RESENHA CRÍTICA

 

BARBOSA, Astrogildo Régis (Astrogildo Miag). Lampião, governador de Brasília. Editora do Autor, Brasília – DF, 2009, 252pp.

 

Astrogildo Miag é baiano de Remanso, de onde veio à busca de vida melhor, mais digna. Passou pelos percalços dos migrantes, sem muita instrução escolar, sem profissão e sem em quê se apegar. Estudou, formou-se, venceu. Hoje é Advogado e servidor público do GDF, em função de alta responsabilidade. Escritor prosador, também é poeta.

O “eu” lírico, narrador, na simulação de um sonho, faz ressurgir Lampião, na Chapada Diamantina, com destino a Brasília, para combater o MST, implantar o Estado do Planalto Central e, secundariamente, impedir a transposição do Rio São Francisco. O romance entabula fatos picarescos numa sátira ao comportamento humano, especialmente no que tangue à mediocridade em relação à fama, à fortuna e à subserviência ao poder econômico e social. Lampião reaparece, sem mulheres no bando, mas detentor da fama de mito, o anti-herói que se torna herói. Como se não tivesse morrido, o cangaceiro se depara com o Brasil atual – situação em que ele está desatualizado, mas em nada mudou quanto às mazelas humanas: o puxa saco, a corrupção, o machismo, a violência, a ambição/ganância, o levar vantagem, principalmente a financeira e a eleitoral. Acerca-se de assessores, seguidores e admiradores. Arrasta multidões. Por onde passa, provoca exasperações cômicas e ridículas, sempre se reportando ao que a História registra e ao que o folclore cultiva. Pelo que foi, em vida, ele ressurge em outra dimensão, mas com as mesmas caricaturas de cangaceiro e mal-feitor bem-feitor. Expõe o que há de pior na política, mas se rende a ela, elegendo-se Governador de Brasília, numa constatação de que nem mesmo o “Rei do Cangaço” resistiu ao assédio do poder político. Tudo lhe é facilitado pela fama histórica que o tornou mito. Não deixando de ser o que era, causa medo, pavor, mas fica numa versão politicamente correta, faz um governo popular e honesto, mas resolve voltar à origem. É morto, nas mesmas circunstâncias históricas, segundo os relatos, e o sonho acaba.

Os objetivos da trama não se realizam, talvez para provar que a tese da honestidade, da firmeza de propósito e da defesa dos interesses do povo é inviável, porque a humanidade é corrupta e sem escrúpulos.

É um livro para leitura recreativa, em linguagem simples, coloquial, com alguns regionalismos nordestinos. A trama é linear, num encadeamento de fatos picarescos que engendram crítica social e muito humor sarcástico.

Não há contra-indicações, exceto para o mau-humor e para quem queira fazer dessa literatura despretensiosa um documentário ou um compêndio filosófico. Aqui não há tese ou ponto de vista: não se quer provar ou reprovar fatos ou idéias, apenas se expõem narrativas para que o leitor extraia o que lhe for peculiar.

José Ferreira Simões – J. Simões

Professor, PHD em Educação, Escritor.

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 Resposta à Resenha “Relembrando Lampião”, da Escritora Nadir Andrade:

Olá, Nadir;

Mais uma vez, peço-lhe desculpas pela demora em escrever-lhe acerca de uma das manifestações mais atenciosas que recebi: sua resenha sobre Lampião, governador de Brasília. Como já lhe adiantei, foi muito gratificante. A começar pela pronta interpretação do livro em si, como mídia concreta, quando se referiu aos caracteres da capa do mesmo. Pois, acertou em cheio. A capa foi criada com objetivo de refletir mesmo a sanguinolência e o caráter fúnebre que caracterizam hoje o capitão Virgulino, “o homem mais valente que o Brasil já teve”.

Gostei quando se referiu ao início do livro, “O autor e a ficção”. De fato, como Escritora você sabe, é difícil iniciar livro de ficção; pior, quando o personagem que gerou tantas histórias está morto desde o século passado e precisa “voltar” para protagonizar mais uma, agora sem pé e sem cabeça, surreal, que nasce de ficcionista visionário. Pois, com sinceridade, a parte mais difícil foi o início do livro. Pensei em muitas formas de ressuscitar o capitão Virgulino, inclusive utilizando da moderna ciência de reprodução, quando um simples fio de cabelo “pode” gerar um ser igual ao extinto possuidor. Por conta disso, pensei na possibilidade de alguém roubar um pedacinho dos restos mortais do Capitão, que por muitos anos ficaram macabramente expostos à visitação pública. Mas, aí veio a dificuldade: como ressuscitar os 37 cangaceiros se apenas uma parte deles tinha os despojos expostos no IML Nina Rodrigues?

Não restou alternativa senão recriar mentalmente, de uma só vez, na ficção. A maior dificuldade era descobrir a maneira de fazê-lo. O local da ressurreição foi a Chapada Diamantina por uma questão bem particular: o fascínio que a região e suas formações rochosas exercem sobre meu espírito e minha mente. Na sofreguidão de trazer Lampião á vida, vi-o perambulando no Morrão, na formação do Camelo, no Pai Inácio. Porém, foi na Serra da Mangabeira que o vi de forma plena. Então, parabéns pela sensibilidade capaz de visualizar o que só foi dito poeticamente, como a descrição do azul imenso da curva da Serra da Mangabeira.

No transcorrer da história procuramos misturar o real com o irreal, oportunidade única para referências às mazelas dos dias atuais. Daí criar personagens que representavam pessoas com atuação destacada em defesa de interesses coletivos, a exemplo do Bispo da Barra, dom “Capri”, referindo-me ao Bispo mesmo do Prelado da Barra, cidade que admiro e onde tenho grandes amigos. O Engº Manoel Bomfim(sic), que há pouco deixou nosso convício, um dos maiores estudiosos da questão das águas, também deu seu depoimento. O assaltante Paulo Animal, que tentou jogar o avião contra os cangaceiros, veio com objetivo de mostrar não ser Lampião um malfeitor comum. Entendo importante mesclar ficção com a realidade, de forma crítica, como sempre exercito nos meus livros.

As construções de linguagens que considerou “belíssimas e poéticas”, como a noite engoliu a beleza da Chapada, refletem a compreensão que tenho da região, um dos mais lindos recônditos da natureza, que, por tudo, precisa ser preservada. A Chapada Diamantina exerce verdadeiro fascínio sobre a minha pessoa. Concebo-a como manifestação suprema de seres de grande espiritualidade. Aliás, ainda quero ter a felicidade de escrever uma história surreal tendo como referencial este lugar maravilhoso.

Quanto aos personagens, Joana “tabaco furado”, conterrânea de Remanso, adequou-se a um dos momentos da história. A maioria dos nomes dos cangaceiros foi retirada dos relatos históricos do cangaço, floreados com características que identifiquei em pessoas que atualmente fazem parte do meu cotidiano, a exemplo de Beija-flor, Feião etc, porém, sem me afastar muito do histórico. A exceção foi o cangaceiro Enfezado, que não existiu no bando de Lampião. Criei-o em viagem com dois confrades da Academia de Letras de Taguatinga à Bienal do Livro de Salvador, homenagem a um deles por conta de acontecimentos inusitados no transcorrer da viagem.

A caracterização física dos homens do Capitão foi feita livremente pelo escritor, de acordo com sua percepção artística. A participação do padre Turíbio, de Bom Jesus da Lapa, do aleijado sem braços, vitima da Talidomida, de um catingueiro oferecendo um bode, da banda de pífanos, foi uma forma de denotar realismo ao relato.

Por fim, você criou o suspense e eu gostaria de saber, em sua opinião, qual seria o clímax do romance. Foram ótimas as suas referências. Pretendo, sim, realizar um périplo de lançamentos de Lampião nas cidades do percurso de Itaberaba até despontar em Brasília, na campanha vitoriosa do Capitão Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.

Abração do Astrogildo Miag.

***

Caro, Astrogildo ou, “Cabra da Peste”, bom dia!

 Parabéns, parabéns e, parabéns. Adorei o livro LAMPIÃO GOVERNADOR DE BRASÍLIA, a sua imaginação foi estupenda, a riqueza de detalhes impressionante, e os personagens? o locutor de Xique-Xique Edilson Braga, os jornalista da Radio Zabelê de Remanso, Joana “tabaco furado”, José Alecrim, Jota Moriz, Pedro Olavo e tantos outros, que imaginação hein, meu irmão?

Ah! Esqueci de me apresentar, meu nome é Orlando Ferreira, você esteve em minha casa quando da estada de Carlos Santos “Carlito” em Brasília, e fui presenteado por um exemplar de “LAMPIÃO GOVERNADOR DE BRASÍLIA”, coincidentemente, na ocasião eu vestia uma camisa que fazia referência a Lampião, lembra-se?

Atenciosamente.

Orlando Ferreira.

 Apresentação

 

Brasília, capital do país, transmite a impressão de cidade polêmica por guardar em suas fronteiras as chefias dos poderes políticos do país. O simples anúncio do nome da capital é motivo para se torcer o nariz, com  a compreensão — errada — de que tudo que se refere a Brasília é ruim, perdulário ou ignoto.

A reação é injusta. Brasília, morada de mais de dois milhões de brasileiros, não deve ser confundida com a “Brasília, sede do Congresso Nacional”. Naquela, pululam (o trocadilho não foi proposital) pessoas trabalhadoras e cumpridoras dos seus ofícios, lado a lado com políticos de todo o país e portadores de muitas mazelas — embora  nem todos os políticos sejam portadores de mazelas. Não obstante, os políticos de Brasília cometem também seus pecados, a exemplo de arroubos de demagogia e desrespeito às práticas recomendáveis no trato da coisa pública.

Lampião, governador de Brasília reeditará epopeias triunfais do bandoleiro sobre cidades nordestinas, mandando, desmando e criando na imaginação um novo estado, o Estado do sertão, onde seria governador absoluto, independente e acima das leis da nação? Chegaria Lampião com a decisão resoluta de criar o estado do planalto central, como almeja boa parte dos políticos da capital, embora nenhum ostente publicamente?

Veremos a seguir, quando o capitão Virgulino Ferreira da Silva,  o Lampião, adentrar as terras do oeste do Brasil para uma visita à capital, levado por objetivos que nem mesmo o escritor sabe de antemão. Mas, certamente, gerará muitas confusões pelo caráter inusitado, fantasmagórico e mítico de Lampião e, também, pela ilusão que a capital federal ainda cria no brasileiro em geral.

Para começar, eis uma foto do bando de cangaceiros. Lampião monta o cavalo branco maior.

foto1

 

 

 O escritor e a ficção

 Iniciar livro de ficção é um tormento. Difícil justificar histórias sem pé e sem cabeça que brotam da imaginação. Sem querer, geralmente nas madrugadas modorrentas, quando o reflexo do sol expulsa  lentamente a escuridão da noite, sonhos estranhos me tomam a consciência e trazem histórias malucas. Para ilustrar, mês passado chegou-me ao subconsciente a história de alguém que já morrera vinte vezes e ainda continuava vivo. Pulei da cama! Como pode morrer vinte vezes e continuar vivo? Recusei-me ouvir a história passada pelo próprio morto-ressussitado, e corri ao banheiro para um banho frio.

Por último, apareceu-me o capitão Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, maior cangaceiro do Brasil. Cochichou sua história no meu ouvido. Respondi: Capitão, todos já conhecem sua vida, nada mais a falar. Deixe-me dormir. Pura verdade. Todos conhecem a história de Lampião, rasgando o chão de sete estados nordestinos carregando com mais de cinco quilos de ouro na bagagem.

A vida de Lampião povoou minha infância. O relato de que obrigara um subordinado comer um quilo de sal só porque dissera que a comida que recebiam de uma velhinha estava salgada, perturba-me até hoje a imaginação. E quando amarrou um soldado a um mandacaru para que confessasse, sob tortura, o roteiro das tropas policiais que perseguiam o cangaceiro? E a batalha em Paripiranga, na Bahia, presenciada pelo mascate Zé Antonio, que, daquela cidade, fugira  desorientado ao ver a valentia  e malvadeza dos cangaceiros?

Fui impelido a escrever sobre o cangaço, tema — embora palpitante — antigo e demais abordado na literatura, cinema e televisão. Porém, a força dos argumentos obrigaram-me a contar a história mirabolante da marcha triunfal de Lampião sobre  Brasília, em pleno século XXI. Alguém poderia indagar: Lampião não morreu em 1938, quando Brasília ainda nem existia?

 

Pura verdade. Sempre soube que o passado não se encontra com o futuro — entre ambos milita o presente, que será passado e “apresenta-se” sob a perspectiva de futuro. Mas, para a mente engenhosa do artista, tudo acontece mesmo, a depender do poder e força convincente dos personagens. Mas, convenhamos, Lampião ainda vive na memória do pobre que acalenta encontrar um cangaceiro que os livre da realidade capitaneada por governantes e políticos descompromissados com os interesses legítimos de um povo.

O nordeste brasileiro varado pelas forças do cangaço, carregado de injustiça social capaz de justificar o injustificável, já não existe. A questão climática deixou de ser variável impeditiva absoluta frente à evolução tecnológica. O antigo polo de miséria continua em grande extensão; mas, parte dele já se transforma em farturas alvissareiras. Porém, o mito “Lampião” permanece intocável no espírito nordestino e brasileiro. A intenção é abordá-lo, agora, sob a perspectiva do século XXI. Convido-o a esta viagem.

O Cangaço

Cangaceiros eram bandos armados que atuaram nos grotões de pobreza do nordeste brasileiro, no inicio do século XX, promovendo variadas manifestações de banditismo. Atacavam mascates, pequenos negociantes, invadiam povoados, vilas e até cidades em busca de mantimentos, dinheiro ou ouro. Sequestravam fazendeiros em troca de resgates, quando não extorquiam quantias certas em dinheiro através de simples bilhetes endereçados a quem as possuía.

Aos abastados restavam duas opções: respeitar e acatar os bandoleiros do cangaço, ou não  respeitá-los, o que trazia, de imediato, humilhação e sujeição às investidas violentas. Os submissos ganhavam “proteção”, certeza da não importunação pelo bando. Não raro, eram até “ajudados”, fazendo correr a fama que não eram maus e só atacavam ricos e soberbos. Ao adentrarem em uma localidade cantando “mulher rendeira”, que identificava o grupo, buscavam a simpatia dos moradores atirando-lhes moedas de pequeno valor.

A população vivia entre a cruz e a espada. Apoiasse o cangaceiro, submetia-se à perseguição das “volantes” policiais — caçavam os cangaceiros e, em maior medida, as riquezas que estes transportavam. Afirmava-se que Lampião não andava com menos de cinco quilos de ouro e milhares de contos de réis, hoje uma média fortuna.

 

O cangaceiro Lampião

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Virgulino Ferreira da Silva nasceu em junho de 1898 na antiga Vila Bela, hoje Serra Talhada, Pernambuco. Com a alcunha de Lampião ou Capitão Virgulino foi o mais famoso cangaceiro durante mais de duas décadas. Desmoralizou grandes operações militares organizadas para capturá-lo, bem como não valeram altas recompensas oferecidas pelo governo a quem o eliminasse. Ao contrário, a ineficiência das ações aumentava a aura de invencível, convertendo-o em herói, com espaço até na mídia internacional.

Mulato, esguio, forte, um metro e setenta, Lampião era capaz de atos de crueldade. Não raras vezes, sangrou inimigo enfiando longo punhal na veia jugular, como se fazia com um bode. Cortou língua de gente, decepou orelha e furou olhos. Certa vez, castrou um homem sob a alegação de que o mesmo precisava engordar. A crueldade lhe valeu a alcunha de “rei do cangaço”.

Contraditoriamente, era temente a Deus. Portava um rosário e uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, sua madrinha. Carregava livros de orações e pregava fotos do Padre Cícero na roupa. Rezava ao levantar-se, acompanhado por todo o bando. Não por acaso, no dia da sua morte, ao raiar do dia, acabava de rezar o santo ofício. Em algumas localidades invadidas ia à igreja, onde costumava deixar donativos fartos, menos para São Benedito: era racista e dizia “onde já se viu negro ser santo?”. Supersticioso, andava com amuletos espalhados pela roupa e acreditava  ter o corpo fechado. De encontro ao machismo do nordestino, os cangaceiros enfeitavam-se com anéis, colares e lenços estampados de seda inglesa ou tafetá francês.

Apesar de bandido e perseguido pela polícia, Lampião e seu bando foram convocados para combater a Coluna Prestes, marcha comunista que cruzou o Brasil na década de 1920, comandada por Luiz Carlos Prestes. Recebeu a patente de capitão das mãos do Padre Cícero, em 1926; seus cangaceiros ganharam fardas e armas de última geração. Ainda se cruzaram com os comunistas de Prestes, mas a convocação não foi reconhecida oficialmente pelo governo federal, que continuou perseguindo-os, o que os fez retornar às atividades cangaceiras, agora bem armados.

 

Em 1929, conheceu Maria Déa, a Maria Bonita, mulher do sapateiro José Neném, de Jeremoabo, na Bahia. Com dezenove anos e apaixonada, pediu para acompanhá-lo. Lampião concordou.

 A morte do cangaço

            Lampião morreu em 28 de julho de 1938, na Fazenda Angico, Sergipe, emboscado por cerca de cinquenta policiais de Alagoas, comandados pelo tenente João Bezerra. O combate durou pouco, ante a vantagem de Bezerra dispor de quatro metralhadoras. Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram mortos e degolados. Após, salgaram as cabeças e colocaram em latas “de querosene” contendo aguardente e cal. Os corpos mutilados e abandonados viraram  comida de urubus. As cabeças foram expostas nas escadarias da igreja de Santana do Ipanema; de lá, foram conduzidas a Maceió e Salvador, onde, insepultas, no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, ficaram expostas ao público até 1969.

Na ocasião, Lampião transportava mais de cinco quilos de ouro e quantia em dinheiro equivalente hoje a 600 mil reais. Só no chapéu de couro o cangaceiro ostentava setenta  pelas de ouro puro.

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As próximas páginas mostrarão a marcha de Lampião desde seu aparecimento na Chapada Diamantina, Bahia, até  Brasília, capital federal, para  combater o MST e fundar o estado do planalto central em terras do oeste do país.

Não realizou nenhum dos objetivos, mas transformou-se no maior fenômeno político e eleitoral que se tem notícias no Brasil, até hoje venerado pela memória dos moradores da capital federal.

 

 

 


Um, leitor escreveu sobre o Livro:

 

Caríssimo amigo,

Acabo de ler, em duas sentadas, o seu livro O Legado da Loucura, e, duas coisas me chamaram a atenção: uma, acredito que o sonho de todo escritor é criar um estilo e ser reconhecido por ele. Posso afirmar que você chegou lá, somado aos dois primeiros que já li “A Santa do Pau-Oco” e “O Purgatório de Eduardo” é fácil reconhecer seu estilo, caracterizado principalmente por personagens à beira de um ataque de nervos. Todos estão prontos para a briga e respondem armados a qualquer palavra mal entendida, não importando a classe social, o credo ou a profissão que exerçam. Tanto faz se na cidade interiorana do primeiro livro, num delírio dantesco do segundo ou num inusitado velório deste último, todos estão por um fio. O que me faz pensar duas vezes antes de visitar Remanso.

Se o estilo vem sendo apurado, o que me agrada muito são as interpretações, entre os personagens, das falas alheias, criando um disse-me-disse que nos faz lembrar de uma brincadeira de infância chamada telefone sem fio, onde um dito ia sendo modificado à medida que passava de um ouvido a outro.

A segunda coisa que me chamou a atenção foi o enredo em si, a confusão em torno de um velório, já que, curiosamente, semana passada, numa mesa de bar, fazia um comentário sobre como achava interessante participar de qualquer evento social, seja ele um velório, aniversário, procissão, carnaval, festa de família, comício, passeata, etc. (imagina como esta opinião deu pano pra manga).

Enquanto lia, lembrei-me de um poema de Mário Quintana que nos remete a outro velório que agora transcrevo:

Tableau! Nunca se deve deixar um defunto sozinho. Ou, se o fizermos, é recomendável tossir discretamente antes de entrar de novo na sala. Uma noite em que eu estava a sós com uma dessas desconcertantes criaturas, acabei aborrecendo-me (pudera!) e fui beber qualquer coisa no bar mais próximo. Pois nem queira saber… Quando voltei, quando entrei inopinadamente na sala, estava ele sentado no caixão, comendo sofregamente uma das quatro velas que o ladeavam! E só Deus sabe o constrangimento em que nos vimos os dois, os nossos míseros gestos de desculpa e os sorrisos amarelos que trocamos…

Por fim, lembro também agora, de um outro poema passado neste ambiente mas, do João Cabral de Melo Neto, chamado “Funeral na Inglaterra”. Como vê, anda muito bem acompanhado.

Felicito pelo novo livro desejando futuras inspirações.

Grande abraço!

          O Legado da Loucura mostra a hipocrisia humana através do relato da vida de um demente, personagem principal da história, que, de repente, com sua morte, transforma-se no centro de uma comédia, que é a disputa por sua inusitada herança, flagrante da miséria e da hipocrisia. É uma história concretizada num país irreal chamado Brasil, onde mais vale um quinhão do poder que a serenidade para enfrentar o julgamento da posteridade.

Por se desenrolar em plena capital federal é uma pérola em situações surrealistas. Se não, onde um presidente de república, etilicamente perturbado, exigiria que seu avião, de última geração, aterrissasse e viesse buscá-lo diretamente no salão de festas de um edifício residencial, coincidentemente chamado Juscelino Kubistchek? A cena da chegada do mandatário maior, habilmente descrita por Astrogildo Miag, mostra o humor diluído em todo o livro:

“Finalmente, o presidente pisa o solo sagrado do salão de festas. Usa um boné combinando com a jaqueta safári na cor bege. É ovacionado intensamente. A emoção toma conta dos aduladores. De imediato, a autoridade é conduzida ao local reservado ao pronunciamento, que começa em tom bem emocionante. Apresenta-se como o protetor dos pobres, o único presidente que nasceu pobre e carregou água nas costas para não morrer de sede e de fome. E confessa: ‘Sim, minha gente, pela primeira vez, vou falar uma coisa que marcou a minha infância: eu também carregava água para vender e encher os banheiros e as privadas das casas dos ricos, pois naquele tempo não existia água encanada. Não existia nem luz! Eu é que estou iluminando e colocando água encanada nas casas de todos os pobres desta nação. É por isso que estão me caluniando, me chamando de corrupto!’”.

Como o Brasil é país do surreal, o fantástico do fantástico, onde tudo é possível, retrataria O Legado da Loucura uma história real? A melhor forma de averiguar é ler o livro.

       Palavras do autor

           O Brasil é um compêndio da história universal. Um pouco do que existe no mundo. O fantástico do fantástico, a exuberância da natureza avançando agressiva em busca da própria sobrevivência. — Como resistir a tanta violência se não através da violência? — O Homem agride; em represália, sofre as conseqüências da sua agressão. A natureza escarrando dengue nas metrópoles nacionais. A febre amarela rural invadindo as cidades. A tuberculose sorrateira, às escondidas, respondendo ao descaso com a saúde do povo, mata anualmente mais de cinco mil brasileiros. O bolo econômico crescendo, mas diminuindo a participação do trabalhador, conseqüência da degeneração educacional. Ganha mal e o futuro não lhe oferece perspectivas.

O Legado da Loucura é uma história concretizada num país irreal chamado Brasil, onde mais vale um quinhão do poder que a serenidade para enfrentar o julgamento da posteridade. A vida do personagem principal passaria despercebida se o destino não lhe criasse situações inusitadas pelo surrealismo. O poder não tem face e a tudo aproveita, até a desgraça de outrem. Poder não é apenas a força moral, econômica ou política que obriga à obediência; é associar o destino das pessoas à vida e ao destino do poderoso.

Foi o que aconteceu com José de Arimatéia Gusmão, o Zé Besta, personagem principal da história, um demente na capital federal ou em qualquer outra grande cidade do país. De repente, com a morte, transforma-se no centro de uma comédia, que é a disputa por sua inusitada herança, flagrante da miséria e da hipocrisia.

Embora prefira escrever sobre fatos, não sei se essa é uma histórica verídica. Como disse, o Brasil é o país do surreal, o fantástico do fantástico, onde tudo é possível. Até mesmo a existência desse legado, o da loucura.

  Prólogo

O Legado no Direito das Sucessões

           No Direito Civil brasileiro legado é disposição de última vontade, através de testamento, quando o testador, com o advento da sua morte, deixa para alguém uma ou mais coisas da sua herança. Não incide sobre um percentual ou sobre tantas partes dos bens do falecido; mas, sobre bens determinados, especificados e individualizados ainda em vida. Precisamente, é a disposição e a vontade do testador de deixar coisa certa e determinada,  benefício ou vantagem econômica para alguém, que pode até não ser herdeiro legal.

Pressupõe necessariamente duas pessoas: o legante ou autor da herança transmitida; e o legatário, pessoa que a recebe. Todas as coisas que possam ser negociadas e proveitosas ao legatário são possíveis de legação, como dinheiro, imóveis, títulos, ações, veículos, animais, etc. Como ninguém pode dispor e doar o que não tem, é essencial que os bens legados constituam patrimônio do legante por ocasião da sua morte.

