmico e professor José Teixeira Pacheco…
Poesia
De Astrogildo Miag, em 1972
A poesia me pegou numa manhã triste
quando eu ainda não tinha nem tomado café.
Pediu-me e levantei-me.
A poesia pegou do lápis
do papel amarelo de jornal
pegou do povo
da rua
da sua história
e fez-se imagem.
Aí virei poeta.
Solidão
Por Astrogildo Miag, em 1973
A casa está vazia
todos se foram a divertir.
A casa está vazia
e eu cada vez mais triste.
Deitado
ouço a respiração
o compasso tênue
de um coração doente.
A casa está vazia
ouço apenas um silêncio enternecedor
que não me deixa ouvir nada.
A casa está vazia e sou triste.
É como se tudo me levassem
e me deixassem também vazio.
Três fatos marcaram a vida do escritor Miag, incentivando-lhe o agudo sentimento de rememória e o forte engajamento de sua obra: a origem pobre de um nordestino que venceu, a submersão de sua cidade natal, Remanso, nas águas do Rio São Francisco, em consequência da construção da Hidrelétrica de Sobradinho, e a injusta prisão de seu pai durante a ditadura militar .
Tendo em vista nossa forte identidade existencial, seja em relação ao desaparecimento de nossas cidades originais por conta da construção de hidroelétrica, seja na dura caminhada em busca de nova identidade, permita-me, caro Miag, compartilhar com você, por meio de duas estrofes poéticas do poema Ode a Guadalupe, de minha autoria, o sentimento de perda que nos foi comum.
[…] Mas o progresso compulsório preludia,
A pretexto de construir uma hidrelétrica,
Devagarinho, inexorável te espreita,
Violentando tua vida ribeirinha
Como outra hecatombe diluviana,
Arrastando casas, templos, campos-santos,
Alagando sítios, fazendas, tudo enfim.
[…]
Adeus! Praças, largo, catedral,
Becos, ruas, avenidas,
Rio Parnaíba, Riacho da Pinguela,
Recantos de deleites.
Adeus! Fazendas, sítios, roçados.
Caminhos, veredas, picadas,
Quintais, jardins, mangais,
Últimas imagens guardadas
Na mente, alma e olhos pranteados.
A obra do escritor Astrogildo Miag (até 2006)
É romancista, contista e poeta. Sua ficção é memorialista e costumeira, enfocada no real e no fantástico. A poesia do empossando é engajada, telúrica e lírico-amorosa. O painel de uma época é revivido com extraordinária fidelidade em sua obra ficcional, expondo com inteligência aguda e realismo surpreendente o cotidiano do Brasil.
Miag é escritor que circunscreve sua obra no telurismo de sua urbe natal – Remanso e adjacências – e frequentemente projeta seu conteúdo em análise psicológica de seus personagens, aliada à comicidade e ironia, que muito lembra a Machado de Assis.
Outra particularidade surpreendente do ficcionista é a de criar tantos personagens cujos perfis são autênticas matrizes humanas, com toda a força dramática e vida própria que a trama exige. A mensagem social presente em toda sua obra também foi trasladada do cotidiano real para o ficcional. Avesso à erudição árida, prima pela clareza de estilo e vocabulário acessível ao leitor.
A estreia do escritor Astrogildo Miag deu-se em 2003, com o romance A Santa do Pau Oco, pela Guará Editora. É obra focada na realidade aguda do Brasil interior, expondo o cenário deplorável das administrações municipais clientelistas e corruptas. Tem por matéria-prima a terra, o povo e os costumes, onde a trama se desenvolve gostosamente célere, estimulada por intrigas em torno da tríade o padre, o delegado e o prefeito, capciosamente caricaturados. Tradições e lendas desenrolam-se em estilo pitoresco e anedotário, na pena criativa deste remansense que pereniza em sua obra a cultura de sua cidade e de seu Estado.
Em O Purgatório de Eduardo, romance, publicado em 2003, também pela Guará Editora, o autor incursiona pelo real fantástico, cujo palco é o purgatório, onde as almas hibernam em estágio purificador evolutivo. A “comédia humana” nordestina é exposta com pleno vigor, muita lucidez e humor, por quem a vivenciou e dela foi testemunha ocular. É resultado de relatos históricos emocionantes e inusitados de vida e morte cantadas nas calçadas das cidades do interior baiano.
Memórias de um Coroinha, romance, 2005, chancelado pelo FAC é obra memorialista de vivências marcantes da adolescência do autor, repercutindo vivamente em seu subconsciente adulto. O tempo da narrativa se volta a alguns meses que antecedem à inundação de quatro cidades baianas, incluída Remanso, por conta da represa da Hidroelétrica de Sobradinho. E o autor, mais uma vez, e de forma mais emotiva, alinhava o seu enredo em torno dos episódios:desaparecimento da Santa Padroeira de Remanso, por ocasião dos festejos e da despedida da cidade; desapropriação das terras alagadas; a pomposa e particular festa dos políticos; a doida Januária que se suicida no Rio São Francisco, doando sua vida pelo reaparecimento da imagem da padroeira; a inundação da cidade; o penoso processo de mudança da população; a vida dos personagens 30 anos depois; o reencontro do autor com dona Carlotinha, que não o reconhece; depressão do autor e o epílogo do romance ante a impossibilidade de reviver o tempo.
Memórias de um Coroinha é um contundente painel costumeiro, resgatado quatro décadas após, pela memória prodigiosa do escritor Astrogildo Miag, em estilo agradabilíssimo. Está na orelha do livro uma reflexão filosófico-existencial do autor sobre a Felicidade: A felicidade é beber água, a substância mais simples do universo. Não tem cheiro, cor, nem sabor, mas é imprescindível ao ser vivo. A felicidade pode vir das coisas simples. Pode estar aos olhos e diante das mãos, mas nem sempre percebemos … e paradoxalmente, por vezes, brindamos a própria destruição.
Tem inéditas as obras: Nem só de pão vive o homem , poesia, Era uma vez um Comunista, romance, Felizes os convidados, contos, A revolução em minha casa, romance, e O Legado da loucura, romance. E asseguro às senhoras e aos senhores que a obra do empossando tem sido alvo de elogiosas críticas, aqui em Brasília, na Bahia e em outros Estados onde tem sido apresentada.
Finalizando, respeitosa mesa, caros acadêmicos e dileto público, permitam-me dizer uma breve prosa, muito adequada a altura de nossa digressão, para abrandar o ar formal:
“Creio estar molestando a assistência, mas não tenho relógio!
E um estudante irreverente gritou ao fundo:
– Mas nós aqui temos calendário!”.
Taguatinga, junho de 2006. Ronaldo Alves Mousinho, Cadeira nº15 da ATL/DF.
Uma resposta a O Acadêmico