O caso específico deste livro foge aos padrões. Não existe propriamente um testamento determinando legação. Sem contar que a loucura torna a pessoa incapaz para exercício de qualquer ato civil, inclusive fazer testamento e legar, a herança do falecido existe apenas na imaginação do escritor e dos personagens que dela querem tirar proveito.

  Início da história

           Abre a gaveta, revira papéis à procura do pente de cabelo. Mãos aos bolsos. Espia o chão, o canto, ao lado do tapete. Teria caído no cesto do lixo? Quero ver quem vai pagar, pensa alto. Alguém responde “quem vai pagar sou eu”. Assusta-se. É um homem jovem, moreno. A melhor postura é levantar a cabeça e empinar o nariz; nunca demonstrar medo. E assim faz: Pois não, que deseja? A resposta vem imediata: Estou procurando o 401. Falar com quem? Com o 401. O nome da pessoa? Já disse: com o 401! Sinto muito, não pode; o senhor não é morador. Mas vou subir, quero o 401. O senhor não é morador; para subir tem que avisar. Então avise! Como, se o senhor não sabe nem com quem vai falar? Sei, sim: vou para o 401. É o número do apartamento! Tem que falar o nome da pessoa. Amigo, vou para o 401; o nome é esse. Desculpe, mas, não pode subir. Vou subir, sim! Vou chamar o segurança. Segurança, aqui sou eu, besta. Besta é o senhor; tenha respeito! O senhor está em propriedade particular. É minha também, besta. Aqui o senhor não tem nada. Tenho mais que você, besta. Besta é o senhor! Vou mandar o segurança prender o senhor. Fugi agora, agora, besta.

O porteiro assusta-se. Fugiu de onde? De lá, besta. Por que tanto besta? Porque sou besta. E deixe de ser besta. Estou me zangando com o senhor; vou chamar a policia. A polícia, não, besta. Por que a polícia não? Estou armado, besta.

Seria assalto?

O porteiro pergunta, ao homem, o que quer. Novamente, besta? Quero falar com o 401. Diga o nome. Pelo amor de Deus, diga seu nome! Zé Besta, filho de Zilda. Filho de quem? Dona Zilda é sua mãe?

O porteiro comunica-se:

— Diz que é filho da senhora.

— Só tenho um filho e está longe, no exterior!

— Pois, está aqui um rapaz dizendo ser seu filho. Quer subir de qualquer jeito! E só me chama de besta. — O porteiro percebe a reação nervosa da mulher… — Dona Zilda, está se sentindo mal?

— Não, senhor, tudo bem. Como é o nome dele?

— Diz que se chama Zé Besta.

— Seu Beto porteiro não deixe esse homem subir! É maluco. Estava internado no HPAP.

— É seu filho, dona Zilda? Não disse que ele estava no exterior?

— Só Deus sabe por que falei isso. Pelo amor de Deus não deixe subir. Quando a loucura ataca, foge do hospital. Não deixe subir!  A última vez incendiou meu carro. O senhor lembra?

— O carro que pegou fogo? Mas, não foi o ladrão?

— Não ia dizer que fora meu filho. Por tudo na vida, não deixe subir!

Desligou o interfone.

O visitante impacienta-se. — Falou? Falou com o 401? Não está? Deve ter ligado errado. Quero subir.

— Não pode. Não tem ninguém em casa.

— Melhor, porque fico sozinho.

— Não pode subir. — Mas vou. — Não vai. — Vou. — Não vai. — Vou. — Não vai…

O diálogo continuou por longos minutos até que Zé Besta afastou-se, repetindo vou subir, vou subir, sim, vou subir…

Não subiu. Nunca subiu; mas, ficou morando naquele condomínio do edifício Juscelino Kubistchek, em Taguatinga, cidade satélite de Brasília, capital federal, trezentos mil habitantes, com feições comuns a qualquer edifício residencial de uma cidade grande. Também não voltou ao hospital. A loucura o encerrava em si mesmo, seu corpo era sua própria casa. Dormia na área térrea comum do edifício, ao lado das garagens, sobre papelões que lhe serviam de cama. Manhã cedo recolhia os pertences num surrão de náilon; ou seja, num saco de náilon, capacidade para sessenta quilos, desses de guardar e transportar feijão, arroz ou farinha. Transpassado ao ombro, o acompanhava a lugares só por ele conhecidos.

Quando a chuva resolvia perturbar-lhe o sono, acomodava-se numa tábua estendida sobre velho pneu automotivo; suspenso, livrava-se da água que ensopava o chão. Se o frio da noite brasiliense ultrapassasse o suportável, acomodava-se no primeiro veículo com porta não trancada — embora fechada. Manhã cedo, constatava-se a contravenção.

— Zé Besta entrou no meu carro! Não vi, mas sei pelo cheiro. Bote a cabeça aqui…

Era o cheiro nauseabundo de Zé Besta, coitado. Dias e dias sem banho e vestindo a mesma roupa. O corpo só sentia água quando o dono ganhava roupa nova. Sorrateiramente, sacola na mão, em algum lugar banhava-se e barbeava-se. Retornava renovado para mais algumas semanas na escuridão e na sujeira da loucura.

Às vezes, causava atrito entre moradores. Agostinho Maranhão, servidor concursado da Receita de Brasília, detestava Zé.

— Esse maluco não pode ficar aqui, em hipótese nenhuma! O pior doido é o doido manso. Quando a loucura ataca mete a faca em qualquer um.

— Calma, seu Agostinho. Doido também é filho de Deus.

— Estou me referindo ao doido. Entendeu? Ao doido! E não me peça calma, pois não estou nervoso. Não me peça calma! Da próxima vez vou descer o braço! Sabia que já estive internado? Vai me pedir calma novamente? Não me peça calma!

— De jeito nenhum! O senhor não está nervoso.

— Não estou mesmo não! Vou repetir: esse maluco ainda vai fazer uma besteira nesse prédio.

O interlocutor escapuliu sorrateiro para a rua, amedrontado ante a presença forte de Agostinho Maranhão.

Zé Besta tinha a quem recorrer. A mãe não o deixava passar fome. Cedo ainda, mandava-lhe café com pão; comia prazerosamente. Às vezes, quando atacado, lançava a vasilha do café ao pátio: “Não sou cachorro! Quero subir. Quero subir…”.

Não realizou sonho tão pequeno: subir ao apartamento da mãe, egressa da região cacaueira da Bahia. De família de posses, que viveu a época áurea da cultura, quando cinqüenta hectares da lavoura proporcionavam vida fausta e passeio anual pela Europa. Depois veio a vassoura de bruxa, dizimou os cacaueiros e trouxe aos agricultores dificuldades — para muitos, a miséria.

Zé Besta não tinha noção do tempo; dias, semanas ou meses na rotina. Levantava-se do papelão, ia à torneira externa, completava com água pequena lata, à guisa de caneco; e, atrás dos veículos, procedia a higiene matinal. Ninguém testemunhava tal higiene. Após, a irmã o chamava. “Zé! Tome o café!”. Não reagia. Silenciosamente, recebia a comida sem olhar o rosto da irmã. Se esta trouxesse alguma peça de roupa, oferecia: “Tome essa roupa limpa”. Recebia sem agradecer. Não falava se vestiria ou não; se resolvesse, apareceria tomado banho e vestindo a roupa nova. Talvez, na madrugada cerrada de Brasília — quando o frio afugenta os homens, veículos recolhem-se e até as almas dormem — mergulhasse em algum córrego cristalino entre as cidades satélites de Taguatinga, Samambaia e Ceilândia, para livrar o corpo da sujeira.

Uma vez ao ano perdia a noção das coisas. Acordava já urinando, ao lado mesmo da cama improvisada. Decidia tomar banho, nu, naquela torneira externa. Era um vexame.

— Zé Besta está tomando banho pelado na vista das mulheres! Vou embora desse prédio. — Queixava-se Agostinho Maranhão, o primeiro a levantar-se para levar o filho Júlio à escola e, dali, ao expediente no Plano Piloto[1].

— Ainda vou enxotar esse maluco! Se minha mulher o ver nu, vou dar uma surra. Não quero nem saber se é doido. Vou dar uma surra! Vou embora desse prédio a qualquer hora.

Um dia, Zé jogou o grande surrão de náilon nas costas e saiu — quem sabe, até para o banho quinzenal. Alheio ao mundo e aos veículos que subiam e desciam velozes foi atropelado em frente ao condomínio, na perigosa Avenida Samdu Norte, ao lado da Faculdade Projeção, quase no centro de Taguatinga.

Ouviu-se um frear brusco e uma pancada abafada. Nem um gemido. O porteiro Humberto dos Santos, conhecido como Beto porteiro, indagou ao zelador Carlomar, baiano de Santa Maria da Vitória, que batida fora aquela. Foi aqui perto, respondeu Carlomar. Os dois saíram. Quem ficaria na portaria, lembrou Beto; o zelador retornou e assumiu o posto. Beto atravessou o pátio, abriu o portão, rompeu a distância que o separava da Avenida Samdu Norte e deparou-se com a cena.

— Foi atropelamento! Parece que morreu!

O atropelador fugiu sem prestar socorro. Oliveira, piauiense de Oeiras, barraqueiro, há mais de dez anos vendendo doces, salgados, refrigerantes e outras bebidas ao lado do edifício, gritou…

— Vai embora sem dar socorro? Já anotei a placa, seu irresponsável!

O motorista nem ouviu. Engatou a primeira marcha, jogou direto a terceira, atravessou a faixa de pedestres sem parar e quase atropelou um transeunte. Oliveira ainda pediu ajuda ao policial do batalhão escolar que tirava serviço em frente à Faculdade.

— Policial, pega esse carro aí! Acabou de atropelar uma pessoa! Está fugindo sem dar socorro!

Quando o militar terminou de ouvir a história o veículo já dobrava para a grande Avenida Comercial Norte, mais de seis quilômetros de extensão, de onde tomaria o Pistão Norte, uma das saídas de Taguatinga para a grande capital federal.

Todos correram para ver quem era a vítima.

— Quem é, Oliveira?

Oliveira levantou a cabeça do rapaz…

— Não queiram nem saber…

— É conhecido? É morador daqui?

— Como se fosse.

— Mora em que apartamento?

— Em apartamento nenhum.

— Então não é morador.

— É o morador mais conhecido.

— Oliveira, pelo amor de Deus! É gente do prédio? Carlomar, venha me ajudar! Não posso ver sangue. — confessou Beto porteiro — Vou desmaiar…

E desmaiou mesmo.

Paulo Ribeiro, piauiense do 406, escrivão de polícia, olhos com lentes de fundo de garrafa, perguntou o que acontecia. Um ladrão que queria roubar o condomínio, responderam. E roubou? Parece que sim; mas foi pego. Levaram pra onde? Lincharam. Aqui no condomínio? Isso é atitude de animal! A justiça não deve ser feita com as próprias mãos. De tanto apanhar parece que morreu, informaram. Quem foi o responsável? Alguém filmou? Se filmou guarde a fita porque vou denunciar!

Carlomar, o zelador, apareceu com a vassoura na mão. Pra que essa vassoura, idiota! — perguntaram. Pra segurar o atropelador se ele quiser fugir, respondeu o rapaz. Chegou tarde, já fugiu!

Carlomar, ainda com a vassoura, foi interpelado por Paulo Ribeiro.

— Você participou do linchamento, não foi? Negue se puder! Ainda está com a arma do crime!

— Eu mesmo não, seu Paulo. Eu não! Que arma?

— A vassoura usada para abater a vítima. Será arrolado como co-autor. Vai informar o nome de todos que participaram.

— O rapaz fugiu, seu Paulo!

— Foi um só?

— Parece que eram dois.

— Vai ter que dizer os nomes e onde moram. Vou mandar prender você. Aliás, eu mesmo prendo; qualquer cidadão pode prender em flagrante delito. Esteja preso!

Carlomar chorou.

— Não fui eu. Não fui eu…

— E quem foi?

— Não conheço.

— E essa vassoura?

— É de lavar roupa.

— Lavar o quê?

— Lavar roupa do prédio.

— Você trabalha no prédio?

— Trabalho, sim, senhor.

— É lavador de roupas? Nunca vi isso. E lava roupa com vassoura?

— Lavo, não, senhor.

— Não acabou de dizer que a vassoura era para lavar roupa?

— É não! Vassoura é pra varrer o chão. Estava varrendo o corredor. Nem terminei. O senhor vai me prender?

— Vou livrar o flagrante porque sei onde encontrar você.

Carlomar agradeceu. Jurou por Deus não ter sido ele. Ainda aos soluços, encontrou sargento Jânio, da Polícia Militar, morador do prédio; branco, forte, cabeça raspada com máquina zero, orgulhoso de ser militar.

— Sargento, me acuda! Mataram um homem, o delegado está dizendo que fui eu!

— Mataram onde, paisano?

— Aí no asfalto. Está lá estirado. O delegado disse que fui eu.

— E foi você? De onde é esse delegado? Então fuja! Se não foi você, fuja. Se pegarem, até se explicar e contratar advogado já apanhou muito.

— Vou fugir como?

— Entre no meu carro e se abaixe. Depois procure lugar seguro para se esconder.

— Vou embora pra Bahia. Vou voltar pra Santa Maria da Vitória.

Carlomar esquivou-se para entrar no Monza vermelho do Sargento Jânio, que perdeu a paciência.

— Anda logo, paisano! Ninguém pode ver. O que estou fazendo é crime. Eu sou militar e estou dando fuga a criminoso!

— Não fui eu, sargento. Juro!

— Já disse: até você se explicar…

Carlomar não conseguia entrar no veículo. Jânio gritou:        — Larga essa vassoura, paisano! Pra que essa vassoura?

— O delegado disse que foi a arma do crime; não vou deixar aqui, não.

— Você matou mesmo?

— Deus me livre! Mas tenho medo do delegado provar que fui eu.

O veículo saiu cuspindo fogo. O zelador abaixado atrás, vassoura sobre o banco. Alguém levantou a mão, pediu que parasse o veículo. O Monza gemeu, mas atendeu à ordem do dono: imprimiu velocidade e obrigou todos a dar passagem. Carlomar apavorou-se.

— O que foi, Sargento? É o delegado?

— Vou me complicar por sua causa. Posso estar cometendo um crime.

Alguém chamou a polícia. Ouviram-se as sirenas intermitentes e os hotlaines de cinco camionetas cabina-dupla, e a polícia compareceu com suas viaturas moderníssimas, de última geração, capacitadas para tráfego até em estradas rurais, acompanhadas por seis motocicletas igualmente equipadas. O povo se assustou.

— Meu Deus, pra que tudo isso? É guerra?

Os policiais desembarcaram como tropa de elite, como de fato eram. Com os cassetetes invertidos no braço, cutucavam o povo enquanto pediam passagem. Os policiais motociclistas avançaram sobre os curiosos e ordenaram:

— Ninguém encosta para não modificar o local do crime até a perícia chegar!

As viaturas recém-adquiridas, que na semana anterior desfilaram pelas ruas do Distrito Federal, provando ao povo a preocupação do Governador com a segurança pública, mostravam os hotlaines grandes e escandalosos, vermelhos, amarelos e azuis, visíveis a quilômetros de distância. Os maliciosos comentavam não saber o objetivo de tantas luzes coloridas: se mostrar a presença policial ou alertar infratores e bandidos para a fuga.

Beto porteiro cruzou a entrada principal do prédio aos soluços. Alguém o interpelou:

— Por que tanto choro, seu Beto? Era parente do ladrão?

— Não era ladrão, não, seu Lúcio. Era pessoa boa, não incomodava ninguém. Uma vez ou outra é que fazia aquilo…

— Ainda tem coragem de defender ladrão? Esse povo é viciado. Rouba uma vez, gosta; não pára nunca mais!

Hélio Idálio, na portaria do prédio, cercou Beto de perguntas. — Mataram mesmo? Sabe quem foi? Chamou a polícia? Foram quantos tiros?

Beto não teve nem tempo de responder. Deparou-se com a irmã de Zé Besta, caneco e pão de sal nas mãos. Ao vê-la, chorou copiosamente. Assustou a mulher, que reagiu:

— Sai de mim! Ando cheia de assombração. — Beto soluçou mais ainda… — Sinto muito; muito mesmo… — Vá caçar o que fazer! Nunca lhe dei ousadia. Comigo não, violão… — O porteiro apiedava-se da moça; aconselhava. — Pelo amor de Deus, tenha calma. O mundo não se acabou. — Se continuar com ousadia vou chamar meu namorado. Aí você se explica a ele. — respondeu a irmã. Beto porteiro estendeu a mão em pêsames; a reação foi enérgica. — Não me toque! Queria que esse meu irmão não fosse maluco. Ia aprender a respeitar mulher dos outros!

Maria do Carmo caminhou ao pátio com o café e o pão, à procura do irmão. — Zé!… O café! Toma seu café. Hoje tem ovo e o pão está com manteiga!

Zé não respondeu, nem poderia; já partira. Ficou o corpo sujo na véspera do banho quinzenal. A irmã ainda o procurou, olhou atrás dos veículos. Chamou várias vezes até desistir. — Não vem porque não está com fome. Agora só amanhã!

Retornou à portaria. Beto porteiro, debruçado sobre a mesa, olhos inchados. A mulher pediu informações…

— Viu Zé, meu irmão?

O porteiro assustou-se: Viu quem?!

— Zé, meu irmão.

— Era o que ia lhe dizer.

— Diga, então! O senhor estava era com ousadia.

— Dona Maria do Carmo, eu gostava muito de seu irmão, apesar de ser um doente.

— Não gosta mais por quê?

— Ele foi embora.

— Tão cedo assim, não tomou nem o café.

— Ele tinha quantos anos?

— Só minha mãe sabe. Foi pra onde?

— Ele morreu, dona Maria do Carmo! Está estirado lá no asfalto da Samdu.

— É uma infâmia! Quem está estirado é o ladrão e meu irmão nunca foi ladrão. Doido era, ladrão nunca!

Das escadas sai Oliveira da barraca amparando a mãe do infortunado. “Por aqui, dona Zilda, devagar”. A mulher, sisuda; Maria do Carmo pergunta-lhe se Zé era ladrão.

— Seu irmão era um santo! Nasceu pra sofrer. Quando tinha dez anos notei alguma coisa errada. Na seção espírita fiquei sabendo que a missão dele era sofrer até completar as obrigações de outra vida, quando foi padre. Descanse em paz, meu filho!

— Era ladrão ou não era? O povo está falando que um ladrão morreu; esse moço aí, o porteiro Beto, disse que foi Zé que morreu. Por isso estou perguntando. — Sem resposta às indagações, Maria do Carmo continuou a cantilena. — Quem começou o linchamento foi o zelador Carlomar que trabalha no prédio. Fugiu com o porrete usado para matar o ladrão…

O oficial militar comandante da operação dirige-se a Maria do Carmo, irmã do atropelado:

— A senhora não pode viajar; está à disposição do delegado responsável pelo inquérito policial. O rapaz foi linchado mesmo? — Oliveira intercedeu. — É mentira, tenente. O rapaz foi atropelado em frente da minha barraca. Era conhecido. Nunca foi ladrão!

— A informação era que ele ia com vários sacos de mercadoria.

— Os sacos eram a vida dele. O rapaz era maluco! No saco carregava todas as suas posses: pano, papelão e outras coisas. Essa é a irmã — vira-se a Maria do Carmo. — E a mãe do morto vem chegando aqui.

Zilda rompe a pequena multidão ao encontro do filho. As pessoas já cobriam o corpo do morto com folhas de jornal. Coincidentemente, utilizavam folhas de um tablóide sensacionalista dedicado só à cobertura da violência que tanto tem crescido no Distrito Federal. A primeira página estampava um corpo em chagas e coberto de sangue. Zilda assustou-se:

— É meu filho que está nesse jornal? Não é possível meu Deus!

Oliveira pediu calma. A fotografia não era do filho dela, pois ainda não dera tempo de sair no jornal. Mas, a senhora se prepare porque vai sair no jornal de amanhã, preveniu o barraqueiro enquanto completava o raciocínio: — Onde houver sangue esses jornais estão em cima. Parecem urubus. E são vários, cada um mais cheio de sangue que o outro. Se apertar, espirra sangue pra todo lado!

A mulher resignara-se. Limpou as lágrimas com uma camisa de malha branca como se lenço fosse. Pediu licença para aproximar-se do corpo. Ajoelhou-se…

— Meu filho, finalmente Deus lembrou de você. Trouxe-lhe o descanso eterno. Vá com Deus, meu filho…

As lágrimas brotaram abundantes dos olhos da mãe. Molham o rosto de Zé Besta, despertando-o. Abriu os olhos, olhou em volta. Oliveira levantou os braços e gritou com todas as forças.

— Milagre! Milagre! Chamem o padre Moacir Simões, pois aconteceu um milagre!

A mãe chora mais ainda. O barraqueiro, emocionado, faz coro com o chororô de Zilda. Beto porteiro, católico praticante, freqüentador fervoroso das pregações do padre Moacir Simões, contagiado pela alegria joga-se sobre o corpo de Zé Besta. Este o repele energicamente:

— Sai pra lá que não gosto de veado!

— Um milagre, minha gente! Zé Besta ressuscitou!

A mãe pedia, aos prantos, pedia…

— Zé, fale com sua mãe! Terá sido milagre, meu Cristo Redentor? Fale com sua mãe, meu filho! Fale com sua mãe!

O povo participava da emoção. Êxtase. Um clima sobrenatural circulou sobre a pequena multidão. Os policiais, também envolvidos na emoção do momento, ligaram as sirenas e os hotlaines das viaturas. O pisca-pisca vermelho-amarelo-azul decorou o ambiente e chamou a atenção de toda a área de influência das avenidas Comercial Norte e Samdu. Da QNL de cima, também chamada “L” norte, avistava-se o reflexo das luzes dos hotlaines. Os discentes[2] de cursos profissionalizantes que aguardavam o horário de abertura dos portões da escola do SESI, no início da ladeira da chácara Onoyama, perguntaram-se, admirados, a razão de tantas luzes coloridas. Muitos deliberaram verificar pessoalmente os acontecimentos. E fizeram fila rumo à Samdu Norte, origem do burburinho. A grande ladeira coloriu-se com os tops e roupas de ginásticas de pessoas que caminhavam nos calçadões em busca de saúde e de beleza. Uma Van do transporte alternativo, oportunista, parou no meio da ladeira; o cobrador, após falar todo o itinerário do veículo, perguntava…

— Quem quer subir a ladeira pagando apenas cinqüenta centavos?!

Logo o veículo estava lotado. Mesmo sem lugares, muita gente queria entrar e vencer a grande ladeira pagando apenas cinqüenta centavos. Um outro veículo do transporte alternativo parou incontinente, certamente com a intenção de também se beneficiar. E deu certo. Quando o terceiro veículo manobrou para encostar-se ao meio fio, ouviu-se uma pancada forte. Um velho caminhão sem freios, carregado de entulhos, chocou-se violentamente na traseira de uma das Vans e os dois rolavam pelo precipício lateral. Após, um clarão seguido de grande explosão. O sangue manchou de vermelho a vegetação. Acontecia grave acidente, talvez com vítimas fatais.

O grande estrondo foi ouvido na Avenida Samdu, inclusive no local onde a mãe de Zé Besta glorificava a Deus e agradecia o milagre da ressurreição. Emocionada, pedia ao filho que falasse algo que lhe trouxesse a certeza que tudo era real; não um sonho ou pesadelo.

— Meu filho, fale com sua mãe. Pelo amor de Deus, fale com sua mãe.

Zé Besta, atordoado, sem juízo para entender, abriu os olhos e respondeu com uma interrogação:

— Falar o quê?

— Que aflição, meu filho! Achava que Deus tinha lhe dado o descanso dessa vida.

O atropelado resmungou para si mesmo, como era bem do seu feitio…

— Tou cansado, não; tou é com uma dor nos peitos.

— Onde?

— Nas costas.

— Onde?

— Nos braços

— Onde está doendo? No peito, nas costas ou nos braços? — e concluiu preocupada como todas as mães — Vou levar você ao médico!

A reação de Besta foi imediata. Enrijeceu o rosto magro e falou seguro:

— Médico, não! Vai querer me internar.

— Está doendo onde mesmo, meu filho?

— O corpo todo. Parece que tomei surra de porrete.

— E a cabeça?

— Meio zonza com esse povo todo em cima.

— Vamos para casa.

— Não! A senhora vai me internar.

— Vamos tomar um banho.

— De jeito nenhum! A senhora quer me internar.

— Vamos tomar um copo de leite, pelo menos?

— A senhora quer que eu durma pra me internar. Prefiro morrer.

— Não fale em morte, você acaba de ressuscitar.

A notícia já corria a vizinhança. Até o expediente da agência CNB-12 do Banco do Brasil foi suspenso. O gerente não entendeu a razão dos clientes evadirem-se ao mesmo tempo do estabelecimento. Amedrontou-se. Pensou na possibilidade de um grande assalto, igual ao que a Televisão mostrara na noite anterior, quando mais de quinze ladrões invadiram pequena cidade de Goiás, próxima a Brasília, e assaltaram a agência do mesmo banco. A televisão mostrou a crueldade dos bandidos, armados com fuzis e metralhadoras.

Ainda com a imagem na mente, o gerente da agência deliberou encerrar o expediente externo. Imediatamente, telefonou à Central de Polícia e pediu reforços policiais no limite máximo, para enfrentar quinze ladrões armados até os dentes!

Após o encerramento, formou-se pequena confusão entre funcionários e clientes, principalmente os apressados em realizar depósitos para cobertura de cheques que entrariam pela compensação bancária, logo mais à noite.Todos discordavam do fechamento da agência antes do horário de lei. Neste sentido, Leonardo Pedron, concluinte de Direito na Universidade Católica de Brasília, socou a porta de vidro, exigiu que fosse aberta para acesso do mesmo à agência, sendo-lhe negado. O futuro advogado, dedo em riste, prometeu processar a Banco do Brasil.

— Vou processar esse banco! O horário de funcionamento tem de ser cumprido. Quem vai pagar os prejuízos que cada um incorrerá? Me digam: quem vai pagar meu prejuízo?

Alguém achou por bem perguntar qual o prejuízo do futuro advogado. Pedron, investindo-se na condição de aluno aplicado desde a escola primária, manifestou a razão do seu prejuízo.

— Vim pagar um boleto do concurso para Procurador da República. E hoje é o último dia! Não vou poder participar do concurso, que estou estudando pra caramba e ia passar! Sabe qual o salário de um Procurador? Mais de vinte mil reais! Esse será meu prejuízo. Vou entrar com uma ação de reparação de danos materiais, cujo valor será o salário mensal multiplicado pela quantidade de meses até a minha morte. E ainda vou requerer danos morais. Me aguarde, Banco do Brasil!

Aos presentes na porta da agência bancária só restou aplaudir a confiança do concluinte de Direito e ex-futuro Procurador da República. Que entrasse mesmo na justiça!

Como sempre acontece nessas ocasiões alguém achou por bem convocar a imprensa para flagrar possível agressão aos direitos da coletividade. Pelo celular, ligou para a emissora de televisão de maior audiência em Brasília, que não demonstrou interesse em razão da cobertura de um torcicolo que acometera dona Maria Silva, cidadã brasileira e italiana, esposa do presidente de uma república.

A emissora de segunda maior audiência não garantia enviar reportagem, por conta da chegada do Bispo Valdir Alfredo para inauguração dos novos transmissores, que colocariam a emissora em primeiro lugar na audiência dos brasilienses.

Ante tantas negativas e já com os créditos do celular se esvaindo, deliberou, então, solicitar mesmo a presença da emissora local, que desfrutava até certa aceitação na preferência popular. E tinha uma programação boazinha, principalmente o programa de Valdete Silva, coluna social eletrônica escancarada pelos lábios vermelhos e carnudos da apresentadora.

Aguardaram então a chegada da reportagem para flagrar o desrespeito ao público.

Na Avenida Samdu, local do acidente que vitimou Zé Besta, um veículo estaciona próximo à multidão. Era o padre Manoel Moacir Macedo Simões, mais conhecido como Moacir Simões, vigário da Paróquia Cristo Bom Pastor, com a estola sobre o pescoço e batina branca, que só vestia para ministrar um santo sacramento. Na mão esquerda, pequeno balde com água benta; importante, considerando que faria encomendação da alma do morto. Conduzido ao local onde prostrava o corpo de Zé Besta, o padre anunciou o motivo da presença.

— Vamos encomendar a alma do cristão que morreu!

A mãe arregalou os olhos. Estaria sonhando e seu filho teria morrido mesmo? O providencial Oliveira adiantou-se e fechou a passagem ao padre, enquanto falava em bom som…

— Morreu não, padre!

— Como não morreu? Fui chamado para dar a extrema-unção.

— Mas não morreu, não.

— Me disseram que o corpo estava estendido no asfalto. Foi linchado pela multidão.

— Foi atropelamento, não foi linchamento.

— Levaram pelo menos ao hospital?

Não houve tempo para resposta. Ao ouvir a palavra hospital, Zé Besta levantou-se num pinote! A mãe ainda tentou acalmá-lo.

— Meu filho, tenha calma! Ninguém vai levar ao hospital.

Era tarde. Zé virou-se, mostrou a grande chaga nas costas causada pelo atrito do corpo com o asfalto. Em carne viva! Tentou pegar o saco com suas coisas inválidas. Era pesado, teve dificuldades; deixou o surrão, e, correndo, rompeu a multidão. Atravessou a calçada, desembestou subindo em direção à Avenida Hélio Prates, que dá acesso à cidade de Ceilândia, a maior e mais populosa do Distrito Federal.

Corria sem olhar os lados. Invadiu um cruzamento perigoso, obrigou um automóvel a frear bruscamente para lhe dar passagem. Um ônibus vinha em alta velocidade, o motorista ainda tentou brecar, mas… Impossível! O veículo arrastou os pneus pelo asfalto no barulho característico da frenagem. Ouviu-se uma pancada seca, morta… De morte mesmo!

O povo acompanhava. A mãe desmaiou. Beto porteiro, sem ação, rezou o Pai Nosso. Padre Moacir Simões pediu clemência e louvor. — Tende piedade, tende Piedade, Senhor! Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

Oliveira da barraca viu o motorista do ônibus fugindo. Não tivera culpa; mas, era errado negar socorro. Repetiu a mesma frase: “Não vai dar socorro não, irresponsável?”. Beto porteiro, vendo Zé Besta caído, sentenciou:

— Agora morreu mesmo.

A mãe perdeu os sentidos. Foi amparada por Oliveira, que a conduziu às dependências do condomínio.

Padre Moacir Simões, sem ação, repetia para si mesmo não ter sido o culpado pelo atropelamento. Rezou baixinho o creio em Deus Pai.

Beto porteiro arriscou aproximar-se um pouco do corpo moribundo. Arrependeu-se ainda em tempo; não viu a grande poça de sangue manchando o asfalto, e livrou-se de mais um desmaio. Não acostumado a cenas tão fortes, escorregou direto ao banheiro e danou-se a vomitar.

O povo cercou o corpo estendido no asfalto.

Surgindo do nada, o veículo de um jornal sensacionalista, especializado em sangue, estacionou sobre a calçada lateral. Dois repórteres iniciaram a sessão de fotos já para a próxima edição, logo mais. Procurando melhor ângulo para mostrar o estrago da morte, tentaram até mudar a posição do corpo. Conseguiriam não fosse a posição firme de Oliveira, que impediu a movimentação do corpo, capaz de gerar perda do direito à indenização do seguro obrigatório.

O trânsito ficou lento desde o início da avenida, ainda no centro de Taguatinga. A curiosidade obrigava os motoristas estacionarem nas imediações do acidente, tornando mais lento a fruição do tráfego. Logo, prepostos da fiscalização de trânsito ameaçaram com multa e perda de pontos na carteira nacional de habilitação a quem insistisse parar nas imediações do acidente. Mesmo assim, não conteve a curiosidade de muitos motoristas.

Um veículo preto e luxuoso, do Senado Federal, chapa preta, cortou a multidão. Alguém gritou:

— Está maluco, ladrão! Corre assim porque o carro não é seu. Tira o jornal para a gente ver a cara!

Certamente não era um senador da República. Ou talvez fosse, tudo é possível quando se refere ao Brasil “do faz de conta”, que, infelizmente, é real.

Temendo represálias, o motorista, terno preto, acelerou e o veículo “comeu asfalto”. No banco traseiro, lado direito, indiferente ao murmurinho da morte, o passageiro continuou lendo o jornal. Afinal, precisava chegar ao plenário da casa bem informado.

O ônibus da viação Planan com destino a Águas Lindas, no Goiás, quase não consegue frear. Por pouco não atropela a multidão. Alguém grita filho da puta! O motorista pede desculpas, e segue para a cidade que mais cresce no Brasil. Em pouco mais de dez anos a população pulou de dez mil para cem mil habitantes, trazendo todas as mazelas de um crescimento urbano desordenado. Quem quiser posgraduar-se em urbanização deve fazer estágio em Águas Lindas. Sairá doutor em situações urbanísticas inusitadas.

Uma vendedora de mingau de milho assentou o tabuleiro próximo à multidão. Colocou o cartaz: “Promoção — ingau, só cinqüenta centavos”, esquecendo a primeira letra da palavra. Várias pessoas acorreram ao ingau de cinqüenta centavos. Alguns não sabiam nem o que era; indagavam: “O que é ingau, que a senhora está vendendo à cinqüenta centavos?”. Mingau, ora… — respondia a mulher. Está escrito ingau, informou a cliente. A do mingau pediu desculpas; culpa da neta que ainda não sabia escrever direito.

A senhora que vendia cuscuz-com-ovo ao pé de um canteiro de obras, cuja clientela era trabalhadores nordestinos apreciadores da iguaria, parou ao lado. Perguntou se podia também vender ali. O chão é público, minha filha, respondeu a do mingau. “Vou atrapalhar? Por que esse povo todo?”. A do mingau respondeu desinteressada…

— O que é, não sei; vi o povo e parei pra vender meu mingau. Hoje está ruim mesmo…

Aparece a irmã de Zé Besta, Maria do Carmo. Meu irmãozinho… Debruçou-se sobre o corpo duplamente atropelado. Como é grande a dor de perder um irmão querido, confessou.

Lúcio Vargas, residente no condomínio Juscelino Kubistchek, saia ao trabalho, cumpridor dos deveres de servidor público. Antes foi conferir a tragédia. Assustou-se ao saber ser a vítima Zé Besta, a quem conhecia e via passar diariamente com o grande saco de molambo nas costas.

— Um bom rapaz. Ninguém falava mal dele, fora o fato de tomar banho nu de vez em quando.

— Muito errado, seu Lúcio; cometia atentado ao pudor.

— Mesmo assim, só tomava banho nu de madrugada.

— Conheço gente que prometeu surra a ele.

— A vida já o maltratava demais. Veja aí o resultado… Se o governo de Brasília fosse outro, esse coitado não ficaria à toa na vida. Queria que o Presidente Lula tomasse conta também de Brasília. Com certeza criaria um bolsa família só para Brasília, que, afinal, é a capital federal. Pelo menos quinhentos reais por família para moradia, alimentação, saúde e escola. Esse coitado não seria um doutor; mas, pelo menos o nome assinaria. Estudar é terapia, não sabia? É a vida, seu moço. Esse já se foi. Quantos ainda morrerão pelos caminhos empedernidos da vida?

Lúcio Vargas despediu-se. Era petista doente, capaz de fechar os olhos às mazelas de um partido político que de vez em quando pisava na bola. E os outros partidos que pisaram na bola por mais de quinhentos anos? Defendia com unhas e dentes o direito do homem errar de vez em quando. E um partido político era como se fosse uma pessoa!

Quando Vargas iniciava a preleção política era momento dos ouvintes cuidarem de outras obrigações. Em pouco tempo o petista perdia a platéia, o que não o incomodava. Sabia que a insistência era virtude importante. Quer exemplo melhor que o próprio presidente da república, que não desistiu nunca de ser o mandatário do país, elegendo-se só depois de três derrotas? Não fosse a insistência e o Brasil ainda estaria sob o jugo imperialista. O Brasil ficou livre do FMI, minha gente!

Quem o ouvisse naquele dia o chamaria de doido. E era mesmo: doido pelo partido, pelo presidente, pelo Brasil! O dia em que o Brasil pagou o último “tostão” ao FMI foi um dia de glória para Lúcio Vargas. Manhã cedo, assim que ouviu o barulho das portas da igreja Cristo Bom Pastor abrindo-se, caminhou para a oração matinal; desta vez com muito mais afinco e satisfação porque agradecia a libertação do Brasil da maior praga do mundo: o famigerado FMI.

Uma vez lhe perguntaram o que achava de George Bush, presidente dos Estados Unidos da América. Vargas respondeu bem ao seu modo: “Não quer perguntar também o que eu acho do Chávez, da Venezuela, ou do Evo Morales, da Bolívia?”. Ante a estupefação do interlocutor, Vargas respondeu solene e forte: “Meu amigo, eu gosto é do Brasil, é do Lula!”. E encerrou a discussão. Pegou o guarda chuva, recolheu na pasta e partiu para o cumprimento das obrigações de servidor público federal.

O vento frio indicava passagem de uma nuvem carregada. A mãe implorou compaixão.

— Meu Deus, não deixe chover agora. Meu filho no asfalto quente, com essa chuva fria vai estuporar.

— Dona Zilda, Zé já descansou dessa vida, lembrou Oliveira da barraca.

— É uma injustiça, seu Oliveira. Meu filho tinha problema da cabeça, mas era muito jovem. Por que não me levou, que sou velha e só ando doente?

Uma sirene anunciava a chegada de algum carro oficial. Como a polícia militar já tomava conta do local, identificaram a chegada da polícia de trânsito. Do veículo desembarcam mais autoridades do trânsito com os talões de multa ostensivamente à mostra.

— Não estão vendo que o trânsito está obstruído?

— A culpa não é nossa; é de quem matou, responderam.

— E quem matou?

— O ônibus.

— O ônibus não tem culpa; culpado é o motorista. Onde está ele?  Vamos tirar o corpo do asfalto.

A reação foi imediata.

— Não pode, o morto vai perder a razão!

— Amigo, a autoridade de trânsito aqui sou eu.

— Autoridade de quê? É polícia? Autoridade só policial. Não mecha no corpo. A família do morto vai perder a razão — decidiu Oliveira da barraca, que concluiu o raciocínio — E dinheiro também!

— O senhor está enganado. Não há dinheiro em jogo, replicou o agente de trânsito.

— E o seguro? O seguro obrigatório vai indenizar a família e pagar os funerais. O advogado disse que não deixasse mexer no corpo antes da perícia. A mãe do morto, inclusive, até já assinou procuração em branco para ele correr atrás da indenização.

— Quem é o advogado?

— Ela não conhece; mas mostrou os documentos; é advogado mesmo. Assinou a procuração em branco. Ele disse que quando encaminhasse os papéis telefonaria.

Maria do Carmo aproxima-se chorosa.

— Que aconteceu, meu irmão? Foi embora tão novo! E nós, como ficaremos? Nunca mais vou levar seu café. Prometi que seu pão ia ser com manteiga todo dia. Muita manteiga mesmo, com requeijão cremoso, ovo…

Oliveira chama a atenção da irmã. Para que dizer essas coisas? Maria do Carmo responde que perdeu o irmão querido e quer desabafar. E diz mais:

— O senhor sabe quem cuidou dele quando era menino? Essa irmãzinha aqui! Fazia xixi no meu colo! Todo dia eu lavava fraldas. Era muito trabalho, mas fazia com satisfação. Teve uma diarréia, quando menino, que quase morre.

— Maria do Carmo, não diga essas coisas.

— Digo, sim! Falo mesmo, pra desabafar. O sarampo quase mata Zé. Ficou couro e osso, cagando sangue de dia e de noite. Pensei que fosse morrer. Obrava era sangue mesmo!

— Maria do Carmo, o que é isso?

— É pra desabafar. Minha avó curou a obradeira de sangue com chá de umburana de cheiro. O café dele era umburana. Meio dia, antes do almoço, umburana; de noite também umburana. Lembro que Zé pedia: “Deixe eu ficar cagando sangue mesmo; não quero mais tomar umburana. Já estou com a barriga toda furada por dentro de tanto tomar umburana”. Minha avó ordenava: “Vai tomar, é pra seu bem. Menino teimoso apanha de chicote”. Zé se encolhia e bebia o chá. Mais tivesse! A avó aparecia com o chicote de cavalo, perguntava se Zé não ia tomar o chá. Ele, amedrontado, respondia: “Tem mais, vinha? Traga logo; mas não me bata com esse chicote”. Coitado… Mirrava na frente do chicote. Ficava mais miúdo ainda.

A mãe intervém:

— Do Carmo, está me fazendo passar vergonha.

— Mãe, quero desabafar, me deixe falar. A senhora também tem culpa. Deixava minha avó tomar conta da casa, bater na gente. Meu irmão ficou doente da cabeça por causa dela. Uma vez, só porque chegou tarde para almoçar, tomou surra. Não agüentando a dor, pediu socorro. Eu já era mocinha; abri os braços para amparar aquela criança, mas foi tarde. Escorregou num cocô de galinha…

— Não foi numa casca de banana?

— Num cocô de galinha! Naquele tempo, banana era raridade e se comia até a casca. Escorregou no cocô daquela galinha preta de pescoço pelado.

As pessoas ouviam. Sargento Jânio, valente e sempre superior aos paisanos, sentia-se desencorajado para se manifestar. Beto porteiro usava pedaço de toalha velha como lenço; soava o nariz. Após uma forte soada, declamou:

— Está parecendo filme. Será que foi assim mesmo?

Falou tão baixo que ninguém ouviu.  Soou o nariz novamente. Carlomar, o zelador, informou-lhe que o síndico o chamava, pois a bomba d’água do edifício apresentara defeito. A resposta foi lacônica.

— Só vou quando o corpo de Zé sair do asfalto.

— Ele não era nem morador do prédio — argumentou o zelador.

— Morava lá, sim; dormia e comia lá, escovava os dente e tudo.

— Mas não morava em apartamento.

— Não adianta; pode dizer: só vou depois!

A irmã soluçou. Alguém sugeriu baixinho que fosse para casa, descansar. A reação foi pronta:

— Descanso, pra mim, agora, só o eterno. Quero me desabafar.

— Desabafe em casa. Vá dormir um pouco.

A irmã nem ouviu. Prosseguiu no relato fantástico:

— Meu irmão nasceu doente, não; era menino gordo, saudável. Inteligente. Brigão que só ele. Tinha coração bom. Dava o que tinha. Dividia comida e até os brinquedos. Era mais moço do que eu, mas não mijava na cama. Minha mãe dizia: “Não tem vergonha? Moça já, ainda mija na cama? Seu irmão menor não mija”. Minha avó saltava lá, bruta que nem ela: “Quer que eu tire essa mania dela, agora? Quer saber como?”. Eu não deixava minha mãe responder; gritava: Não deixe não, mãe! Ela quer me bater com chicote de cavalo. Antes de fechar a boca, a avó já empunhava o chicote: “É isso mesmo! Vai apanhar de chicote! É uma mijada e uma chicotada!”.

A mãe, em frente ao corpo, implora:

— Minha filha, pelo amor de Deus, pare.

— Quero desabafar. Não agüento ficar com isso no juízo. Meu irmão não nasceu doido; ficou doido! Acho que também vou ficar.

Beto porteiro, após retirar a toalha do nariz, arrisca um conselho:

— Maria do Carmo, gosto muito de você. Vou lhe pedir uma coisa.

— Deixe de ousadia, cachorro! Vai pedir o quê? Sou moça. Vivia pra dar comida a meu irmão.

— Não é isso. Eu queria…

— Queria nada. Se tivesse aqui o chicote de minha avó, você ia ver. Me respeite! Saia de perto de mim.

— Maria do Carmo, por favor…

— Não me peça nada, seu Oliveira. Quero desabafar. Me deixe desabafar.

Padre Moacir Simões aproxima-se com o missal na mão…

— Louvado seja Deus! Cada um tem seu momento. Deus faz o momento de cada um. Descanse em paz, à direita de Deus Pai. A senhora era o quê dele?

— Eu? Era mãe dele.

— E eu, irmã, padre.

— Aceitem as determinações de Deus.

A mãe resignou-se… “Assim seja, padre”. A irmã arrebitou o nariz.

— Não posso entender… Tanta gente ruim, e levou logo meu irmão que não fazia mal a ninguém. Tanto ladrão por aí, chamou logo meu irmão que era tão bom.

— Qual a idade dele? Trabalhava em quê?

— Em nada, padre. Vivia da ajuda de Deus.

— Era desempregado?

— Nunca trabalhou. A vida não deixou.

— Mas procurava emprego?

— Era fraco do juízo. A família o sustentava. Não tinha vício. Não fumava nem bebia — interferiu Oliveira.

— Louvado seja Deus.

Alguém respondeu com voz limpa para sempre seja louvado!

Um senhor alto, cabelos penteados, camisa social; perguntou como tudo acontecera.

— Agora há pouco. Foi um ônibus, mas o motorista não teve culpa. Quem é o senhor?

— Não está me reconhecendo? Você votou em mim — torna o distinto.

— Eu? Votei mesmo! Como é o nome do senhor?

— Sou o deputado…

— É o senhor? Como soube que votei no senhor?

— Quase todos os moradores de Taguatinga votaram em mim. Quero saber se precisam de alguma coisa. — Maria do Carmo solicita a volta do irmão. — Impossível! Só Cristo ressuscita. Seu irmão ressuscitará, sim; mas não agora.

— Quando então?

— No dia do juízo final. Diz a bíblia, ninguém morrerá eternamente. Pelo contrário, após a morte é que começa a vida eterna, a que nunca terá fim.

— Então ofereça o que pode dar.

— Temos carro para transportar o caixão, serviço de som para anunciar a morte e tocar músicas fúnebres.

— O senhor dá o caixão?

— Posso tentar junto à Administração Regional, mas, não garanto. Com essa nova lei de responsabilidade fiscal…

Chegaram outros moradores do prédio. Hélio Idálio não se conformava… — Bom menino, sim; morreu de graça.

— Chegou a hora dele, seu Hélio — retruca Beto porteiro.

— A hora quem faz é Deus, seu bestão. Quando Deus faz a hora ele mesmo leva. Atropelamento não é chamado de Deus. Sabe o que acho mesmo? Culpado foi o síndico. Se deixasse o rapaz subir ao apartamento da mãe, nada teria acontecido.

— Mas seu Hélio…

— Proibiu ou não proibiu?

— O síndico proibiu foi cachorro subir pelo elevador.

— Então me informaram errado.

A irmã desperta da latência…

— Como é a história? O senhor está chamando meu irmão de cachorro?

Beto porteiro conhecia a sanha de Maria do Carmo; cuidou de remediar.

— Deus me livre, dona Maria do Carmo! Eu chamar seu irmão, meu amigo, de cachorro?

— Acabou de dizer que o síndico proibiu cachorro subir de elevador, por isso meu irmão não ia até a casa dele. Pois se era da mãe dele, era dele também! Era doido, mas muito digno. Nunca quis subir porque não trabalhava. E achava que, sem trabalho e sem dinheiro, não tinha direito de morar em casa. Foi só por isso.

A mãe, Zilda, desilude-se.

— Do Carmo, por favor… Que sina, meu Deus! Foi um e ficou outro.

— A senhora quer me proibir de defender a memória de meu irmão? Ou quer que eu vá também? É fácil; quer?

— Pare com isso. Respeite seu irmão.

— A senhora é que não está respeitando. Ouve falar mal dele e nada diz. — Beto escapuliu feito cachorro medroso, esquivando-se de Maria do Carmo; esta não o perdoou. — Cachorro é você! E não venha com ousadia, nunca olhei pra você.

Da caminhoneta branco-suja do Instituto Médico Legal saem dois peritos.

— É o rabecão!

Deram passagem. Os homens, macacões cor cinza, traziam a morte no semblante.

— Dá licença!

O de bigode tomou a frente, descobriu o corpo. Virou o rosto para não ver…

— O negócio foi feio…

A mãe chora novamente.

— Que triste fim, meu filho. Criei com tanto mimo. Freqüentou as melhores escolas. Mal aprendeu a escrever o nome…

O chefe da equipe, registrando na prancheta, pergunta o nome; ninguém respondeu. Perguntou novamente. Carlomar, o zelador, não compreende…

— Nome de quem? Pergunte à mãe dele. Está sentada ao lado.

O perito preferiu localizar os documentos no bolso do defunto… — Ele deve ter documentos. — Enfiou a mão num dos bolsos traseiros; traz um pedaço de tecido…

— Que diabo é isso!

Retira a mão, amedrontado. A irmã reprova.

— Está metendo a mão no bolso do meu irmão? Ele não é um joão-ninguém. Tem mãe e irmã!

— Senhora, eu só queria os documentos dele.

— Por que não pediu?

— Pedir documentos a morto? Ele não daria. Os documentos devem estar no bolso. Posso procurar? Sou um funcionário honesto.

— Disso não sei, não o conheço.

— Aí fica difícil! Vou embora e o corpo fica aí. Então a senhora retire os documentos, por favor.

— Quer saber o quê?

— Nome.

— José de Arimatéia Gusmão. Era conhecido como Zé Besta.

— Nome da mãe.

— Zilda de Gusmão.

— Idade…

— De quem? Dele ou da mãe?

— Da mãe.

— Mãe, quantos anos a senhora tem?

A mãe levantou a vista…

— Se quiser a idade do meu filho morto, 46 anos. A minha, esqueci.

O legista contorna. — Deixe pra lá. Número da carteira de identidade.

— De minha mãe?

— Do defunto.

— Aí só com ele. Aliás, nem ele.

— Então, teremos mesmo que procurar no bolso.

O perito amarrou o lenço no nariz, como máscara. A irmã reprovou.

— Pra que esse lenço, moço? Meu irmão está fedendo?                   — Um pouquinho só; o uso da máscara é normal — respondeu o legista enquanto calçava as luvas. A mulher reagiu: — Não quer nem pegar? Está com nojo?

— Fazemos perícia em muitos cadáveres, inclusive portadores de doenças contagiosas.

— Quer dizer que meu irmão está tuberculoso?

— Não sei disso, não. AIDS é doença contagiosa; nem por isso afirmei que seu irmão está com AIDS.

Retira da caixa grande lâmina, amedrontando a irmã:

— Pra que essa facona? Vai acabar de matar.

 

Após alguns procedimentos o corpo foi engavetado e enfiado na caminhoneta. Portas fechadas, Zé Besta foi encerrado no compartimento escuro do rabecão. As pessoas acompanhavam atentas. Oliveira lacrou a barraca e foi prestar solidariedade cristã, a muitos surpreendendo. Poucos supunham tão intensa a amizade que o ligava a Zé Besta. Não era bem amizade, confessaria depois, era solidariedade cristã mesmo:

— Os ensinamentos de Cristo sempre mostram o caminho de ajudar ao próximo como a nós mesmos.

Beto porteiro acompanhou o trabalho dos peritos. A intenção era provar a si mesmo que podia ver sangue sem desmaiar. Que era capaz de ver um defunto, um cadáver, sem que, à noite, a insônia lhe tomasse a vontade de dormir.

Permaneceu sempre bem próximo ao cadáver. Então, observou que defunto é diferente de gente viva. — É mesmo, seu Hélio Idálio! — reafirmaria depois em conversa com o morador. — Mal a pessoa morre o corpo se transforma, fica cor de cera, sem vida. — Hélio Idálio achou engraçado, sorriu e perguntou se algum dia Beto já vira um cadáver com vida. Depois da pilhéria, concordou; de fato, processava-se grande mudança no corpo assim que se esvaía o último suspiro de vida. Beto perguntou por que isso acontecia. A Hélio Idálio restou justificativa bem concreta para a percepção semi-analfabeta de Beto:

— O sangue pára de correr, coalha nas veias. Sangue é a vida, Beto!

E lembrar que ele, Beto, não podia ver a vida, aliás, ver sangue, que é vida, pois desmaia. Prometeu ficar bom, curar-se desse mal. Para demonstrar que evoluíra permaneceu ao lado do cadáver até os últimos momentos.

A irmã Maria do Carmo continuou a cantilena do desabafo. E desabafou mesmo, relatando a vida familiar antes do domicílio na capital federal. Quem diria que José de Arimatéia Gusmão, o Zé Besta, fosse neto de fazendeiro de gado, dono de roças de cacau, de carnaúba e de mamona? Morar na capital do país foi um acidente. O avô vendera duas fazendas e comprara um apartamento em Brasília por ser eleitor e defensor ardoroso e perpétuo de Juscelino Kubistchek, o maior presidente que o Brasil já teve!

A finalidade do apartamento era alojar Zilda na capital para que pudesse tratar a doença de Zé Besta. A loucura o acometera menino ainda, no interior da Bahia, onde morava. A vinda a Brasília tinha como objetivo a cura do desequilíbrio mental.

O efeito foi contrario; o tiro saiu pela culatra, como dizia o avô nas poucas visitas aos netos, na capital federal. A grande bruaca[3] de couro cru, abarrotada de beijus, rapaduras, doces e mel de abelha, trazia a fartura do sertão chuvoso para o Distrito Federal. O velho, cujo nome era João Gusmão, não saia do apartamento nem para a igreja, que ficava a duas quadras. Era o medo de morrer atropelado, não acostumado com tantos veículos indo e vindo sem bater um no outro nem subir nas calçadas. Gastava o tempo assistindo televisão. Dormia sentado, à frente do aparelho; depois acordava, assistia; depois dormia; depois acordava… A quem lhe dissesse que dormira, negava sempre. Nunca dormia durante o dia, pois o dia dele era para o trabalho!

Quando menino, no interior da Bahia, Zé de Arimatéia gostava da companhia do avô. Ás vezes, inventava doenças para não ir à escola e gozar a presença de João Gusmão. À troco de surras a mãe não o deixava faltar sequer a um dia de aula. — Já viu filho de pobre não querer estudar? Vai virar carroceiro! — e tome-lhe chicote!

Com a morte do velho pai, Zilda concordou vender as propriedades rurais e mais alguns terrenos urbanos. Apurada sua parte no espólio, mudou-se definitivamente para Brasília, arranchando-se em Taguatinga, uma cidade alvissareira. O dinheiro da herança permitiu-lhe comprar três apartamentos, inclusive esse, onde mora. A manutenção familiar provém dos aluguéis; embora defasados, permitem sobrevivência digna.

Anos depois, a filha Maria do Carmo enfrentou concurso público e assumiu vaga de atendente na administração pública distrital, quando a concorrência pelo emprego público ainda não era tão absurda. Bastava submeter-se ao concurso e esperar ser chamada, nem que fossem dez anos depois. A Constituição Federal de 1988 é que criou esse negócio de validade de concurso público.

A filha colabora nas despesas domésticas com o pagamento das contas de luz e do condomínio residencial.

Do Carmo não resistiu quando o corpo do irmão foi recolhido pelo IML. Acometeu-lhe grave crise nervosa. Pedia que não o levassem. Gritava, uivava, arrancava os cabelos! Não levem meu irmão! Oliveira tentou confortá-la, foi repelido. Beto porteiro nem pensou aconselhar ante o estado da mulher. Padre Moacir Simões, ainda presente, orou em voz alta, pedindo a Deus que confortasse a família aqui na terra. Mas não houve meios de acalmar o histerismo da irmã.  Cada vez mais descontrolada, arrancava os cabelos e azunhava o rosto. Por fim, levantou o vestido e mostrou as roupas íntimas em ritual histérico nunca visto. A mãe determinou:

— Pare, do Carmo!

A resposta veio imediata:

— Até isso, minha mãe? Nem chorar a morte do meu irmão eu posso?

— Você não está chorando a morte do irmão; está levantando a roupa. Não tem vergonha? Baixe essa roupa!

Maria do Carmo assustou-se e foi chorar nos ombros da amicíssima e colega de trabalho, Maria dos Anjos. As más línguas afirmavam que dos Anjos tinha caso com ela, Maria do Carmo.

[…]

Essa é apenas uma amostra de O Legado da Loucura. Uma leitura célere em busca do final da trama.

Adquira o Livro nas principais livrarias ou diretamente no site/loja do Autor: astrogildomiag.com.br


Opinião do Leitor:

Caro Astrogildo,
Acabei de ler hoje, “de um fôlego só”, o interessantíssimo “Era uma vez um comunista”. Despretensioso e irreverente, entremeando as passagens cômicas descritas, você pintou um forte retrato do Brasil real, palco ainda nos dias atuais, da irresponsabilidade pública e das consequências do descaso governamental histórico com as necessidades e direitos dos cidadãos comuns. Em cada personagem do livro reconhece-se alguém com quem se convive ou já se conviveu em algum momento. No meu caso, conheço mesmo um deles, o Glicério, colega da saudosa FSESP, hoje FUNASA.

O linguajar, típico baiano, nos remete ao cotidiano de uma cidade que entranhada na alma de quem nasce ou vive lá, mescla em sua paisagem geográfica e social o belo, o sofrido, a capacidade de superar adversidades, de encantar e de transmutar-se em deslumbrante templo de vida, apesar de tudo.

Alguns dos principais conflitos e ritos de passagem que vivemos ao longo da nossa vida estão ali personificados no “comunista” que intitula o livro.

Certamente muito mais teria a comentar, mas quero finalizar com as minhas congratulações sinceras e admiração pela sua obra, pela sua capacidade de transformar em ouro literário o cotidiano paradoxalmente comum e singular, com personagens que facilmente poderiam se reconhecer também nos versos do genial Fernando Pessoa em seu “Poema em linha reta”:

“ …Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?…”

Grande abraço, R. Castália

 

Mensagem Inicial

Nada na vida é o porto final. Ao ser alcançado, passará a se constituir em porto intermediário, passagem para outro porto que será, transitoriamente, o final.

A insatisfação natural do homem só termina com a morte.

Lute pelos seus sonhos!

 

Algumas Palavras

 

É importante registrar o caráter de veracidade de Era uma vez um Comunista, sombreado por acontecimentos reais do calendário histórico do Brasil. Espelha parte da minha vida — talvez a mais importante, feliz e difícil ao mesmo tempo — e deve ser apresentado de duas formas. Primeiro: Como concretização do inconsciente do escritor, manifestação da inspiração e sensibilidade artística. Aqui, permitimo-nos o embaralhamento de situações díspares, tendo como referenciais o cotidiano de um condomínio residencial classe média e a Copa do Mundo de futebol realizada na França, em 1998. Segundo: Como manifestação consciente do cidadão frente aos inumeráveis problemas do brasileiro comum, sobretudo o desrespeito à dignidade humana.

O livro aborda questões relacionadas com saúde pública, educação, segurança, habitação popular, emprego e preservação ambiental — direitos garantidos pela Constituição e negados pelo cotidiano. Mostramos flagrantes da atuação político-partidária como elemento — não de libertação, mas —de opressão e manutenção da exploração sobre o cidadão.

O referencial espacial do relato é o Condomínio Residencial dos Colibris, especialmente o edifício Araratuba, bairro Imbuí, em Salvador, Bahia, onde ficaram vinte anos da minha vida. Boa leitura.

O Local

 

O condomínio residencial Quinta dos Colibris é um dos muitos condomínios do bairro Imbuí, reduto da classe média de Salvador, capital da Bahia.  Seu maior fomentador foi o Pólo Petroquímico de Camaçari, na Região Metropolitana. Os comerciantes prestigiavam os petroquímicos que visitassem suas lojas: bons compradores e excelentes pagadores. Com nível salarial acima da média, realizaram verdadeira revolução no perfil do bairro. Grandes condomínios foram financiados pelo antigo Sistema Financeiro Habitacional. A iniciativa privada construiu para todos os gostos e o poder público obrigou-se a criar condições de habitação. Um dos problemas era a infestação de muriçocas. Nuvens do inseto invadiam os lares. Ninguém suportava e o queixume era geral.

— Até hoje me arrependo de ter vindo morar aqui; nunca vi tanta muriçoca! — queixava-se Raimunda Santos, moradora do segundo condomínio ali instalado. Ela mesma procurava a resposta. — Deve ser esse esgoto; nascem ali, embaixo do mato e do capim.

Esgoto era o nome emprestado ao rio Cascão. Cortava a grande Avenida Paralela, uma das principais da cidade, e desembocava no Imbuí, até então local ermo.

O rio Cascão formava linda lagoa na entrada do bairro. As empresas de construção civil trouxeram a morte à lagoa. Apareceram os donos do terreno onde ela, a lagoa, deitava desde tempos imemoriais. Criou-se uma associação de moradores para defender o direito de a lagoa permanecer lagoa, mas os poderes públicos não deram ouvidos. A bonita lagoa foi sepultada no sentido mesmo da palavra. Centenas de caminhões com entulhos sepultaram o acidente geográfico para construção de um shopping. Para não matar também o rio Cascão (pai da lagoa ou o contrário?) deliberaram deixar um veio para que ele, o rio, mesmo se espremendo, corresse rápido para o mar. Se demorasse, também seria morto. Aliás, quando estas linhas forem publicadas talvez já nem exista o rio Cascão. — A defesa de interesses difusos, como o meio ambiente, na Bahia, não tem merecido ações práticas e precisas dos órgãos constitucionalmente responsáveis por tal.

Depois veio o asfalto. Grande avenida cortou o local. Deram-lhe o nome Jorge Amado, homenagem ao baiano escritor-mor. Na pressa da inauguração, vésperas de contenda eleitoral, esqueceram a rede de esgotos, ou seja, o saneamento básico. Às casas, residenciais e comerciais, restou a alternativa de recolher seus dejetos em fossas sépticas.

Nascia um novo bairro. Nome bonito, atraiu as classes média e baixa ascendente: quem melhora de vida quer viver melhor. E o Imbuí, de braços abertos, aceitou mais condomínios que ocuparam áreas tidas como devolutas; na verdade, terrenos na engorda, esperando valorização. Os donos dos terrenos, as próprias construtoras, prometiam o céu a quem se dispusesse a habitar as delícias do bairro. Os jornais estampavam: “O novo eldorado, com infra-estrutura de primeiro mundo! Garanta seu lugar para o resto da vida!”.

Ao mesmo tempo, proliferavam fábricas de invasões. Grileiros e corretores aliaram-se a comerciantes e ocuparam as margens da avenida. Continuaram invadindo, mesmo nas barbas de altos funcionários públicos, vereadores e deputados estaduais que escolheram o bairro para residência. Num fim de semana construíam uma casa; Segunda-feira já amanhecia pintada, com energia elétrica clandestina e roupas estendidas no varal — como se habitada já fosse. Era comum não se demolir construção em terreno público, uma vez habitada. Curiosamente tal só ocorria no Imbuí. Em outros locais a Prefeitura derrubava construções já habitadas, inclusive um condomínio inteiro na fronteira com o município de Lauro de Freitas, na grande Salvador. Mas, no Imbuí, os invasores estavam salvos. Por quê? — não me perguntem.

Uma empresa de máquinas pesadas devastou dunas inteiras e fez loteamentos. Cansada e satisfeita, deliberou estabelecer-se na própria avenida, onde construiu sua sede. Os grandes invasores, casas comerciais e mansões, nunca foram importunados; mas, todas as tentativas de pequenos invasores eram rechaçadas pela Polícia.

Por essas razões o Imbuí inchou. Os problemas apareceram, embora ainda seja um bom lugar para morar. Nesse local, exatamente na Rua dos Tucanos, está encravado o Condomínio Colibri. Composto de cinco prédios de dezoito andares, administração geral mais um síndico em cada condomínio: Edifícios Araratuba, Ararataba, Ararabóia, Araguaçú e Aramirim.  Formam um conjunto bonito dominando a entrada do bairro. Este relato acontece preponderantemente no edifício Araratuba.

 Foto da lagoa

 I

 O síndico geral, Ricardo Braga, convocou reunião com síndicos de todos os prédios do condomínio, no salão de festas do Edifício Araguaçú, onde morava. Feitas as apresentações, só o Araratuba era ausente. Logo chegou seu representante; pediu desculpas; providenciava conserto da bomba d’água para que, ao chegarem do trabalho, todos encontrassem o líquido nas torneiras. Alguém indagou se o prédio não dispunha de bomba reserva. A resposta foi desalentada: Como, se não tinham dinheiro nem para pagar o elevador, há oito meses atrasado! A Empresa já acionara, inclusive, o condomínio na Justiça. Imaginem dezoito andares carregando compras nas costas! Sugeriram encaminhar à justiça; Pequenas Causas era para aquilo mesmo! A resposta foi conclusiva… Nada obrigava se a pessoa não tinha como pagar. E não adiantava nem protestar no cartório, pois quase todos já estariam com o nome sujo na praça.

— Quem não pode pagar que se mude!
— Vou seguir o conselho. Também estou atrasado, três meses. Qual a moral para cobrar? Até o síndico atrasado…

A representante do Ararabóia, Leda Silva, pediu pressa, tinha muitas provas para corrigir. Era professora, trabalhava de manhã, de tarde e de noite. Só participava da reunião porque a Universidade da Bahia estava em greve novamente e mais uma vez. A reunião foi aberta. O síndico geral lembrava ser o assunto do interesse de todos. O bairro crescera, a população duplicara e maior população significava mais problemas. Inclusive, um casal de moradores fora assaltado na área interna do condomínio. Os ladrões colocaram a mulher na mala do veículo e percorreram toda a cidade à procura de um caixa eletrônico. Nenhum funcionava, pois, nervoso, o marido esquecera a senha. Os seqüestradores resolveram incendiar o veículo. Aí não teve jeito; o marido abriu o jogo…

— E estavam jogando, seu Ricardo, inquire Gildete Silva, moradora do Araratuba.
— Estavam quebrados, dona Gildete!
— Essa parte o senhor já disse. Os caixas eletrônicos, com defeito ou quebrados, não funcionavam.

— Quem estava quebrado era o casal! Sem dinheiro na conta bancária, ficaram com medo de informar. Graças a Deus terminou bem. Os ladrões aceitaram receber outro dia.
— Foram até bonzinhos…

Ricardo Braga retoma a reunião. Aquela não era a única história. Aconteciam coisas no condomínio que nem eles, síndicos, tomavam conhecimento. Gildete Silva pede a palavra.

— Tem um porém, seu Ricardo; nem todos aqui são síndicos. Eu mesma, não sou síndica; estou substituindo o subsíndico.

— Essa é uma reunião do condomínio geral! Quem representa cada prédio é o síndico; na falta deste, o subsíndico, rezam os estatutos — argumenta o síndico geral, que prossegue. — Como dizia, muitos acontecimentos nem chegam ao nosso conhecimento. Vejo a hora de ocorrer um fato mais grave, um crime.

— Já aconteceu, seu Ricardo; e mais de um. Até crime de morte. O senhor ainda não era síndico.
— Desculpe, mas, desde a criação do condomínio, há quinze anos, só teve um síndico geral.

— O senhor, certo? Por que só o senhor foi síndico, não me leve a mal… — questiona a mesma Gildete Silva. — Por uma razão simples: a senhora quer ser a síndica geral? Não quer, Deus a livre? Por isso fui o único síndico até hoje.

O síndico geral chama a atenção. Já era tarde; no outro dia, Segunda-feira, dia de branco na gíria popular, todos trabalhariam. A discordância foi uníssona. — Amanhã, não! É dia de Brasil e Escócia. Não vai assistir ao jogo? A partir das nove começam os flashes diretos da França. — O jogo não será às treze horas? — lembra o síndico. — Vou trabalhar; as doze e meia paro, assisto ao jogo e volto ao trabalho. —A seleção deveria ter essa garra para jogar, seu Ricardo! — deseja Gildete.

Araçá, moreno acaboclado, porteiro do Araratuba, deseja falar com o síndico de lá, do Araratuba. É urgente, seu Eli! Se for assunto do condomínio pode falar, responde o síndico. Na vista de todo mundo? Os homens do elevador chegaram com dois soldados. O elevador está empenhado. — resume o porteiro.

— Que história é essa? Elevador empenhado? — Elivelton compreendeu… — Vão me crucificar. Estão levando o elevador. Não falei que estava atrasado oito meses? Tenho pressão alta, vou enfartar. Um copo d’água, por favor… — Foi se inclinando, lastimando-se… — Pior é que nem eu paguei. Vão me crucificar…

Araçá, o porteiro, esperava as ordens; pergunta o que fazer. Eli responde não estar se sentindo bem. O senhor é de onde? Estou conhecendo o senhor, não sei de onde…

— Agora foi que deu. A polícia esperando e o senhor com brincadeira. Deixo levar o elevador?
— Para mim tanto faz, não é meu.

O síndico geral pediu que chamassem um médico, o homem estava em vias de um colapso. Inexistindo aquele, pediu uma ambulância. Lembraram do veículo do morador do 803, edifício Aramirim. Convocada, a Van estacionou para a viagem. Chamaram o síndico… — Eli, você não está se sentindo bem. — pegam pelo braço — Vamos ao médico. É rápido. Chegar e voltar.

— Não estou doente para ir a médico. Querem me tirar porque estou ganhando. Hoje é meu dia de sorte. Não saio de jeito nenhum! — delirou Eli, viciado em jogo de cartas.

A notícia se espalhou. Na portaria do Araratuba a conversa era uma só: Eli, o síndico, fora internado com problemas mentais hereditários. Com o pai acontecera o mesmo. E já tinha um irmão engenheiro perambulando pela vida. Perambulando como? Não é engenheiro? — admirou-se um dos porteiros. — Ficou doido de tanto estudar matemática, responde o outro.

— Ainda bem que nunca gostei de matemática.
— Você nunca estudou. Quem descobriu a América?
— A América, não sei; mas, o Brasil, foi Pedro Alves Cabral.
— Errou. Pedro Álvares Cabral. Pedro Álvares!
— Esse mesmo. Pedro Alves Cabral.
— Deixa para lá. E quem descobriu o caminho para as Índias?
— Não sei. E tem caminho para índia?
— Não falei índia. Falei Índias. São completamente diferentes. Índia é uma mulher do mato e Índias é um lugar.
— Você me acha com cara de quê?
— De burro. Não sabe também quem foi Pero Vaz de Caminha? Vasco da Gama, você sabe quem foi.
— Quem foi não; quem é! Time do Rio de Janeiro. Foi campeão no ano passado.
— É burro mesmo. Vasco da Gama foi o descobridor do caminho para as Índias.
— Está mesmo encabulado com essa índia.

A chegada de Hermenegildo Frutuoso, do segundo andar, tirou o sossego dos porteiros. Perguntou o que discutiam. Nada não, seu Furtuoso. Estamos preocupados com seu Eli, que ficou doido, responderam.

— Meu nome é Frutuoso. Hermenegildo Frutuoso. Certamente apenas um distúrbio consequente de um regime hipersódico.  — Como, seu Furtuoso? — Frutuoso, já disse. Com o excesso de sódio a pressão arterial reagiu para mais e aconteceu um AVC. Se o AVC não deixar sequelas, logo estará de volta para cumprir um regime hiposódico.

— Como sabe tantas coisas?  Seu Eli ficou doido mesmo?
— Depende de uma avaliação do quadro individual.

Frutuoso deu as costas. O morador do 602, Ari Sandro Moreira, apelidado de Bocão por razões óbvias, ouviu parte da conversa e comentou:

— O sonho desse é ser médico. Já fez mais de dez vestibulares, nunca conseguiu. Só anda de branco, mas não é médico.
— É o quê, então? — pergunta Araçá, um dos porteiros — Quem anda de branco é médico. Ele deve ser médico, sim.

— Pai de santo é médico? Claro que não! Pai de santo é gente grande do candomblé. — Araçá faz o sinal da cruz. “Deus me livre”. O elevador estaciona. Ari Bocão parte rumo ao chuveiro… Vou tomar um banho bem frio, diz. — Só amanhã, seu Ari; a bomba quebrou novamente, não tem água. — lembra o porteiro. — Como assim? Acha que vou dormir sujo?  Esse condomínio está entregue às baratas. Cadê o síndico? Ficou doido? Vou embora daqui. Não é possível… O síndico doido?

***

O dia amanheceu. O sol lançava raios tímidos no canto do céu. O silêncio era quebrado pelo circular dos ônibus coletivos, cada um com seu horário. Já passava das cinco horas. Araçá, misto de vigia e porteiro, levantou-se, estirar as pernas. Passou o ônibus do Guilherme Marback, primeiro conjunto residencial do Imbuí. Alguém se anunciou; o porteiro perguntou quem era. Queria ter um trabalho desses — brincou. Não sabe o que é acordar todo dia duas da manhã — responde o visitante. Girou a chave; o jornaleiro entregou-lhe um maço de jornais. Brincou: — Não sei como esse povo não abusa de ler todo dia o mesmo jornal. — O mesmo jornal com notícias diferentes — retruca o jornaleiro. Que nada! As notícias se repetem toda semana. Você lê? O que traz de novo hoje? Não disse que era tudo igual? Qual o crime mais feio de hoje?

— Saiu no jornal hoje, mas aconteceu ontem.
— Esse jornal anda muito atrasado. Qual o crime?
— O homem que matou os três filhos depois se enforcou.
— Virgem do céu! Esse era doido.
— De doido não tinha nada. Certinho da silva. Morava nas Malvinas. Antes, morou na Saramandaia, perto de uma tia minha. Trabalhou até na padaria de Zezinho, em Itapuã.
— Quem trabalha em padaria termina maluco. Acorda cedo todo dia. Nem dorme, preocupado em perder o horário. Já pensou o dia amanhecer e o povo não ter pão pra comer?

O ônibus que transportava os empregados de uma fábrica petroquímica parou na porta. Pela freada estava atrasado. Araçá olhou o relógio já com a claridade do dia. Cinco e trinta e cinco. Falou para si mesmo: Atrasado dez minutos; vai tirar a diferença na pista. Abriu a porta principal, respirou o ar puro do jardim. O outro vigia aproxima-se. Na falta de assunto reclamou do frio. O segundo ônibus do Conjunto Marback lembrou-lhe as horas: quinze para seis. Nivaldo, porteiro titular, estava atrasado; já eram quase seis horas. Escondeu-se no banheiro. Lavou o rosto. Procurou a escova dental, não encontrou e com o dedo esfregou pasta dental nos dentes. Procurou o pente… Esquecera e achou graça: É hoje… Esqueci tudo!

Seis horas. Condôminos madrugadores já transitam pelo playground. Seis e cinco da manhã, a rua já movimentada. A impressão era que o Pólo Petroquímico de Camaçari morava no Imbuí. Seis e meia. Estudantes buscam transportes escolares. Motoristas não esperam, têm hora marcada; não encontrando no ponto, buzinam: — Corre ali, avisa ao carro verde que Lucinha já está indo. — Não posso deixar a portaria, dona Gildete. — O outro porteiro não chegou ainda? O condomínio está entregue às moscas. — E foi, ela mesma, pedir tempo ao motorista.

Os moradores abandonam os “esconderijos”. De três em três minutos as portas dos elevadores despejam gente. Penteados e perfumados, alguns bem vestidos… — Bom dia, seu Glicério. Essa Copa a gente ganha, doutor. Deus é brasileiro.

— Se fosse brasileiro, o povo não estaria na miséria.
— O presidente da República diz todo dia que melhorou. O pobre agora está comendo.
— Ele deveria passar uma semana na casa de um pobre.

O relógio na parede marca sete e meia. Francisca, empregada doméstica do 602, traz café. Obrigado, Chica; vou guardar, não estou com vontade agora. — agradece o porteiro. — Passou a noite trabalhando e não está com fome? Ou dormiu a noite toda?

A lavadeira de roupas do 801, trouxa de roupas sem tamanho, descansa do peso. Araçá reclama: — A senhora tem o trabalho de lavar, dona Lara gasta o dinheiro e agora coloca a trouxa no chão sujo? — O senhor é conversador. Este lençol, onde a roupa limpa está enrolada, é meu. Justamente para não sujar a roupa da freguesa. Pensa que sou o quê? — defende-se a mulher. O elevador de serviço abre a porta. A humilde lavadeira transporta a trouxa com roupas lavadas. Não contava com o inusitado: Pisou a pequena Bolinha, cadela de estimação do 203. O animal, apavorado ante a pisadela, chora como criança. A madame descontrola-se: — O que fez com minha filha, sua animal? Se não tem dinheiro pra comprar óculos, me peça!

A trouxa de roupas foi ao chão. A operária não sabia como se desculpar. — Me perdoe, madame. Juro que foi sem querer. — Vocês não podem subir nem pelo elevador de serviço. Têm que ir de escadas mesmo! Se quebrou alguma costela vou dar queixa na polícia! Vou fazer uma sugestão por escrito ao síndico. Trabalhador braçal só pode usar elevador, seja qual for, das dez da noite às seis da manhã! Para não se misturar com os condôminos.

— Quem vai receber as roupas limpas antes de seis horas da manhã? Quem vai conferir?
— A patroa confere depois. Não podem é acontecer fatos lamentáveis. — Pega a cadela nos braços; beija, acaricia… — Não chore não, Bolinha. Vou tomar as providências. — Vira-se a Araçá — Me ajude a tirar Chuchu desse elevador antes que aconteça também o pior.

Araçá entra e sai do elevador com um carrinho de bebê acomodando pequeno cão branco. A mulher recomenda pegar o cobertor e cobri-lo, para que o animal não se resfriasse. O porteiro conduz o carrinho com o animal ao pátio dos fundos. A mulher agradece: — Nesse condomínio só se salva o senhor. Depois que Chuchu ficou paralítico minha vida virou um inferno! Não faz nada sozinho. É de fraldas dia e noite. Mas não vou deixar meu filho morrer a mingua.

O elevador sobe e desce. Betânia do 501 está de mudança. Já, dona Betânia? Chegou outro dia… — indaga o porteiro. — O condomínio está muito caro. É o preço do aluguel. Vou me mudar para o Cabula. Lá o prédio é pequeno, só tem um empregado. A despesa é menor.

— Não gostou daqui?
— Vou porque o condomínio é caro. Gostei demais daqui, inclusive dos empregados. Vou deixar uma mesinha e

duas cadeiras para o senhor. — Não precisa não, dona Betânia. — Já estão separadas. Agora, queria um favor. O senhor vai largar agora? — Queria, mas não posso. Não tem quem me renda. Mas a senhora pode dizer. — Não; deixe. Vá cuidar do seu serviço.

 

O elevador foi ao décimo oitavo andar. Desceu. Parou no doze, no dez… Demorou um pouco no quinto. Finalmente chegou ao térreo. Saiu Pablo do 902, perna engessada. — Me lasquei, Araçá! Quebrei a perna. Pior foi o emprego; era o segundo dia. Saí para comemorar e aconteceu o acidente.

— Foi carro?
— Do meu primo. Ele não teve nada. Só o prejuízo.

Lúcia Sampaio também saía do elevador. — Bom dia, seu Araçá; não dormi essa noite. Muita gente falando, falando. Aconteceu alguma coisa? Procure saber, pois aconteceu alguma coisa.

Márcia veio após com o seu, lá dela, cachorrinho. Mais um morador dengoso do condomínio. Cumpria sina levando Black para fazer xixi. Parou no térreo; queixou-se, iria mudar-se… Também, dona Márcia? A senhora é das moradoras mais antigas — consolou Araçá — O condomínio não é mais aquele. Querem proibir que meu cachorro desça pelo elevador. Se ele não tivesse artrite, nem me importava; descer escadas faz bem; mas não pode. Eu venho de elevador e Black pelas escadas? Está errado!

— Desde quando essa proibição?
— Me disseram. O síndico novo só quer ser. Pensa que não sei? Morava no prédio de minha prima, no IAPI. Era síndico lá também.
— Então tem experiência.
— Experiência para roubar. Deixou o condomínio na miséria. Como é que pode? Esse homem foi chegando e sendo síndico?
— Ninguém queria. A senhora quer ser síndica?
— Não tenho tempo, trabalho o dia todo. O senhor se engana se pensa que não faço nada. Lá em casa não tem empregada.

Um veículo da Prefeitura Municipal estaciona. Porteiro Araçá interfona ao morador; repassa o recado ao motorista: Desce já.

— O desce já dele é daqui a duas horas. Tanto documento para entregar… Ainda vou fazer serviços de banco. Chego à repartição quase onze horas!
— Ele almoça lá?
— A secretária manda buscar. Carne de sol, Filé Mignon… Sexta-feira é moqueca de camarão. Que dia é hoje?  Segunda-feira? Está de ressaca. É filé com fritas e suco de pêra.
— Ele bebe?
— Bebe, sim; toda Sexta-feira. E eu escondido, para ninguém ver o carro. Se jornalista fotografar sai no jornal.
— Até bebendo você é motorista?
— Não tenho Natal nem Ano Novo. Nesses dias trabalho vinte e quatro horas. Ele comemorando e eu cochilando no carro. Fim de semana ainda inventa viajar para a fazenda, perto de Juazeiro. Quando cisma, viaja Sexta de noite. Chega lá na madrugada de Sábado.

— E a gasolina?

— Um tanque dá para chegar. A volta, pega a nota fiscal e aqui recebe o dinheiro.

— Queria trabalhar num lugar assim.  O que seu Garrido faz na prefeitura?

— É gente grande, com carro chapa preta.

— É com esse que viaja?

— Tira a preta e coloca uma chapa amarela.

— Emprego bom. Trabalho desde ontem; já são nove horas; sabe quanto ganho?

— Nem precisa dizer.

— E isso mesmo. Todo mundo sabe quanto é.

 ***

                                 A porta do elevador abriu, fechou, abriu. O porteiro espera a saída de alguém; não saiu ninguém. Como pode porta abrir e fechar sem ninguém? O vento assobiava pelas frestas.  A porta abriu-se novamente. Que diabo é isso? Cochilava. O vento o acordou. Hoje está demais; ainda não preguei os olhos. Olhou o relógio, estava escuro; quase meia noite. Meia noite é a hora das almas. Será alguém do outro mundo? Quis acender a luz, pensou alto: Vai ser pior; aí é que não vou cochilar mesmo.  Alguém bate na porta de vidro. Reconhece Rafael, do quinto andar, visivelmente embriagado. Deseja boa noite, segura-se às paredes. Araçá disfarça o medo. Pergunta ao homem, de onde vem? Não tem medo de andar sozinho tarde da noite?

— Estava por aí… Antes só que mal acompanhado.

— Se é assim, estou bem guardado, aqui, na portaria. Passo a noite só, com Deus.

— Aí você se engana… Você não passa a noite só.

— Como? Eu e Deus.

— Tem mais gente.

— Claro! O pessoal que mora no condomínio.

— Tem mais gente…

— Por essa portaria não vejo entrar mais ninguém.

— Já viu defunto entrar pela porta?

— Aqui tem defunto?

— Amigo — voz arrastada de embriaguez — eu estou bêbado?

— Bêbado, bêbado, não; está meio tomado.

— Obrigado. Muito obrigado. Será que minha mulher vai notar que estou tomado?

— E o defunto?

— Que defunto?

— O senhor não falou que o defunto que dorme aqui não precisa de porta para entrar?

— Falei, foi?

— Que história é essa, seu Rafael?

— Quem sabe contar é o porteiro mais velho, o que trabalhava antes de você. Não conseguia dormir, eles não deixavam. Os defuntos, ora; a noite toda acordado. Quase fica doido. Ainda se internou no Juliano Moreira. De madrugada, caminhando para lá e para cá com medo do defunto que saia do elevador.

— Saia de onde?

— Do elevador. Passeava pela portaria, mexia na fechadura, voltava para o elevador. Batia a porta, acendia a luz. Fazia uma confusão!

— É verdade mesmo, seu Rafael?

— Vá saber dele. Já se aposentou; ficou doido. Mora ali na Cesta do Povo. O nome dele é Dedé. Aliás, não mora mais, não; morreu.

Araçá emudece. Será o porteiro que já morreu? Rafael despede-se; vai dormir, amanhã é dia de branco. Seu Rafael, é verdade o que falou? — pergunta. — Já vi! Quando chego tarde parece que sobe gente comigo. O elevador fica pesado, balança como se alguém mudasse de posição. Uma vez, de medo, desci antes do meu andar. Fui de escadas. Vá conversar com Dedé.

— O senhor acabou de dizer que ele já morreu.

— É verdade. Esqueci. Vá-ver é ele que fica aqui.

O elevador chegou. A porta abriu e logo fechou. Araçá rezou baixinho: Pai nosso que está no céu… Rafael não entendeu: — Como? Falou comigo? Fale alto! — …seja feita a vossa vontade, assim na terra… — Não estou entendendo nada. — …como no céu. — Aonde? No céu? O que é que tem o céu?           — Estou rezando.

— Já vai dormir? Vou dizer ao síndico que você dorme. Nunca vi porteiro dormir. Vou dizer…

II

Chegou morador novo. O caminhão estacionou nos fundos do condomínio para descarregar a mudança. A conhecida Gildete Silva do 905, Araratuba, chama o porteiro; pede-lhe que  abra a porta dos contadores de água. Desculpe, mas aqui não tem contador de água; o valor já vem na taxa do condomínio, lembra o porteiro. — Se não tivesse, ninguém pagava. E por que cortaram a minha? Vim correndo, mas o desgraçado já tinha feito o serviço.

— Tem coisa errada. Nenhum apartamento tem ligação direta. Pega do tanque de cima.

— O senhor já viu luz vir do tanque?

— Não falei de luz; falei de água.

— Quem está falando de água? Sou maluca? Vim correndo, quase bato o carro; estou com a geladeira cheia e cortaram minha luz.

— Só agora a senhora falou que era luz.

Ao abrir a porta da sala dos medidores decidiu não colaborar com a mulher. — Não trabalho na companhia, dona Gildete; não posso ligar. — Diga assim: não quero ligar, pronto! O condomínio precisa contratar quem queira e precise trabalhar. Tanta gente desempregada! Outros têm o emprego, mas não valorizam. Vai ligar ou não?

— Desculpe, mas não posso. Preciso do meu emprego.

— Se ligar vai perder o emprego? Acho o contrário; se não ligar é que perde.

— Dona Gildete, sou pago para fazer o correto. Ligar luz clandestina não é correto.

— Você é um araçá mesmo. Dos maduros da beira da estrada; ninguém quer. — A mulher olha desiludida — É contador demais. Se fosse um para todo o condomínio minha luz não estaria cortada.

— Dona Gildete, saia daí. A companhia funciona vinte e quatro horas. Basta mostrar o recibo pago.

— O problema é que não sei onde coloquei o recibo.

— Pague novamente, depois recebe de volta.

— Uma hora dessas, mais de seis horas? Seu Araçá, quer saber mesmo? Não paguei! Gastei o dinheiro no jogo da seleção brasileira. Vieram meus irmãos, cunhados e sobrinhos assistir ao jogo aqui, em casa. Entendeu? O que faço agora? Por que não disse logo que estava sem dinheiro?

— Dona Gildete, cada apartamento tem seu contador. Antes de cortar o fornecimento colocam esse aviso. — mostrou o papel. — Mas quase todos estão com o aviso! Estão na previsão de corte por atraso no pagamento. Pelos cálculos, o da senhora está nessa fileira. É este! Está desligado mesmo.

— Ligue, seu Araçá, pelo amor de Deus!

— Não posso; está com lacre. É crime. Quando desligam invertem os fios. Só eles sabem desfazer.

— Pelo que o senhor tem de mais sagrado na vida, ligue aí. O que custa? Não ligo porque não sei. Eu pago a metade do seu salário. Quero ligar para não passar vergonha.

O porteiro respira fundo… — Não pelo dinheiro, vou mostrar quais são os fios. — explica — Pega este… O preto. Enfia aqui… — Aonde? Está escuro. — Enfia debaixo desse parafuso. Depois o vermelho… Puxa para cá… — Não dá choque, não? — Só se encostar um no outro. Enfia aqui…

 

Araçá afasta-se. A mulher pega o primeiro fio… — Está escuro, seu Araçá. Agora lembrei: na pressa esqueci os óculos. Qual a cor deste fio que está na minha mão. É o preto? O preto eu enfio ali…

— Cuidado, dona Gildete! Não deixe triscar no outro. Esse é o vermelho!

— Não estou enxergando quase nada.

— Enfie aí. Aperte mais. Se der mau contato queima o fusível.

— Ainda disse que não sabia… Agora pego o vermelho, esse… Dobro…

Alguém chama o porteiro. — E agora, dona Gildete? Vou até a portaria. Cuidado para não triscar um no outro.

Antes de chegar ao destino, um grito: Seu Araçá! Acuda aqui! Sou eu, Gildete! Na sala dos contadores ligando a luz, esqueceu? — O porteiro já respondeu no escuro. — Estou indo! Aguarde um momento que faltou luz. — Faltou não! Eu desliguei. Estou sem óculos. — Está tudo escuro; tanto faz com óculos ou sem óculos. — Estou falando da hora de enfiar o vermelho no buraco. Enfiei no lugar errado. — Ainda bem que estava sem luz. — Não, senhor; quando enfiei desligou tudo. — Então foi a senhora? — Foi! Venha me acudir. Estou pregada no fio de alta tensão. — Impossível, dona Gildete; a energia está desligada. Afaste-se do fio que a luz pode voltar a qualquer momento. — Não deixe isso acontecer. Fico sem luz mesmo!

Enquanto procurava a vela aparece o síndico; pergunta quem está na casa dos medidores. A mulher responde: Gildete do 905; encostei um fio no outro! — Como entrou aí? A porta vive fechada! — Seu Araçá abriu, responde a mulher. — Com ordem de quem? Vou mandar apurar. — Não paguei mesmo não! — Não pagou o quê? — A conta de luz. Estava ligando minha luz cortada. — Foi isso, foi? Seu Araçá ajudou?

As pessoas retornavam de mais um dia de trabalho.

— Essa agora… Quando não falta água falta luz.  Nos horários mais inconvenientes. Parece que faltou só aqui. Será falta de pagamento?

— Pode ter sido; tem muito condômino inadimplente. Pior é subir dezoito lances de escadas. — Tadeu, filho mais velho de Josesus, não entendeu; perguntou o que era lance. — Não acredito! Um rapaz inteligente… Lance é a própria escada. Lances, meu filho, são os degraus que vão de um andar a outro.

Um som estridente: Préennnn! A sirena do elevador! Tem gente presa. O elevador parou com gente dentro. Tem gente no elevador? — A sirena tocou novamente. O homem repetiu: — Tem gente aí preso? Em que andar? (Danou-se! No escuro, trancado, como saber o andar? A resposta foi outra sirenada). Diga pelo menos o andar! (Mas, como saber o andar no escuro?). Porteiro Nivaldo é chamado: — Está surdo, Nivaldo? — Como vou enxergar sem luz, defende-se. — Para ouvir não precisa de luz. Tem gente presa no elevador!  — Qual deles, de serviço ou social? — Aí cabe a você investigar.

A sirena toca insistente. Nivaldo responde que já ouvira e pede calma. Ainda nem começara o turno e já aparece problema, falou baixinho. No escuro mesmo procurou o colega Araçá, que apareceu já com a vela acesa. — Vá resolver seu pepino, Araçá. O elevador parou no seu turno. Tem gente presa. A pessoa está perdendo a calma. Também!… Presa, sufocada e no escuro. Vá-ver o elevador está lotado.

— Vou subir pelas escadas. E a portaria? Ladrão aproveita é no escuro.

Araçá subiu as escadas. Passou pelo primeiro andar. Tem gente aí presa? Sem resposta, tomou a escada ao segundo andar. A mesma resposta negativa. Depois, ao terceiro. Tropeçou na curva da escada, a vela voou longe e ele rolou escada abaixo. Parou ao lado da vela, ainda acesa. Que sorte… Podia ter quebrado o braço. Ainda bem que a vela não apagou e clareou a queda. Levantou-se, chegou ao terceiro andar. O cachorro do 302 late várias vezes. A mulher manda o animal calar. Araçá raciocina: “Que cachorro danado! Me farejou no escuro”. Subiu ao quarto andar. Pote de cerâmica, enorme, no corredor. Quase tropeça. É lugar de deixar pote? Lembrou-se da razão da subida e desceu um andar; perguntou se tinha gente no elevador. Sem resposta, passa direto ao quinto andar. A casa de Jéferson Costa, sexto andar, porta aberta, vela acesa na sala. Araçá falou: — Dona Carmem, cuidado com a porta aberta. Faltou luz. Por que a porta aberta? Ladrão age no escuro. — A mulher respondeu ter alergia a escuridão. — Então feche a porta. A vela acesa está dentro de casa.

— A porta aberta diminui o medo. Está com o pega-ladrão!

— Até rato pode entrar.

— Tem rato no sexto andar?

— E barata das grandes. O condomínio está cheio de calunguinha.

— Verdade, seu Araçá? —    A porta foi fechada com força. — Deus me livre!

No sétimo andar, painel grande, cópia de auto-retrato de pintor famoso. Assusta-se. Parece de verdade! Tem gente no elevador? Esse elevador parou aonde? Chega ao décimo andar, cansado depois de um dia de trabalho. Agora a resposta vem: “Não está ouvindo a sirena? Abra a porta, aqui tem mulher grávida”. — Vou botar uma vela acesa pelo buraco pra clarear aí dentro. — Está maluco? Faltando ar e você trazendo vela para fumaçar? Abra a porta!

Araçá retira do bolso uma penca de chaves. Deve ser uma dessas… Voz feminina chora: “Pelo amor de Deus, abra logo essa porta”. A senhora sabe qual é a chave? (A sirena apita, longe. Araçá interroga se foi dali o apito). “Não, senhor; não foi daqui, não; se apertar a sirena, vamos ficar mais nervosos ainda”.

— E quem foi então?

A resposta foi outro apito. Deve ser o elevador de serviço também cheio de gente! Não sei qual a chave de um, imaginem de dois elevadores! A senhora sabe qual é a chave? A mulher chora… Vou perder esse menino… — Valha-me Deus! Nivaldo, Nivaldo! Vem me ajudar!

Alguém implora que abra a porta. Como, se não sei qual é a chave? — Vá chamar o outro porteiro. Pelo amor de Deus… Vou perder esse menino…

A energia retorna! O elevador deu um tranco, iluminou-se o painel. Marisa, a grávida, passava mal. Em solidariedade, todos só saíram do veículo quando a mulher foi recebida pelo marido. Porteiro Araçá desceu ao térreo, entregar a penca de chaves: Aqui não tem nenhuma chave de elevador! Nivaldo foi sarcástico. — É idiota mesmo. A chave do elevador é esse pino. Basta meter no buraco e rodar. Assim…

Araçá desculpou-se, elevador nunca parara durante seu horário. Não deu nem até logo e subiu para o descanso, no pequeno recinto à disposição dos funcionários do condomínio, no décimo nono andar.

 III

             Julho é mês frio em Salvador. A sensação térmica atinge os menores índices do ano. Os casacos saem dos guarda-roupas, desfilam pelas avenidas. O rádio anunciou uma tromba d’água na cidade. Na Manoel Dias, bairro Pituba, a água chegou a mais de metro! O locutor orientava: “Se tiver que sair de casa, evite transitar pela Manoel Dias, que está totalmente tomada pela água e sem energia!”. Araçá acompanhava pelo pequeno rádio, companheiro das longas noites. Quem sairia numa hora daquelas? Tomar chuva e arriscar-se a um assalto? Conferiu o relógio, quase onze horas. Bocejou. Puxa a cadeira, baixa o volume do rádio… “Atenção, muita atenção! O noticiário da sua FM Sensação em caráter extraordinário! As chuvas já provocaram dezenas de deslizamentos com centenas de desabrigados. Por último, uma tragédia! — Araçá enfia o ouvido no rádio — A Ladeira da Montanha veio abaixo!”. — O quê?! — O locutor parece ter ouvido a exclamação e explica: “A Ladeira da Montanha veio abaixo com as fortes chuvas que castigam a cidade!”. — A Ladeira da Montanha? — Araçá não acreditou. O locutor prossegue informando: “Uma das maiores tragédias de todos os tempos atingiu a Bahia! A centenária ladeira, que liga a cidade alta à cidade baixa, desmoronou, soterrando mais de vinte casas que ficavam no sopé!”. — Que diabo é sopé? — O locutor respondeu: “Soterrou toda a parte baixa da ladeira, interditando a Avenida do Contorno”. — Será que morreu gente? — O locutor continuou respondendo: “Ainda não se sabe o número de vítimas. Calcula-se que pelo menos quarenta pessoas perderão a vida no maior acidente do gênero! A Bahia está de luto. O prefeito comanda, ele mesmo, os trabalhos de salvamento. O governador está na Coréia, assinando contrato de cooperação industrial. Vai trazer a primeira fábrica de carros para a Bahia. Já foi informado do acidente e chega amanhã cedo. Repetindo: a Ladeira da Montanha veio abaixo com mais de cinqüenta vítimas fatais!”. Araçá procura lembrar: A Ladeira da Montanha é… O rádio ajuda: “O local é conhecido como zona de baixo meretrício, onde a principal atividade é a prostituição feminina”. Hoje, Sábado, as casas certamente estavam lotadas, todos no pecado da perdição. Será que alguém se salva? — O rádio respondeu: “Todas as guarnições do Corpo de Bombeiros estão no local. O trabalho é dificultado pela escuridão. O tráfego está interrompido…”.

            O porteiro não conseguiu dormir, coração acelerado. Bebeu dois copos de água; queria misturar com açúcar, não tinha açúcar. Chegou Gustavo, filho de Marli do 504.

— Que chuva!

— Pior foi o estrago da chuva.  A Ladeira da Montanha desabou! — informou o porteiro.

— A Ladeira da Montanha, lá na Praça Castro Alves? Puta merda! E aí?

— Mais de cinqüenta pessoas soterradas. É a previsão por baixo. Já pensou, morrer soterrado?

— O que vai ter de gente nu, em plena transa…

Josesus, do décimo oitavo, retornava do culto, bíblia debaixo do braço. O frio o deixava menor ainda.

— É tempo dela mesmo, seu Araçá. Chuva é vida. Sabe de que precisamos? Orar mais! O povo está desembestado. Cristo não aprova o andamento das coisas.

(Josesus era comerciante. Vendia de tudo, de calcinha a caçarola. As coisas piorando, o comércio minguando. Vendeu uma loja para pagar dívidas. Pensou estar capitalizado, mas as vendas continuaram caindo. Vendeu mais duas lojas. Passou a freqüentar uma igreja evangélica. Cabisbaixo, como todos que buscam refúgio espiritual para problemas materiais. Gelou quando o pastor orou: “Aqui, temos pessoas que foram ricas, tiveram dinheiro e poder! Hoje buscam a proteção de Cristo para se desapegar das coisas materiais!”. — Referia-se a ele? Procurou esconder-se. O pastor o fitou… “Procuram de todas as formas esconder o fracasso. A família é a última a saber; continuam na mesma vida, gastando, alheios à nova realidade. O chefe da família sofre sozinho, sem coragem de falar que o dinheiro acabou; impotente, pois não dispõe de meios para reverter a situação. Sei que isso aconteceu com muitos de vocês. Não foi mesmo?”.

O pastor olhou os fiéis… Um deles levantou a mão.

— As palavras do pastor provam que Cristo está entre nós. Essa foi a minha história!

Josesus temia que o pastor descobrisse a sua, dele, história. Nem a mulher sabia que estava ali, na igreja. Nunca mais perdeu reunião. Fez amizades que o ajudaram a vencer o drama da família desfeita — a própria mulher o abandonou, desacostumada com vacas magras.  Era esse mesmo Josesus que voltava do culto).

— Quero ver quando você vai lá… — questiona pela enésima vez. — Vai se sentir tão bem!…

—Seu Jesus, aconteceu uma tragédia.  A Ladeira da Montanha…

— Cruz credo! Não fale o nome desse lugar. Fico todo arrepiado; não tem outro nome? Que aconteceu com essa ladeira? Não precisa falar o nome. — Caiu. — Quem caiu? — A ladeira; o senhor não quer que diga o nome. — A ladeira onde ficam as casas de prostituição? Caiu como? Uma casa só? — A ladeira toda! Ainda comeu um pedaço da Praça Castro Alves. — Lugar de perdição, também. Quem disse? — O rádio, em edição extraordinária. — Desabou tudo? Não ficou nada? — Nada, mesmo. Até a Praça Castro Alves. — Foi Cristo. Ali era lugar de perdição, tinha que acabar. — Que acabasse, mas sem mortes. Mais de cinqüenta! — cuidou de aumentar um pouco. — Cinqüenta pessoas? Impossível, Cristo não é vingativo. Tem certeza, seu Araçá? — Como dois e dois são cinco. — Então é mentira. — Juro pela fé em Deus. — Não faça isso! Não tome o nome do Senhor por coisas tão pequenas! — Desabou mesmo. Mais de cinqüenta pessoas mortas. Até o governador já sabe. — O governador não foi buscar a fábrica de carros na Coréia? — Alguém avisou a ele. Deve ter sido a rede Globo, que tem gente no mundo todo. — Não é possível! Tem alguém orando pelos miseráveis? — Pelos pobres? — Conversar com o senhor é difícil, seu Araçá. — O senhor perguntou se tinha alguém orando pelos miseráveis. Miserável não é pobre? — Pobres somos todos nós! Rico é Cristo, dono de tudo. Miserável, referi-me às pessoas que foram soterradas. Que vão deixar muitos órfãos!

Rafael, ébrio, chegava. Desejou boa noite. Josesus murmurou “de novo?”, referindo-se à embriaguez costumeira. O bêbado não entendeu: — Só dei uma vez; se quiser duas vezes, lá vai: Boa noite! Dei novamente porque pediram. — Olha a brincadeira, seu Rafael — Araçá fala sério; o homem não se intimidou e provoca: — Já foi procurar o outro porteiro? Josué, o que trabalhava de noite e via assombração.

Josesus reagiu: — Vê assombração quem não reza e vive feito bicho.

— É comigo, é? Fique sabendo que não levanto sem fechar o corpo. E quando bebo peço perdão a Deus. E que a bebida nunca me faça mal.

Josesus sentiu-se ofendido: — Não blasfeme, ligando o nome de Deus com cachaça!

— Cachaça não: cerveja. Só bebo cerveja.

— Álcool do mesmo jeito. Respeite o lugar onde mora com os filhos.

— Já estão todos grandes. Sou até avô!

— Respeite então os netos. Aliás, respeite você mesmo, como ser humano.

— Respeito mesmo! Nunca me xingo, nunca me bato. Quer o que mais?

Araçá informa: — Seu Rafael, já sabe da tragédia?

— Perdeu; dois a um, mas é assim mesmo. Ainda se classifica em primeiro lugar. Por isso estou bebendo, de raiva! Igual à seleção de setenta nunca mais!

— A tragédia foi outra. A maior que já aconteceu na Bahia.

— Oxente! Não vai mais ter a fábrica de carros?

— A fábrica o governador foi buscar na Coréia.

— Deve gastar um dinheirão para trazer uma fábrica montada. E quem vai operar?

— Meu amigo, bote os pés no chão.

— Tem mais de dois? Se tiver, diga que eu boto. — Rafael olha os pés. — Virgem! Me sujei todo. A mulher não vai querer lavar o barro do meu sapato. E a fábrica, vem mesmo?

Josesus pede licença para retirar-se. — Vou orar. Cristo é tão bom! Não vai desamparar os que ficaram sem pai. — Rafael completa na sua embriaguez: — E sem mãe. A minha, morreu há mais de dez anos!

Alguém chama o elevador. O veículo sobe. Rafael assusta-se. — Que diabo é isso? Será o porteiro assombrado? Reze pela alma dele, Araçá. — O elevador inicia a viagem de volta. A porta abre, aparece Julinho Pontes. Josesus, o evangélico, fala baixinho “primeiro foi o bêbado; agora o comunista…”. Rafael não entendeu: — Bêbado posso ser; comunista não! Comunista come fígado de menino. Eu como outras coisas.

Julinho Pontes, comunista desde os anos setenta, quando líder estudantil no auge da ditadura militar, sente-se ofendido: — O que tem o comunismo? É uma doutrina igual ao capitalismo. Vai dominar o mundo na próxima década e acabar as desigualdades sociais.

Rafael provoca: — Que vai ser melhor, vai; pior não pode; mas não acha a próxima década muito cedo?

— De fato, para mudança tão grande uma década é pouco tempo; mas, os movimentos sociais não obedecem ao calendário histórico. Acontecem como um processo! O processo de conscientização das massas trabalhadoras se iniciou com a revolução industrial. Entenderam?

Rafael continua provocando: — No comunismo ninguém é dono. O Estado manda e desmanda, não é seu comunista?

— Me chame de Júlio. A repressão existe, travestida na falsa democracia. O senhor bebe, mas não perde a razão.

— Seja franco, seu Julinho: Comunista come fígado de menino mesmo?

— São crendices vindas de quem não quer mudanças. Garanto que, até o final da próxima década, o mundo vai estar bem melhor.

Josesus, impaciente, espera o elevador: — Que elevador pirracento! Quer que eu ouça essas coisas… — O senhor é contra, seu Jesus?, pergunta Julinho. — Seu moço, sou cristão. Acredito em Deus, portanto não posso gostar do comunismo.

— Assim como adotou o cristianismo pode aderir à doutrina comunista. Basta conhecer. Tenho bons livros em casa, quer? Não precisa nem ler o Capital, de início.

— Cruz credo! Deus me livre!

— Pode iniciar por um ensaio que mostre as diferenças entre o capitalismo e o comunismo.

Josesus cuidou de cortar conversa… — Vou indo, fazer minhas orações.

Araçá arruma os papéis. Admira a propaganda de uma loja de eletrodomésticos. “Ainda vou ter um rádio desses”. Lembrou da tragédia. — O senhor já sabe da montanha, seu Julinho? Foi a maior desgraça até hoje!

— Agora está lendo a bíblia? Eu li quando ainda era garoto. É uma passagem muito bonita, o sermão da montanha.

— Desde aquele tempo já era previsto acontecer?

— Não sei, não; mas, essa passagem é bonita. Os sermões mais inteligentes de toda a pregação de Cristo.

— O senhor não é comunista? Comunista lê a bíblia?

— Li antes de ser comunista. Temos a obrigação de conhecer as alternativas para escolher melhor. Entendeu? O sermão da montanha é uma pregação de Cristo aos discípulos, parece; não tenho certeza.

— Então estamos falando de coisas diferentes. Perguntei se o senhor já sabia da tragédia da Montanha.

— Acabei de dizer o que foi o sermão da montanha.

— Eu falei da tragédia da ladeira da Montanha.

— Não existe essa passagem na bíblia.

— Não foi na bíblia; aconteceu lá, na Ladeira da Montanha, perto da Praça Castro Alves.

— Você não se explicou. Estou raciocinando em função das leituras que fiz da bíblia antes de ser comunista. O que aconteceu na Montanha, ou seja, na ladeira?

— Arriou. Caiu, desabou.

— Quem lhe disse? Verdade mesmo?

— O rádio não iria mentir. Passou agora também no noticiário da televisão. Mais de cinqüenta pessoas morreram.

— Meu Jesus, tende piedade!

— O senhor não é comunista?

— A emoção às vezes trai. Falei da boca para fora. Vou até lá.

— Nessa chuva? A cidade está cheia de água e sem transportes. Se o senhor tivesse carro…

— Não tenho e nem quero ter! Não consumo o maior símbolo do capitalismo. Carro de jeito nenhum! Vou de coletivo, apesar de péssimo. Nos países comunistas o transporte coletivo é eficiente. De graça e sem fins lucrativos. Com segurança, regularidade, conforto e modicidade nas tarifas. Quero dizer: O transporte coletivo é de graça, mas eficiente. Ninguém passa horas esperando carro. O sistema é rotativo. Se uma seção está sobrecarregada, recebe auxílio de outras onde o movimento é menor. Não existe apropriação privada. Entendeu?

— E pode?

— Claro! A partir do momento em que não existem donos das linhas.

— Linha de que, seu Julinho?

— Estou falando de transportes coletivos, o comunismo como referência, entendeu? O Estado é, representando a sociedade, dono dos transportes coletivos. No Brasil, o transporte é coletivo porque é acessível a todos, basta ter dinheiro; mas a propriedade é particular. Entendeu? No comunismo o transporte é coletivo mesmo! O dono das empresas é o Estado. Os ônibus e os trens pertencem a todos. — Alguns segundos para Araçá raciocinar… — Entendeu, seu Araçá?

— Entendi. Quer dizer que no comunismo eu seria dono de uma empresa de ônibus?

— Em tese, meu amigo. Em tese, quer dizer, na teoria.

— Agora foi que deu… Posso ser dono na teoria?

Julinho Pontes alisa os parcos cabelos… — No comunismo você não seria dono de um ônibus porque lá ninguém é dono de nada.

— Lá aonde, seu Julinho? O comunismo fica aonde?

— Na cabeça dos homens livres e de pensamentos igualitários. Está espalhado pelo planeta. Aqui mesmo, no Brasil, existe o comunismo. Aliás, não existe o comunismo; existem os comunistas, como eu. Como talvez você, num amanhã breve.

Araçá conduz ao lado prático: — Voltando ao ônibus, seu Julinho, no comunismo posso ou não posso ser dono de um?

— Impossível! Lá não existe propriedade privada. Tudo é do Estado. Os transportes coletivos, ou seja, os ônibus, pertencem ao governo. Uma pessoa isolada não pode ser dona de nada.

— Agora fiquei triste. Queria ser dono de um ônibus; só um.

— Tem um porém, amigo: no comunismo ninguém paga passagem de ônibus!

Araçá sorri. Esse bicho é bom mesmo. Julinho orgulha-se do convencimento: — É o destino da humanidade! Breve o mundo vai comungar o comunismo — sonha. — Comungar é maneira de falar. Significa aceitar e gostar.

— O senhor já foi lá?

— Ainda estou me preparando. Vou me realizar quando vestir a calça cinza surrada e colocar aquele gorro que todos na Rússia usam. Depois posso até morrer. Por enquanto, vou juntando adeptos para a grande mudança. Viva o comunismo!

— Seu Julinho, que hora é essa? Mais de doze da noite! O povo está dormindo. Se gritar, posso perder o emprego.

— No comunismo você será empregado do Estado. Produzirá o suficiente para seu sustento. O que sobrar, o excedente, em vez de ser apropriado pela iniciativa privada, passa a ser propriedade do Estado, para que este distribua entre aqueles que não produzem o suficiente.

— Sendo vigia eu produzo?

— No comunismo todo trabalho é socialmente importante; tem uma função social a cumprir. O médico tem a mesma função social que o seu trabalho como vigia.

— Aí também é demais, seu Julinho. Um vigia igual a um médico?

— Aliás, no comunismo você não trabalharia como vigia porque não existe ladrão. — Virgem do céu! Vou perder meu emprego, preocupa-se Araçá. — Pelo contrário; o Estado garantiria outro trabalho melhor e mais gratificante. Quem sabe, até numa grande plantation de cana-de-açúcar. São os assentamentos e as fazendas coletivas que o Estado é detentor.

— É o quê?

— Detentor; quer dizer dono. Lá todos trabalham, se alimentam, vestem e estudam com o produto do seu suor. Entendeu?

— Entendi, seu Julinho. Esse comunismo vai chegar quando?

— Mais cedo do que se espera. Você será um grande camarada. Vai morrer e viver pelo comunismo, não é mesmo?

                                               ***

             O sol rompeu a barra do dia. O rádio, a cada hora, informava em edição extraordinária. Tanta edição extraordinária? Todo mundo já sabe o que aconteceu… O locutor insistia em trazer mais informações: “E atenção, muita atenção! As últimas notícias do acidente que vitimou a conhecida Ladeira da Montanha”. Parece até que a ladeira é gente… “De acordo com estimativas estão desaparecidas quase cem pessoas! A remoção do grande volume de entulhos é dificultada pelas chuvas. Existe perigo de mais desabamentos, inclusive da Praça Castro Alves, o grande palco do carnaval da Bahia!”. Pediu a atenção novamente: “O prefeito de Salvador neste momento chega ao local do crime!”.         — E foi crime? — O locutor cuidou de corrigir: “Desculpem: ao local do acidente. Chove muito na área. É grande o perigo de novos desabamentos. Vamos tentar conversar com o prefeito”. Araçá reprovou: “Conversar para que, depois de morrer tanta gente?”. O rádio retoma a palavra: “Pedimos licença para desligar nossos equipamentos. Existe perigo de curto-circuito por conta da fiação completamente encharcada. E atenção, senhoras e senhores! Está desabando a outra parte da Ladeira da Montanha! Tudo indica que a Praça Castro Alves, que é do povo, vai desaparecer para sempre. Atenção Bahia, Atenção Brasil! A Praça Castro Alves, o grande palco do carnaval do Brasil, está desaparecendo!”. — Parece Galvão Bueno; será que saiu da Globo pra transmitir a tragédia? — O locutor continua: “Socorro, governador! Mande todas as forças para cá. Chame a Odebrecht e a OAS, duas das maiores empresas do Brasil, orgulho da Bahia! Venham salvar a Praça Castro Alves!”. Araçá levanta-se… Galvão Bueno nenhum! Ele é maluco…

A cidade desperta. Jonas Arapiraca, paramentado, parte  para a caminhada matinal: — Vou indo, porteiro. Já passou do horário.

— O senhor é maluco, seu Jonas? Sair com tanta chuva.

— Me chamou de maluco?

— Maluca é a chuva. Parece que está doida. Esse rádio não me deixou dormir a noite toda. Tomara que acabe logo a bateria dele.

— Está maluco? O senhor é quem liga o rádio. E se liga, pode desligar.

— Como desligar, depois da desgraceira da Montanha? A Ladeira da Montanha desabou; morreram mais de cem pessoas! Foi o que o rádio falou. Disse mais: a Praça Castro Alves também veio ao chão. Parece que tinha muita gente lá. Não é a praça do carnaval?

— Mas não é época de carnaval. Fora de época é micareta. Salvador não tem micareta. Que idéia!

— O senhor vai sair?

— Vou fazer minha caminhada. Tenho medo de infarto.

— Nessa escuridão? Nessa chuva? Nessa trovoada? O senhor trabalha na Odebrecht ou na OAS?  O rádio está chamando para ajudar a retirar o entulho. É tanto que pode derrubar até o Mercado Modelo.

— Impossível! Para chegar ao Mercado Modelo primeiro vem o Elevador Lacerda.

— Esse mesmo! Parece que caiu.

— O Elevador Lacerda?

— Lacerda, sim. Parece que caiu. Se Deus não tiver pena… Caetano vai aparecer por lá?

— Caetano Veloso deve estar em São Paulo, no Rio ou em outro lugar longe daqui.

— Ele não é dono da Praça Castro Alves?

— A praça é do povo. Nem do povo é; é do município, da prefeitura.

— Esse mesmo, o dono, o prefeito, já chegou lá. Chegou cedo, ainda de pijama. O locutor correu pra falar com ele. Foi quando desabou o outro lado da ladeira com a praça. O senhor ainda vai sair?

— Vou, sim; está maluco. Não diz coisa com coisa.

O sol desabrochou. O barulho de liquidificadores preparando sucos e vitaminas informava: os trabalhadores já saíam ao trabalho. Do elevador apareceu Rogério Santos, do 304, encarregado na central de manutenção do Pólo Petroquímico de Camaçari. Fechou devagar a porta do elevador; mesmo assim fez barulho. Indignou-se: — Já pedi ao síndico que providenciasse outra mola. Essa batida incomoda até o último andar.

— Uma porta é quase o preço do elevador — respondeu Araçá.

— Não precisa trocar a porta; apenas a mola. Pode até tirar a mola do terceiro andar, onde moro.

— O senhor aceita; e os outros moradores do andar?

Santos dirigiu-se à portaria principal, onde tomaria o transporte. Araçá o interpela: — Que mal pergunte, seu Santos, o que leva nessa caçola? Desculpe; nessa sacola?

— Por que quer saber? Carrego minhas ferramentas.

— Alicate, chave de fenda, fita isolante? O senhor é eletricista?

— Quer matar a curiosidade? — Santos despejou o conteúdo da sacola. Caiu logo o telefone celular. — O senhor tem celular? Deve ser rico; celular é caro. — Santos revirou outras coisas: — Mate a curiosidade… Caneta, bloco de anotações, uma camisinha…

— O senhor não tem medo de andar com essa camisinha? Se sua mulher souber?

— Foi ela que me deu de presente.

— Foi mesmo? Esse pessoal de São Paulo é adiantado mesmo. E o guarda-chuva? Vou dar um conselho: providencie um guarda-chuva. Vai ter que usar; está chovendo. E se passar perto da Ladeira da Montanha, adeus Amélia! Nem camisinha nem telefone celular. Estou preocupado.

— Desde quando sou motivo de preocupação para o senhor?

— O senhor, não; a Ladeira da Montanha. Essa camisinha não era para ir lá? Desista. A Ladeira caiu. O senhor deu a maior sorte. Se fosse lá ontem, teria morrido debaixo de barro e pedra.

— Meu amigo, não sei nem onde fica essa ladeira.

— E a camisinha? Acha que acredito que ia usar em casa, com sua mulher?

Santos saiu expelindo fogo pelas narinas, de raiva. Araçá, quieto, impressionado com o diálogo. Quem diria… Seu Santos do 304 com rapariga na Ladeira da Montanha…

Desceu Paulo Miranda, do 901, conduzindo o cachorro pela coleira: — Vamos, já estamos atrasados. Bom dia, seu Araçá. — Bom para uns e mau para outros, responde o porteiro. — Que aconteceu, interroga o condômino. — A Ladeira da Montanha. Seu Santos, do 304, ia para lá ontem. Desistiu porque sentiu dor de dente. Viveu novamente. A casa aonde ele ia, lá na Ladeira da Montanha, caiu.

— Aquelas casas são mal conservadas. O governo vai recuperar como recuperou o Pelourinho.

— Vai recuperar, não.

— Está desconfiando? A verba chega até o final do ano.

— Recupera mais não. A ladeira veio abaixo. A Praça Castro Alves, e, parece, o Elevador Lacerda também. Mais de cem mortos. Se seu Santos tivesse ido, seriam cento e um. Não sei onde vão enterrar tanta gente.

O cachorrinho puxou a corrente, arrastou o dono até o gramado. Levantou a perna, fez xixi. Abaixou-se, fez cocô. Adiante, Paulo Miranda encontrou Zé Carlos Pereira… — Zé,  parece que a cidade está enlutada.

— De luto está todo dia. O povo vive na miséria, passando fome. O desemprego está como nunca esteve. Sem aumento há mais de cinco anos. Luto é pouco. Está todo mundo morto. Só falta enterrar.

— Amigo, é sério. Morreram mais de cem pessoas na Montanha. A ladeira desabou toda, com um pedaço da Praça Castro Alves. Parece que o elevador Lacerda caiu também. Morreu um rapaz do terceiro andar, me disse o porteiro. O rádio passou a noite falando do acidente. Como não ouço rádio…

José Carlos Pereira correu a informar-se com Araçá. — Uma desgraceira, seu Zé Carlos. Morreram mais de cem! Só de entulho, mil e tantas caçambas! Morreu até gente do prédio. Parece que era do terceiro andar, não sei bem.

Julinho comunista sai do elevador. Os olhos de Araçá brilham ao ver o comunista… — Não passe perto da Ladeira da Montanha. Mais de cem mortos! Aliás, cento e uma pessoas incluindo um rapaz do prédio.

— No comunismo essa tragédia não aconteceria. O Estado controla tudo, até situações de eminente perigo público. Breve o comunismo chega ao Brasil. — vaticina o comunista. No portão encontrou Carlos Vilaça. — De arrombar, Vilaça. É um país de irresponsáveis. Derrubaram a Ladeira da Montanha.

— Quem derrubou?

— Pode ter sido até atentado. A Castro Alves, a praça do povo, virou pó. Aliás, nunca foi do povo; serve para exercício da demagogia capitalista: o carnaval. A festa que cega, ensurdece e endoidece o povo.

— O povo merece um pouco de diversão, Julinho.

— O povo gosta mesmo é de circo. Bancando ele mesmo o palhaço.

— É verdade o acidente?

— Até o Elevador Lacerda, dizem, caiu. Sabe o que acho? — Traz o amigo para perto de si — Pode ter sido atentado terrorista.

— Alguém assumiu a autoria? Terá sido o partido?

— Não acredito. Se bem que cada célula é independente, inclusive nas ações. Terá sido ato terrorista? De repente os inimigos dos americanos resolveram se vingar. Existe parceiro político mais incondicional aos americanos que o Brasil? É a história de atirar nos ovos de um para pegar na boca do outro.

— Então pode ter sido ato terrorista mesmo.

— Não espalhe. Parede tem ouvidos.

Glória, 1.302, descia ao trabalho. Funcionária pública, dividia-se entre o emprego e os afazeres domésticos. Vigiava o filho dia e noite com medo que entrasse no vício.

— Esse condomínio já foi bom. Agora só tem vício. Viu que horas Diego chegou ontem? Amizade ruim bota um na perdição. Sou pai e mãe ao mesmo tempo, tenho que trazer em corda curta.

Araçá quis falar: Dona Glória, a senhora… — Se for dinheiro emprestado, não tenho. É sobre o Diego?

— Coisa pior, dona Glória. Seu filho é um santo.

— O que teve ele?

— Foi a Ladeira da Montanha.

— Ele foi? Meu Deus, onde eu errei? Meu filho no baixo meretrício! Não diga que é normal. Não criei filho para sair pecando por aí. Foi com quem? Levou pelo menos camisinha?

— Não foi ele, já disse.

— Amizade ruim dá nisso. Pior é ser a doença incurável; só se manifesta daqui a dez, quinze anos. Ele vai me explicar tudo direito.

Glória respondeu ao bom dia de Gildete, que queria conversa: — Está com a fisionomia abatida. Algum problema, Glória?

— Filho só dá dor de cabeça. Soube agora que meu filho foi para a Ladeira da Montanha.

— Foi mesmo? Não é possível! Quantos anos ele tinha?

— Tem dezessete anos. Não sei a quem puxou.

— Coitada de você, amiga…

Glória partiu de ônibus para Itapuã. Gildete permaneceu no playground dos fundos enquanto seu pequeno animal fazia xixi: “Não esqueça, primeiro o xixi; depois o totôzinho”. O animal fez xixi na brita, resto de reforma de algum apartamento. Depois, rápido ao monte de areia grossa onde fez cocô. A mulher exigiu mais: — Não vai enterrar? — O animal espiou o ambiente, não deu atenção. A mulher insistiu: — Não vai enterrar? — O animal, cavando em volta, jogou areia no toletinho. A mulher, satisfeitíssima. — Agora venha para eu dar um cheiro. — Pegou o animal, beijou longamente na barriga: — Toda vez que fizer assim ganha um cheiro no pipi.

Edna saiu do elevador apressada. Fazia transporte escolar como meio de vida. — Estou atrasada, Gildete; dormi pouco; acompanhava o noticiário. A Ladeira da Montanha desabou. Vai morrer muita gente. Só de casa de prostituição foram soterradas mais de dez. Parece que morreu um rapaz do terceiro andar.

— Meu Deus, por isso Glória estava chorando. O filho dela foi ontem para a Ladeira da Montanha. Deve ter morrido.

— Ela mora no terceiro andar?

— No décimo-terceiro.

— Então já são duas pessoas do condomínio. Vai aparecer mais gente. Era sábado, dia de movimento.

A mulher embarca. Liga a ignição, o arranque desliza. Depois chora, querendo pegar. Duas tentativas e finalmente a bateria descarrega. — Nunca mais compro carro a álcool. No tempo frio essa porcaria não pega. Agora só no empurrão. — Pede ajuda ao porteiro. Chega mais gente para ajudar e o Fusquinha vermelho acorda da noite de frio. A mulher acelera. Agradece. Chama a atenção de Zé Carlos Pereira: — Zé, já sabe da Montanha? Uma tristeza; parece castigo. Pelo visto morreu muita gente. Daqui do prédio já foram dois. Um, era do terceiro andar; não sei o nome. Dizem até que era bicha.

— Bicha no baixo meretrício? E o outro?

— O filho de Glória do décimo terceiro. Não tinha dezoito anos. A mãe saiu louca da vida. Foi buscar o corpo.

Josesus dá bom dia. Araçá não responde. — Não ouviu meu bom dia, seu Araçá?

— Esse rádio a noite toda… O locutor é teimoso. Desligava, ele ligava em edição extraordinária. Estou com o ouvido que não agüento.

— Fala sério, porteiro?

— A cabeça estourando. Além do porteiro assombrado, agora apareceu esse locutor. Para mim foi ele que causou esse acidente na Montanha. Só pra falar a noite toda.

— Você está bem, porteiro?

— Não estou melhor porque não dormi. Morreu mais gente.

— Quem lhe disse?

— O locutor do rádio. Toda hora me acordava. Parece que morreu até freira.

— Freira, irmã de caridade?

— Essa mesma. Morreu uma com roupa preta.

— Fazia visita de caridade?

— Uma rapariga se vestia igual à freira. O apelido dela era Irmã.

— Cruz credo, que profanação!

Josesus quis sair, Araçá o conteve: — Seu Jesus, já morreram dois daqui, soterrados. Um, é do terceiro andar, não sei o nome; o outro, é filho de dona Glória. A mãe saiu se acabando de chorar. Acho que foi buscar o corpo.

— Cristo, tende piedade dessas famílias.

Vavá Amorim deixou o elevador de serviço. Engenheiro de formação e flamenguista de coração, jornal de esportes debaixo do braço, provocou: — Cadê seu Bahia, Araçá?

— Bahia num luto desses?

— Perdeu novamente e está de luto?

— Quem está de luto é a cidade toda. O senhor não soube? A Ladeira da Montanha…

— Conheço bem. Quando era rapazinho andei por lá.

— Se fosse ontem, morria. A Ladeira caiu.

— Como?

— Caindo. Já são mais de cem mortes. Aliás, cento e três com os dois moradores daqui e uma freira.

— Uma freira? Morava aqui?

— A freira era de uma igreja da cidade. Fazia visita de caridade.

— E os daqui?

— Um morador do terceiro andar e um rapaz do décimo terceiro, filho de dona Glória.

Vavá apanhou a pasta e correu, paralítico de uma perna, ao ônibus da empresa. Na pressa, esqueceu o jornal de esportes. Lúcia aparece no playground. — Meu sobrinho não chegou ainda. Saiu com uns amigos; até agora não retornou. Saiu para comemorar um aniversário e…

— Quantos anos ele tinha, dona Lúcia? — Antes da resposta Araçá arregala os olhos — Quantos anos, dona Lúcia? Será que foi ele?

— Foi ele o quê? Tinha dezessete para dezoito anos.

— Então foi ele. Seu sobrinho morreu!

— Está maluco? O menino foi comemorar um aniversário.

— Foi ele, sim! A senhora sabe que a Ladeira da Montanha veio abaixo e matou mais de cem pessoas? Entre os mortos, um é morador do terceiro andar; outro é um rapaz de dezessete anos. A senhora mora em que andar? Foi ele mesmo! Pode se preparar para ir buscar o corpo.

A mulher foi ao chão. Francisco Souza, 1002, a socorreu: — Ajude aqui, porteiro! A mulher está se sentindo mal. Será que está grávida?

— Foi o susto. — responde Araçá. — O sobrinho dela morreu na Montanha. Parece que já são três só daqui do condomínio.

A conversa ganhou pernas: três moradores vitimados. O síndico convocou reunião extraordinária com a seguinte pauta: “Discussão do acidente da Ladeira da Montanha. Identificação das três pessoas do condomínio sinistradas no acidente. O que ocorrer. Horário: 20h30min com metade mais um dos condôminos. 21h00min com qualquer número”. A ata foi aberta às vinte e uma horas com qualquer número de pessoas. O próprio síndico lavrou a ata, iniciou, finalizou e assinou, só ele, com o juramento: “Nunca mais convoco reunião nesse condomínio. Ninguém comparece! Aliás, vou convocar mais uma: para entregar o cargo, irrevogavelmente”.

***

Apareceu Julinho comunista para a lavagem cerebral diária. Seu Julinho, o senhor demorou hoje. Estava assistindo o noticiário da Montanha? — perguntou Araçá.

— Quem não se salvou não se salva mais; os escombros estão molhados, não há condição de respiração. Assistia o noticiário político. A preocupação hoje é a fome.

— A fome que engole montanhas. Não é assim que está na bíblia?

— Na bíblia está escrito que a fé remove montanhas.

— Desculpe, seu Julinho. E o comunismo?

— O assunto do momento é o projeto do senador ACM da Bahia. Quer acabar a fome no Brasil.

— Ele é comunista?

— Até agora, não; parece que vai se juntar ao Lula do PT. A primeira reunião será amanhã.

— É reunião para distribuir comida?

— Que pobreza! Primeiro a questão macroeconômica, entendeu? — Araçá não responde, atrapalhando o discurso egocêntrico de Julinho, que insiste: — Entendeu? Primeiro a questão maior. Estão falando na criação de um programa de fome zero. Depois vão entrar nos detalhes. Aliás, os detalhes não importam. Só as grandes questões interessam.

— Distribuir comida é detalhe?

— Dos menores. O importante é abrir a discussão a nível nacional e internacional. Provocar remorso nos países ricos, além de promover o Lula a estadista. Ganhou ponto o senador Magalhães ao abrir a questão. É uma união complicada.

— Ele é comunista?
— Está maluco? O homem é o maior líder da direita. Não é comunista, mas pode ocorrer uma adesão, entendeu?

— E esse comunista vem quando?

— O comunismo? Quando o povo decidir. Pegar das armas, depor o governo que está aí.

— Depor como, seu Julinho?

— Tirar do poder usando da força, das armas. Entendeu?

— Não, senhor.

— A culpa não é sua. O aprendizado é um processo de aglutinação. As informações vão chegando aos poucos. Breve você será um comunista. Quando, só Deus sabe.

— Comunista acredita em Deus?

— Claro que não! É a maneira de falar.

A tragédia da Montanha foi a pior do gênero em Salvador. As chuvas intermitentes sempre trazem desabamentos e mortes. As áreas de risco são mapeadas e apresentadas à imprensa. Administradores públicos mostram projetos e obras que prepararão a cidade para o período de chuvas. A tragédia da Montanha chamou a atenção pelo inusitado. Ninguém pensaria, jamais, que a ladeira secular fosse área de risco. Nem o próprio prefeito.

A imprensa acompanhou a desobstrução das pistas. Foram resgatados corpos nas mais estranhas situações. Um soldado da guarnição de socorro descobriu o corpo de uma mulher parecidíssima com a sua própria. Largou tudo e correu a telefonar. Voltou chorando; era ela mesma. A imprensa noticiou o caso de uma senhora da alta sociedade que mantinha vida dupla. Sob a luz do dia era madame; nas trevas, transformava-se numa das prostitutas mais requisitadas da zona. Tentaram abafar, mas o caso ganhou manchete nacional. O marido, empresário e candidato a político, reclusou-se num mosteiro nas montanhas da Chapada Diamantina. Mudou de nome e hoje é monge.

Jornais publicaram fotos da empregada e do patrão, ramo da construção civil. Ele foi deixá-la em casa, cujo percurso incluía a Avenida do Contorno, parte baixa da sinistrada ladeira. Foram soterrados dentro do carro; o destino os uniu para sempre num momento dantesco. A viúva não acreditava na inocência do marido. “Aquela vagabunda era rapariga dele! Estão escondendo a verdade. Eles estavam quase nus dentro do carro”.

A verdade, só Deus sabe.

Chocaram as cenas desesperadas da mãe que se arrastou do interior da Bahia para reconhecer o corpo da única filha. Não entendia a razão da menina, dezoito anos, bonita, encontrar-se naquele fatídico lugar. “Veio para Salvador trabalhar e estudar. Escreveu dizendo que trabalhava como vendedora num shopping. Agora falam que ela morava nessa ladeira. Que vergonha!”.

Não relataremos outros casos para preservar a dignidade humana. Quantos aos mortos, não chegaram aos cem informados por Araçá. De ordem do síndico, porteiro Nivaldo, o mais letrado, aplicou pesquisa perguntando se alguém tivera irmão, pai, filho ou parente vitimado no acidente. A conclusão foi zero, graças a Deus. O resultado confirmou: Araçá vivia grave problema mental.


Astrogildo Miag desponta como memorialista competente, especialmente neste atraente livro, composto de 13 capítulos, onde confidencia com o leitor o sentimento de infância que o progresso inexorável fincou-lhe na memória. O projeto – a Hidrelétrica de Sobradinho – que se propunha emancipar economicamente aquela pequena urbe Remanso, ainda é promessa, segundo o autor, a arrastar-se na expectativa desesperançada dos habitantes de Remanso. Imagine-se revivendo hoje uma experiência de vida, na infância, de emoções tão fortes e conflitantes que só quem as experimentou foi capaz de recordá-la de forma tão sedutora. O autor retrata com surpreendente detalhe e realismo o severo código de convivência entre a meninada do seu ciclo social, e todo o cotidiano daquela vida de surpreendentes episódios. É um relato de vida sofrida, onde a dor física e o conflito existencial tripudiaram no tenro corpo e mente de uma criança, diante de desafios quase intransponíveis em busca do saber; o desespero e a impotência diante da injustiça truculenta que vitimou o pai. Mas, ao lado de tudo isto, foi ali, nos distantes idos da década de 60 que o personagem-criança também experimentou felicidade, revivida nesta agradabilíssima obra.

O autor guardou da experiência daqueles tempos idos bons momentos de felicidades, pois, para ele, a criança vive contabilizando com alegria o passar do tempo, numa perspectiva de alcançar a etapa adulta, e a felicidade pode vir das coisas simples. Pode estar aos olhos e diante das mãos, mas nem sempre a percebemos.

Memórias de um coroinha, romance, de autoria do remansense Astrogildo Miag, 232 páginas, chancelado pelo FAC – Fundo de Apoio à Arte e à Cultura, Brasília – DF, 2005.

 

Mensagem do Autor

 

Todos têm uma história, alegre ou triste. De vez em quando vem-nos e  transporta-nos a longínquos lugares. Nada traz mais saudades que os bons tempos ao lado dos familiares, junto aos amigos, na cidade perdida no fundo da  alma. Recordar é viver ou sofrer duas vezes? Seja o que for, vou retornar. Beber a água límpida da infância perdida nos distantes grotões. Subir e descer, mergulhar em águas profundas, escalar morros e montanhas mais ou menos íngremes. Toco a mão nos espinhos que doem e trazem febre. Vejo-me deitado, avós na cabeceira, toalha molhada  afugentando a febre que não quer ir embora. Vou mergulhar nas águas correntes de uma fonte sem limites. Ver o sofrimento de meu pai, preso, sem poder comprovar que era um simples cabeleireiro; não um comunista, fichado até na Rússia, como garantiam os delatores. As escarpas de grandes paredões transformarão minhas mãos em sangue. Vou lembrar da labuta da vida. Estudando e estudando,   quilômetros a pé por não dispor de parcos centavos para pagar a condução. As abelhas africanas que me atacarem quando estiver recordando, lembrar-me-ão que a vida é luta só. A abelha que produz mel, o alimento mais nutritivo, é a mesma que aferroa. Recordar é viver, penso. Vou retornar. Recriar o que jamais será. Esta é uma das grandes frustrações do homem. Como diz o poeta Nelson Mota,  “nada do que foi será…”

 Palavras do autor

 É difícil referir-se a si mesmo, reportar-se à vida perdida na alma. Mais difícil é definir as referências básicas. A memória registra quase tudo que marca a vida. São tantas as passagens!

De fato, não sei por onde iniciar. Pretendo um corte vertical, reconstituir a vida num período determinado. Revivê-la na sua integridade e emoção. Literatura é emoção. Arte literária não pode ser relato puro, simples ou rebuscado, de algo que aconteceu. Sem a emoção, sem a realidade recriada na percepção do artista não se constitui literatura, mas, um texto; talvez bem escrito, porém, amorfo; como um relatório técnico; nunca arte literária.

É importante definir a referência temporal da abordagem, e o fazemos agora: Este livro procura ser fiel aos acontecimentos ocorridos no ano de 1967, aos onze da minha vida. Naquela época, todos desejavam que seus filhos fossem coroinhas, ajudassem o padre nas celebrações religiosas. Era a melhor escola, então. Aprendíamos a Amar a Deus Sobre Todas as Coisas, Amar o Próximo Como a Ti Mesmo, Honrar Pai e Mãe, Guardar Domingos Dias Santos e outros Mandamentos da Lei de Deus, como ensinavam os catecismos.

Convém diferençar coroinha e sacristão. Este, geralmente era pessoa adulta, temente a Deus, que tomava para si a responsabilidade de colaborar nas atividades paroquiais, inclusive administrativas. Já o coroinha, era criança, dez anos em média. Por conta da religiosidade da família, ajudava o padre nas celebrações religiosas, muitas vezes contra a própria vontade; como obrigação, para tomar freios na vida. A indumentária do coroinha era a batina: Saiote de elástico, geralmente vermelho, e camisão branco. Permanece inalterada na maioria das paróquias.

 A cidade perdida

O local onde se desenrola esta história é a cidade perdida no fundo da minha alma, na acepção mesma das palavras. Isso, pelo simples fato que, Remanso, no médio São Francisco da Bahia, onde nasci, já não existe, foi tragada pelas águas da Barragem de Sobradinho nos idos da década de setenta. De repente, foi como se acordássemos de um pesadelo. As conversas e boatos deram lugar às máquinas pesadas, invadindo a bucólica e pequena cidade. A compreensão verdadeira de que os boatos de que algo muito grande e grave aconteceria foi a chegada de um caminhão, uma jamanta, com dez eixos e quase cinquenta pneus transportando máquinas nunca vistas pelos moradores da região.

A partir dali foi tudo muito rápido. Logo, chegaram os milhares de trabalhadores dos mais distantes rincões, que mudaram a fisionomia do local. Houve uma perversão completa de valores. A comunidade bucólica fincada num lugar distante e isolado, sem estradas, viu-se sacudida nas coisas que lhe eram mais caras. Os costumes sofreram uma revolução brusca. A velha iluminação a motor diesel deu lugar a energia abundante e constante tomada emprestada da Barragem de Boa Esperança, no Piauí. Por ser a maior cidade da região, atraía as levas de trabalhadores sedentos de aventuras e contatos com o sexo oposto. As mulheres, mocinhas e balzaquianas, descobriram a sensualidade e o poder dela oriunda. Algumas seguiram o canto floreado e falso da sereia e perderam-se pela vida. Outras, com estrutura de vida familiar mais sólida, constituíram família com aqueles trabalhadores  da barragem. Não acordaram do conto de fadas e são felizes para sempre.

 Capítulo I

                 Nasci de família pobre. Os utensílios tinham a vida útil prolongada até o possível. Roupa nova, só para a festa da padroeira, Senhora do Rosário, comemorada a cada trinta de outubro. Cada um tinha uma roupa melhorzinha – a domingueira – para vestir aos domingos, dias santos e feriados.  O pouco uso prolongava a vida útil dos sapatos, pois durante a semana calçávamos alpercatas de couro. Uma vez, desejei uma sandália japonesa, de borracha, com correias trançadas, recém chegada ao mercado. Todos da rua já possuíam sandálias japonesas. Minha mãe olhou-me, expressão de nada poder fazer. Não era com ela; fosse conversar com meu pai. Tempo perdido falar com meu pai. A resposta, já sabíamos:  sandália japonesa acaba num instante. E tem mais – reagiu minha mãe – vai perder na primeira semana. Tudo que tem, perde! Cadê o lápis que seu pai deu na segunda-feira? Cadê o lápis?  Guardei; ta bem guardado, respondi. Tá mentindo! Você perdeu. O mesmo vai acontecer com a sandália, se seu pai comprar.  Cadê o lápis mesmo? A situação revertera-se. Esqueci da sandália japonesa e fui procurar o lápis. De fato, tinha guardado; onde, não sabia.

Olegário era o melhor engraxate da cidade. Fazia ponto no oitão, ou seja, na sombra ao lado da casa. Suas gaitadas – risadas – eram ouvidas à distância.  Mascava fumo de rolo, fedorento. As cusparadas empestavam o ambiente com o cheiro nauseabundo do fumo. “Saiam do meio que vou cuspir!”, gritava antes de lançar um cuspo escuro na rua. Alguém pisava no cuspo do engraxate: “Seu Olegário, não cuspa na rua. Cuspa aí, no cantinho, pra gente não pisar nessa imundície”. Não posso cuspir num cantinho perto de mim – respondia Olegário. Não vou agüentar o fedor de fumo mascado. “Então deixe de mascar”, retornava a mulher.

– Acostumei a mascar dia e noite. Se parar, os dentes vão cair.

– Que falta fazem esses dentes pretos?

– São fortes, dona Maria José. Carne? Como é crua mesmo!

– Creio em Deus padre! – falou Maria José, arrepiada. Olegário soltava, então, a mais gostosa gaitada. A mulher interpretava como provocação: – Você vive como bicho! O prefeito devia proibir gente imunda de cuspir na rua.

O engraxate soltou outra risada. Maria José enervou-se:

– Vou chamar a polícia! Não me provoque. Está chegando a festa do Rosário e não quero pecar. Não me provoque.

Olegário espalmou as mãos no rosto, olhava o céu:

– Minha “nossa” Senhora do Rosário, no dia da sua festa vou estar limpo, de roupa nova, ajudando a carregar seu andor.

Maria José perdeu a calma, rogava a última praga:

– Não vai carregar andor nenhum! Não vai conseguir limpar a graxa dessas mãos! Essa você me paga. Essa você me paga. Com fé em Deus…

Olegário continuou o trabalho. Os garotos apreciando. Esse vai ficar brilhando – falava Joaquim. Quem vai brilhar mais é aquele marrom ali, dizia outro. Só porque é do pai dele – intercedeu Gilberto, chamado Bertinho, também apelidado de Coruja-Prenha. Cala a boca! – respondeu Dílton. – Meu pai tem três sapatos! O seu não tem nenhum. Só anda de alpercata.

Coruja-Prenha sentiu a ofensa, mas não podia negar:

– Não sei porque seu pai tem três sapatos, se só pode calçar um de cada vez. Meu pai tem alpercata mesmo. Só pode ter uma porque é pobre; mas é pobre da graça de Deus. O seu, é rico da graça do cão.

– Da graça do cão é o seu. O meu, é da graça de Deus.

– Quem é rico é da graça do cão. Deus não gosta de rico.

Gosta. Não gosta. Gosta, sim. Não gosta. Gosta… Rolaram pelo chão. Olegário soltou um grito medonho: “Parem de brigar ou vai todo mundo embora!” O estrago já estava feito: Coruja-Prenha venceu a briga, mas perdeu a batalha: rasgou-lhe uma das poucas camisas. Furioso, arremeteu: “Rasgou minha camisa. Vai ter que dar outra!” Sua camisa estava boa de jogar fora, respondeu Dílton. Quero outra camisa. Vou dar parte à sua mãe. Quero outra camisa… – Coruja-Prenha, chorando, foi à casa de Dílton. Se chegasse sem camisa, apanharia de chicote de cavalo; questão de sobrevivência.

Retornou satisfeito: “Falei com dona Edite. Me mandou passar de-tardinha. Vai me dar uma camisa dele”. Se ver você com camisa minha, tomo e rasgo. Não quero nem saber quem deu!, declarou Dílton. Olegário acalmou, conhecendo a situação de cada um: Não faça isso, seu Dílton.  Sua mãe deu porque quis dar. Vá pra casa que é melhor. Dílton obedeceu. Bertinho amarrou a camisa rasgada na cintura. Apareceu Maria, irmã mais velha:

– Bertinho, venha pra casa. Mamãe não quer você brigando que nem cachorro. Vista a camisa. Apanhou?  Se apanhar na rua, apanha em casa também. Apanhou?

– Apanhei não.  Fiz foi bater.

– Vista a camisa.

– A camisa rasgou na briga. Já fui dar parte a mãe dele. Vai me dar outra.

– Rasgou sua camisa? Pois vá buscar. Só chegue em casa com outra camisa. Não deixe mamãe saber, seu descarado!

A tarde continuava ensolarada. Nicinha de Sátiro mandou os calçados de toda a família. Olegário devolveu; não daria tempo lustrar. Continuou polindo os sapatos…  Cuidado com esse, Olegário – falou meu irmão Fernando, apelidado de Fefé.

– Esse eu conheço não é de hoje. Mais de três anos que limpo esse sapato. Pergunte a seu pai o que faz pra durar tanto.

– Agora você errou. Esse foi meu; não é mais. Agora é do Tugido; ficou apertado pra mim.

– Ganhou um novinho?

– Fiquei com o que era do Tal, meu irmão.

– Conte essa estória direito. O Raulzinho ficou com o seu e você ficou com o do Tal. O Sibute, seu irmão, ficou com o do Raulzinho, o Raulzinho ficou com qual? Já me enrolei todo…

– É fácil, Olegário. O Cenço, o mais novo, apelidado de Sibute, ficou com o do Raulzinho. O Raulzinho, com o do Tugido.  O Tugido ficou com o meu. Eu fiquei com o do Tal, que tem o pé maior.

– O Tal vai ficar descalço?

– Meu pai vai comprar um sapato fiado, mas ele não quer. Vai pra procissão descalço, mas não quer fiado. Ele acha que seu Zebinha vende com a cara feia.

– Aí ele se engana. Sabe quanto custa um sapato fiado em seu Zebinha? Um dinheirão! É juro de arrombar. Termina pagando três pares. E quem fica com o sapato do mais novinho?

– Minha mãe limpa pra o que vai nascer já ter um sapatinho pronto.

O sol preparava-se para dormir. Mais da metade da tarde fora embora. Manuel da Isa perguntou quem iria tomar banho no rio. Bertinho esperaria dona Edite, para receber a camisa. Também não vou, alertou Bira do Valdemar. Iria jogar bola, no pneu de couro novinho, de Zezinho. A bola viera de São Paulo: “Hoje é a inauguração. Mas de graça só eu, porque sou bom de bola. Quem quiser jogar tem que pagar. Estou falando o que ouvi. Quem não pagar não joga”, alertou Bira. Manuel da Isa não aceitou: “Então não vai ter jogo. Ninguém tem dinheiro, ele não pode jogar sozinho”.

Zezinho acabava de encher a bola, vermelhinha. Pedi pra ver. Respondeu-me, grosseiro: “Ver, pra que? Pra ralar?”. Pegar não rala, respondi. “Não está à vista, não. E tem mais: quem quiser jogar vai ter que pagar”. Se ninguém tiver dinheiro, perguntei-lhe. Paga em tampa de garrafa ou dinheiro de cigarro – respondeu Zezinho. Não recebo Continental. Só de BB pra cima.

Quem não tiver tampa de garrafa nem dinheiro de cigarro? – interviu Sarambica. “Paga com dinheiro de verdade. Se não tiver, não pega na bola nem como gandula. Se pegar, apanha!”. Sarambica pediu, humilde: “Eu queria jogar. Posso pagar depois?”. Pode, sim; de noite, respondeu Zezinho. Quando for jantar traga um pedaço de pão com ovo, definiu o dono da bola.

– Não posso. O pão é contado e não tem ovo.

– Não tem ovo? Ninguém come ovo em sua casa?

– Só meu pai. Não vou pegar o ovo dele pra dar a você.

– Não quero o ovo do seu pai. Deus me livre! O que vocês comem?

– Um pão com farofa de peixe.

– Só come isso todo dia? Estou sentindo um fedor de peixe… – Zezinho abana a mão na frente do nariz. – Não sabia que na sua casa só se comia peixe.

– Meu pai é pescador. Nem todo dia pode comprar carne ou ovo. Tem dia que não tem nem pão…

– Que pai é esse, Sarambica? Deixar a família comer só peixe? E peixe, porque é só chegar no rio e pescar. Se tivesse que comprar, comia era farinha seca mesmo.

– Diz isso porque seus parentes de São Paulo são ricos. Meu pai não tem trabalho.

– Fale com ele pra arranjar um emprego. Seu Elias Rosal, os Castelo, os Ribeiro devem estar precisando de gente.

– Quer saber de uma coisa, Zezinho? Fique com sua bola. Não quero mais jogar. Não vou trocar meu de-comer por jogo.

Vandir entrou na conversa: – Zezinho, é pecado. Quer tirar o pão de Sarambica em troca de uns dois chutes nessa bola? A bola sem a gente não vale nada. Se Sarambica não jogar, ninguém joga.

– A bola é minha! De graça, ninguém. Vai estragar e não vou poder comprar outra. Se não quiserem, não tem problema. Vou guardar meu pneuzinho novo.

Intercede Aílton, de boa condição financeira. Pagaria por Sarambica. Paga o quê? – perguntou o dono da bola. – Não quero nem dinheiro. Quero um pão com ovo, de noite. Se não tiver pão com ovo, traga o que tiver, menos peixe.

Saímos, Zezinho abraçando a bola. Adiante, Paulinho do Artur perguntou aonde íamos. Pra várzea, jogar bola; vamos fazer dois times. Zezinho ganhou uma bola novinha, profissional, veio de São Paulo. Venha ver – convidou Dílton.  Não posso; sou intrigado com ele – respondeu Paulinho. Mas pode jogar na bola, insistiu Dílton. Como, se a bola é dele? – conformou-se o outro.

Dílton cochichou com Zezinho, que balançou a cabeça afirmativamente.  Dílton, então, concluiu: “Pode jogar. Só tem um problema. Vai ter que pagar. Zezinho não faz nada de graça. Até Sarambica vai pagar”.

– Vou pagar o quê?

– Vou perguntar… – O grupo esperou a resposta… – Tá resolvido! Pode jogar, mas com uma condição. Você chuta muito forte. Zezinho não quer que chute forte. A bola é nova, pode estourar os pontos.

– Assim não dá – respondeu Paulinho. Tenho culpa se chuto forte com os dois pés? Bolinha nova é boa, pra amaciar.

Dílton dirigiu-se a Zezinho. O dono da bola franziu a testa e respondeu. O interlocutor transmitiu: “Zezinho aceita. Pode jogar. Agora vai ter que pagar. Ele não quer nem dinheiro. Depois você paga. No armazém de seu pai tem demais, não vai fazer falta. Chegam caixas e mais caixas de Santa Maria da Vitória”.

– É cachaça? O que tem muito no armazém de meu pai é cachaça.

– Se fosse vinho, garanto que queria. Cachaça não sei, não. Vou perguntar… – O interlocutor falou ao ouvido. Transmitiu a resposta: – Cachaça não quer, não. Quer comida.

– Esse sacana é guloso. Diga logo o que quer.

– É comida gostosa. Quer uma rapadura das grandes.

– Rapadura? Ele vai fazer o que com rapadura?

– Cocada-puxa pra vender. Aceita? Da pequena não quer porque é dura.

– Das grandes, não dou. Dou das médias.

– Certo; dá que dia?

– Amanhã. Mas vou descontar na bola.

Prosseguimos ao campinho da várzea. Zezinho, compenetrado, a bola entre os braços. Pedro da Júlia perguntou aonde íamos. Quem respondeu foi Sarambica: “Jogar bola; quer ir?”. Zezinho repreendeu: “Você é dono da bola, Sarambica? A bola é sua”. Não acho nada demais chamar ele, respondeu cabisbaixo Sarambica. Todo mundo pagou; você não vai pagar e ainda convida como se fosse dono da bola?, tornou Zezinho.

– Só chamei porque ele é bom de bola. Você mesmo diz.

– Dê seu lugar a ele.

– Dou mesmo. Pedro, pode ir. Eu vou pra casa.

Pedro não aceitou. Vandir repreendeu. Aquilo não se fazia. Humilhar Sarambica, que era o próximo… “Você nunca leu o catecismo. Não sei nem se fez a primeira comunhão”. Zezinho mandou Vandir à porra. Quem se doera que tomasse as providências…

– Se quiser pode ir embora. Aliás, quem vai embora sou eu. Vou guardar meu pneu. Pelo menos não ralo ele hoje.

Apareceu Bostê, de batismo Wilson Café, valentão da rua de Cima. Era espírito de porco, alcunha para pessoas malvadas. Vão pra onde, tropa de frouxo? – perguntou. Frouxo é a mãe, responderam. Quem? não ouvi direito – tornou Bostê. Frouxo é a mãe; quem falou fui eu. Quer que repita?- desafiou Aílton. Você não é homem pra me bater, seu bosteiro.  Sabe o que vai perder… Merenda nunca mais.

– Quem sou eu pra bater no meu amigo-quase irmão?  Só queria saber pra onde vocês vão.

– Jogar bola. Zezinho ganhou um pneu número dois.  O irmão mandou de São Paulo. Vamos inaugurar. Só tem um porém, Bostê. Só joga quem pagar.

– Vou de qualquer jeito. Pedro da Júlia vai também. Pode vir, Pedro – dirigiu-se ao outro. Você não vai pagar nada. É meu convidado. Vai jogar no meu time, não é Zezinho?

– O time é seu, Bostê. Bote quem quiser. Vai jogar com que bola? Para a minha bola nova já está completo. Se pagar, posso até abrir duas vagas.

Bostê chegou-se a Zezinho, acintosamente…

– Vou jogar sem pagar. O Pedro vai ser meu ponta-direita. Se conversar muito vou dar coroão pra cima. Tou ressecado por bola. Vamos logo, está escurecendo.

– Ah Bostê, lembrei de uma coisa. Não vamos jogar mais hoje. Esqueci de passar sebo de bode pra amaciar os gomos.

– Tá querendo correr? Vai ser hoje, agora! A bola vai sem sebo mesmo.

Zezinho disse não; a bola era dele. Bostê decidiu: “Se não for, pode esquecer em casa. Se sair com ela, vou furar. Com pau mesmo eu furo. Você escolhe”. Vandir chamou Zezinho. Confabularam. Expressou o resultado:

– Tá certo, Bostê! Você vai jogar de graça. Pode vir também, Pedro. Vamos depressa. Está escurecendo e hoje é o primeiro dia de novena. Não quero perder de jeito nenhum!

Chegamos ao campo. Despimo-nos das camisas para não suar nem rasgar. O par-ou-ímpar foi ganho por Aílton, que escolheu Vandir. Zezinho escolheu Pedro da Júlia. Sarambica provocou: “E não queria deixar o Pedro jogar…”. Cale a boca ou deixo você de fora – respondeu o dono da bola.

Foi dada saída. A bola saltava apressada pelo chão batido. Pedro driblou Danton, lançou Zezinho que, mascarado, quis colocar e chutou devagar. O goleiro Haroldo devolveu a bola com um chutão ao alto. Zezinho não gostou:

– Assim não, Haroldo! A bola nem amaciou ainda.

– Jogo é jogo. Se não passou sebo não é problema meu. Se jogar perto você pega e faz o gol. Vou jogar para o alto. Goleiro joga é assim. Fico no gol, parado, esperando uma bola de vez em quando. Não tenho nem direito de chutar?

– Jogue com a mão, como fazem os goleiros profissionais.

– Não sou profissional e gosto é de chutar mesmo!

Vandir pede pressa, jogo é jogo: “Anda, rapaz! Tá ficando tarde. Joga essa bola”. Haroldo lançou pelo alto. Zezinho zangou-se mais ainda: “Está fazendo de propósito, não é Haroldo?”.

– Tou não. Se quiser, pode vir para o gol.

Bostê deu uma entrada bruta em Camerindo.  Dílton reprovou: “Pra que isso, Bostê? Quase quebra a perna do rapaz”. A resposta veio imediata: “Não tou vendo rapaz nenhum. Se é Camerindo, pior ainda. Não agüenta o vento do meu soco. É melhor deixar de manha” – completou. Camerindo levantou-se num salto!

Pedro novamente pela direita. Driblou Bertinho. Chutou certeiro no canto esquerdo. A bola ultrapassou a marca do gol, quicando para o lado do Capão de Cima. Os meninos de lá também jogavam num campinho de areia. Zezinho arregalou os olhos: “Minha bola! Por que deixou passar? Corra, Haroldo! Vá buscar minha bola ligeiro. Os do Capão vão pegar minha bola!”.

Dito e feito. Juvenal, o mais valente, deu o maior chutão para cima. A bola subiu tanto que diminuiu de tamanho. Nego do Barqueiro também deu coroão. O Gorolha, idem.  Zé Resseca, também. Haroldo corria atrás da bola, que subia ante sua chegada. Zezinho apavorou-se: “Vão estourar minha bolinha. Me ajudem! Você, Bostê, que é valente e não apanha de ninguém, venha me ajudar”.

– Zezinho, não vou não. Os do Capão de Cima só andam armados. Não tenho barriga pra isso, não.

– Pelo amor de Deus, Bostê! Vão acabar com meu pneu novo. Dou o que você quiser. Prometo! Tudo o que quiser.

– Dá mesmo? Olhe lá… Ainda vou dizer o que quero.

– Pode pedir. Ande depressa, se não vão acabar com minha bolinha.

– Eu vou, mas não vou só. Vou na frente, todo mundo junto atrás. Eles são muitos. Tá certo, turma? – concordaram. Só faltava Bostê dizer o que queria: – Meu pagamento vai ser o dinheiro que todo mundo pagou pra jogar. Aceita?

– Isso não! O dinheiro é pra comprar outro pneu quando esse acabar. Aí não pode!

– Então fique com seu pneu velho e acabado, se sobrar alguma coisa.

– Não posso dar o dinheiro. Prometi que ia guardar.

– Pode guardar. Já vou…

– Venha cá! Dou o dinheiro. Só não dou duas coisas. O pão com ovo que Dílton vai me pagar e a rapadura do filho do Artur. Certo assim?

– Quero tudo! O pão com ovo vai ser meu café hoje de noite. A rapadura, vou adoçar café amanhã cedo. Quero tudo.

– Não recebi tudo ainda.

– Ainda quer discutir, rapaz? Você recebeu. Só falta o pão e a rapadura. Esses eu mesmo recebo. Quanto mais demora mais difícil fica.

– Tá certo; pode ir.

– Pode ir, não: pagamento adiantado.

Zezinho enfiou mão no bolso, triste… O dinheiro do outro bolso – cobrou Bostê. Esse é meu, vaticinou Zezinho. – Agora é meu. Se quiser seu pneuzinho de volta. Ligeiro ou o bicho vira pó.

Bostê dirigiu-se ao grupo: “Esse dinheiro é pra chupar picolé depois da novena. Agora vamos tomar a bola!”. Bostê na frente, como prometera, camisa amarrada na cintura pra não rasgar na briga. O sol se punha vermelho, mesma cor do sangue que poderia correr. O comandante Bostê com a cara mais feia! Aproximou-se; tropeçava quem encontrava pela frente: “Que porra é essa? Compraram bola pra dar coroão? Se pedissem pra jogar, a gente arranjava um lugar. Podia marcar até uma partida valendo ponto. Querem esculhambar!”.

O destemido Bostê derrubou Gorolha. Investiu contra Zé Resseca. Chegou tarde, a bola já tinha subido às nuvens. Esperou a queda, disputava com Nego do Barqueiro quando Juvenal aplicou-lhe uma rasteira. Bostê foi ao chão, entupiu a boca de areia. Botou fogo pelas ventas de tão zangado! Investiu contra Juvenal. Aplicou-lhe um pontapé na altura do baço. Juvenal recuou. Bostê acertou dois socos no rosto do inimigo: “Fi-de-rapariga! Vou botar pra comer terra na porrada!”. Juvenal sentiu a veneta de Bostê. Escondeu-se no seio do grupo. O adversário foi atrás: “Deixe de ser covarde. Venha brigar. Seja homem!”.

– Cuidado, Bostê! O Gorolha tá de canivete, gritou Sarambica. Bostê respondeu, incontinente:

– Eu sabia! Aqui só tem covarde. Por isso trouxe minha viana. Pode puxar o canivete, fio-de-uma-égua! – Bostê arrancou uma faca de dentro das calças: – Acham que ando sem minha viana, tropa de covarde? Vou cortar o bucho de todos, um por um. Podem entrar!

A turma do Capão recuou. Bostê continuou ameaçando. Os da rua de Cima admirados com a coragem do amigo. A bola, novinha, relegada num canto. Sarambica a pegou, como um troféu: “Já peguei a bola, Bostê!” Zezinho correu a tomar-lhe. Sarambica não gostou:

– Calma, Zé. Parece que sou do Capão de Cima. Vou devolver sua bola.

Zezinho pegou a bola e saiu na carreira. Dílton ainda pediu para esperar, irem todos juntos. Era tarde: Zezinho já chegava, ofegante, ao beco da Fadinha.

O sino, o grande sino da matriz, toca as ave-marias. Início de mais uma noite calorenta. O serviço de alto-falante anunciava a hora do ângelus. A bela cantiga do sino misturava-se ao coaxar dos sapos. A cigarra despedia-se de mais um dia de cantiga. Os pescadores retornavam das águas. Monsenhor Nestor declamava uma passagem da bíblia: “Queridos irmãos – voz entoada – a Virgem Maria está no nosso meio. Vem assumir seu reinado na comunidade. Sabedora que, nesta terra, ela é rainha suprema. O remansense ama sua mãe. Prepara-se nove dias para recebê-la no dia trinta de outubro de  todos os anos. Hoje é o primeiro dia da novena. Vamos esquecer desavenças, unir as vozes pedindo melhoria das condições de vida do povo. O senhor esteja convosco e permaneça para sempre, amém”.

O sino repicava. As duas turmas preparavam-se para o ataque final. Bostê com a faca, Gorolha com o canivete. O sol já se escondia mesmo. Cenário para uma carnificina. Foi aí que se adiantou a figura de Vandir:

– As coisas estão erradas. Vocês não prestaram atenção, mas monsenhor Nestor acabou de fazer uma pregação pedindo a paz. Hoje é o primeiro dia da novena de Nossa Senhora do Rosário. Querem derramamento de sangue nesse dia? Puxem as facas! Se não quiserem, vamos resolver essa questão na bola. Marcaremos uma partida para o primeiro domingo depois da festa do Rosário. Vocês arranjem uma bola. Cada um entra com sua bola um tempo. Vamos embora que já vai começar a novena.

O apoio a Vandir foi irrestrito. Marcamos a revanche, na bola, para o primeiro domingo depois da festa. O juiz seria Valdir Marques, o próprio delegado de polícia. A intenção era cercar o evento de cuidados para não redundar em violência. Os da rua de Cima voltaram comentando a ocorrência: “Nunca pensei que Bostê fosse tão valente e retado”.

– Foi quem salvou. A turma de lá não alisa.

– Sorte foi Neguinho do Jerônimo ter viajado pra Lapa.

– Que lapa? A do jegue?

– Bom Jesus da Lapa, ora.

– Foi fazer o quê lá?

– E eu sei? Sou mulher dele?

– Deve ter ido pagar promessa – ajudou Bertinho. Pra ficar livre dos pecados vai carregar muita pedra na cabeça.

– O mal de vocês é a língua – observou Chiquinho do Oscar.

– Papel feio mesmo fez Zezinho. Pegou a bola e abriu na carreira.

– Se não fosse Bostê, adeus bolinha.

– Bostê ganhou pra isso.

– Mas Zezinho não gastou nada.

– Não gastou, mas pagou. Pagou na hora, todo mundo viu.

– Quem pagou fomos nós.

– O dinheiro que meu padrinho Antônio Coelho me deu passei direto pra ele, por cinco minutos de jogo – queixou-se Sapatão.

– Pior foi Haroldo. Como goleiro, sem ter direito nem a um chutão! Ainda engoliu um gol.

– Engoliu, não: deixou a bola passar para os do Capão. É arriscado Zezinho querer bater nele.

Bostê interviu:

– Ninguém perdeu nada. O dinheiro está aqui no bolso.

– Bem lembrado. O que vai fazer dele?

– Chupar todo de picolé.

– Todo mesmo? – perguntou Sarambica admirado.

– Duas rodadas de picolé pra cada. Com o resto vou comprar uma garrafa de cachaça. Não mereço?

– Cachaça? Quando minha mãe souber que bebe cachaça, não vai deixar mais eu sair com você – registrou Aílton.

– Não é homem, não? O que é que tem? Parece que quanto mais rico mais besta…

– Ela não quer que eu beba. Quando chego em casa cheira minha boca.

– Fumar, pode?

– Só se cigarro não fedesse.

– Está enganado. Cigarro não fede, cheira.

Todos caíram na risada.

O sol escondeu-se completamente. Dezoito horas, Ave Maria. Hora das almas saírem em peregrinação. Apressamos os passos, com medo. Diziam que a alma do finado Nozinho, que morrera tuberculoso, perambulava pela várzea. “É mesmo, Bostê? Vai pra várzea atrás de quê?”. Esse Sarambica não tem jeito – falou Bostê. Sabe de que ele morreu? De doença feia. Até hoje ninguém mora nem vai morar na casa dele. Jogaram dois sacos de sal pra matar os micróbios.

– Que é isso?

– Esse Sarambica é demais – reiterou Bostê. – Micróbio é um bichinho que vive no chão e sobe pelos pés da gente. Entra no Cu, na boca. Enquanto tiver buraco vai entrando. Até matar a pessoa.

– Foram esses bichinhos que mataram o finado Nozinho?

– Se foram, não sei. Sei que morreu de micróbios.

Vandir intercedeu:

– No fundo, no fundo vocês não sabem de nada.

– De nada como? – pronunciou-se Coruja-Prenha.

– Bertinho, é você? Pensei que tivesse ido embora. Nunca mais abriu a boca.

– Você esqueceu, sacana, que já briguei hoje? Que perdi minha camisa, rasgada? Que minha irmã Maria falou que sem outra camisa eu não entro em casa?  Não fui buscar a camisa por causa da porra desse jogo. Vou apanhar de chicote de cavalo. O pior não é isso; vou perder o picolé que Bostê vai pagar. A não ser que dê minha parte pra eu chupar amanhã. Pode, Bostê?

– Dinheiro não dou, não. Guardo pra outro dia. Palavra de amigo. Sei que você gosta de chupar…

– Quem gosta de chupar é sua mãe, sacana.

– Mudando de assunto, Vandir, você sabe de que micróbio seu Nozinho morreu?

– De tuberculose, uma doença forte. Morreu tossindo e escarrando sangue. A pessoa fica fraca, vai ficando mais fraca até morrer de fraqueza. Assim foi com seu Nozinho.

– Que foi feito da farinha, do açúcar, arroz e feijão que seu Nozinho vendia?

– Ninguém quis. Despejaram no rio de Cima. Mais de cinqüenta sacos. Ninguém quis olhar, quanto mais comer.

– Por que a alma de seu Nozinho perambula pelo meio da várzea?

– Atrás do que comer. Seu Nozinho morreu foi de fome.

– Não acabou de dizer que morreu de tuberculose?

– A doença botou ele tão fraco, que não podia fazer comida. Como ninguém cozinhava de caridade, morreu de fome mesmo. Tinha farinha, feijão e arroz, mas a fraqueza não deixava ele cozinhar.

Zé Sarambica murmurou “coitado do seu Nozinho”. O sino da igreja badalava a primeira chamada para a novena. Os garotos apressaram o passo: “Já é tarde. Bateu a primeira chamada”.

– Foi a briga. Se pudesse nem tomava banho. Jantava e ia direto pra novena.

– Eu posso ir sem tomar banho. Mãinha foi pra casa da minha avó. Só vem depois da novena.

– Vai mesmo pra igreja sem tomar banho, Sarambica?

– Depende. Se a roupa estiver bem limpinha, não vou, não; vai sujar. Se estiver já um pouco suja, vou lavar só o rosto e as pernas.

– Não acredito que vai pra casa de Deus todo sujo.

– Não vou sujo, não. Vou lavar o rosto e as pernas.

– Você jogou, suou, caiu no chão… Ainda diz que não está sujo?

– Só caí no chão uma vez. Não suei muito porque joguei na defesa. Defesa não corre muito.

A igreja estava bem iluminada, com lâmpadas florescentes. O povo caminhava como desfile. Os moradores da praça, então!, estavam orgulhosos. Cadeiras na porta, respondiam à saudação dos que passavam. O sino grande badalou a segunda chamada. Uma pequena multidão aglomerava-se fora da igreja. Eram os que iam para conversar, ver os belos representantes do sexo oposto. As senhoras idosas levavam as próprias cadeiras para ajoelhar e pedir anos de vida. Famosa ficou a cadeira de Alice Carneiro, em Jacarandá talhado, possante e acolchoada. Pesava muito e a dona encontrou a solução: Acorrentava a cadeira na grade lateral da igreja.

A igreja fora pintada para a festa. Senhoras e mocinhas saíram a pedir  contribuições para as obras. O comércio colaborou, cada um dentro da sua condição. Chocou a todos a contribuição do maior comerciante da cidade. O nome não interessava, dizia um membro da comissão, mas seu Carlito Sobrado tinha a obrigação de uma contribuição maior.

Uma comissão deslocou-se aos municípios vizinhos.  Alguns diziam que não contribuíam para a festa de outra cidade. Não adiantava dizer que a festa era de Nossa Senhora, a mesma em todo o mundo. A pessoa estaria contribuindo com a mãe de Jesus. Os argumentos foram insuficientes até para convencer o deputado Carlos Viana Magalhães Alcântara Simões e Braga – mais nome que representação. Não contribuiu no Livro de Ouro: “Por que, deputado? O senhor não é o representante da cidade?”, perguntaram.

– De certa forma, sim. Represento uma parte do eleitorado. Recebi duzentos votos em Remanso. Atingi o mínimo e ainda me sobraram cem. Ou seja, precisava apenas de cem votos.

– Então assine o Livro de Ouro em pagamento aos cem votos.

– Fica difícil, minha filha. Não fica bem assinar um livro que vai ficar para a posteridade doando apenas alguns cruzeiros.

– Contribua com o que puder. Pelo menos não perderemos a viagem. Representamos os quartanistas do Ginásio Rui Barbosa. Lá estudam mais de trezentos alunos. Quem sabe…

– O fato é que não posso assinar. Não tenho dinheiro.

– O senhor não tem dinheiro?

– Algum, tenho; ou não seria um político.

– Então ofereça um pouco a Nossa Senhora do Rosário. Deputado, pela última vez, vai contribuir com as obras de recuperação da igreja de Remanso?

– Não vou não, minha filha. Não tenho dinheiro. Já ouviram falar de cheque especial?

– Se é especial, deve ser muito bom.

– Tudo que recebo cai naquele saco sem fundo. Gostaria até de contribuir. Recebo menos de dez mil por mês e devo no cheque mais de quarenta! Não tenho nem o que vender pra cobrir. Eu peço, me perdoem. Não colaboro porque não posso. Espero que vocês garantam pelo menos os duzentos votos que lá recebi. Prometo uma coisa: no dia da festa lá estarei abrilhantando. Mais um favor: passem ali na sala do meu assessor pra anotar o nome e endereço de vocês. Servirá para mandar um cartão de Natal.

A comissão voltou com as burras, aliás, com os bolsos vazios. Nivalda Regis reiterou na reunião de avaliação:

– Disse que não compensava sair para outros municípios. Nosso comércio não é forte, mas o espírito varonil dos comerciantes garante renda para uma festa bonita.  Pintamos a igreja, recuperamos os confessionários, envernizamos os bancos. Trocamos todas as vestimentas das santas imagens. Fizemos um andor novo para a padroeira. Será a melhor festa de todos os tempos, principalmente por ser a última. A próxima já será na nova cidade.

Doutor Délio, da Comissão do Vale, pediu a palavra:

– Amigos, não nasci aqui nem aqui me criei. Vim de longe, do Rio de Janeiro. Desde menino convivo com um dos maiores volumes de água do mundo: o Oceano Atlântico. Estou aqui no desempenho da função de Médico-Veterinário na Comissão do Vale. Que tem o deputado Manuel Novais como representante maior no Congresso Nacional. Nossa instituição, e eu particularmente, contribuiu para o brilhantismo da festa. Conseguimos, com a Empresa da Barragem, a restauração da imagem de Nossa Senhora do Rosário. Levamos a um grande restaurador do Pelourinho, em Salvador. Cobrou uma fortuna para recuperar a doce imagem de quase cem anos. Quero convidar a comissão organizadora, e toda a comunidade, para receber a imagem santa e bela que chegará amanhã, segundo dia de novena. Chegará de avião, porque é no céu que a santa milagrosa vive. Muito obrigado!

– Doutora Maria José, do SESP, Serviço Especial de Saúde Pública, pede a palavra que eu concedo – participa Doutor Libório, coordenador da reunião.

– Amigos remansenses; presidente da comissão da festa; vereador Tonico Mocher, representante do prefeito; secretário municipal da educação, professor Joel Andrade; é com orgulho que profiro essas palavras. Como doutor Alberto da Comissão do Vale, não nasci em Remanso. Mas casei com Remanso, na pessoa do meu esposo Júlio Castelo. O SESP contribuiu e muito, preparando a comunidade para a festa.  Os senhores sabem quantos remansenses salvamos da tuberculose, hanseníase e de outras doenças, durante os meses que antecedem a festa? Foram muitos! Pedi a palavra para lembrar que continuaremos presentes na vida do remansense. Ao contrário de algumas pessoas que só vêm quando querem aparecer.   Peço às autoridades que reivindiquem em Salvador e Brasília mais verbas; para que possamos prestar um serviço digno e a altura do povo. Muito obrigada.

Mal a representante do SESP fechou a boca, Tonico Mocher manifesta-se: – Você é comunista mesmo! Veio fazer campanha pra deputada. Quer ser deputada. Mas a Bahia, muito menos Remanso, não vai eleger mulher deputada; pode esquecer. Você não contribuiu com a festa. Só fez falar e falar. Nem uma palha de coqueiro carregou. As roseiras da sua casa não estão enfeitando o altar. Quer saber de uma coisa? Nossa Senhora do Rosário lhe dê juízo. Muito Juízo!

 Capítulo II

 Depois do jogo tomei banho e fui à igreja. Padre João pediu que não chegássemos após a segunda chamada. Na sacristia  encontrei Joaquim, que  me lembrou estar atrasado. Justifiquei-me: Nem tomara café; fora inaugurar a bola do Zezinho. Os do Capão de Cima tomaram a bola e lascaram a dar coroão. A sorte foi Bostê estar lá. Puxou até peixeira pra tomar a bola.

– Se soubesse tinha ido. Pelo menos ia ajudar o Bostê.

– Zezinho cobrou de todos que queriam jogar. Mas deu ao Bostê, pra tomar a bola de volta. Quem gostou foi ele – Bostê. Mas vai gastar de noite, depois da novena. Duas rodadas de picolé pra cada um. O resto vai comprar cachaça pra quem quiser.

– Vou querer.

– O quê? Picolé ou cachaça? Você não estava no jogo.

– Não fui porque estava viajando com o padre.

– Depois dizem que sou filho do padre. Você não sai da casa dele.

– Ia passando, ele me chamou. Ajudei a carregar umas caixas de livros. Depois me deu um guaraná geladinho.

– A mim ele não dá nada, só pito.

– E os sanduíches de pão de sal?

– Pão com carne como até em casa. Guaraná, só quando fico doente. Mesmo assim, quente; lá em casa não tem geladeira.

– Que horas vai ser a farra? Vai pedir ao Bostê pra eu também participar?

– Peço pra picolé. Pra cachaça de jeito nenhum.

A janela mostrou o padre chegando. Magro e alto, aparentava bem menos que os cinqüenta anos. Joaquim disse que ia bater a terceira e última chamada. Não bata não; o padre ainda não está na igreja, sugeri. A terceira chamada significa o padre já pronto.

– São sete e meia em ponto. Aliás, sete e trinta e um.

– O padre ainda vai se arrumar. Deixe ele chegar.

O padre chegou avexado procurando os paramentos. Respondi estarem no mesmo lugar. E o vinho? Esperando o senhor, pra ver se está bom mesmo, respondi. O castiçal, a água, o cálice? No mesmo lugar; estamos aqui só esperando o senhor.

– Atrasei hoje. Fui levar comunhão a um doente e o pneu furou.

– É difícil trocar pneu, padre?

– É até fácil. Difícil é a coluna agüentar. Já não sou criança.

O padre conferiu os paramentos. Foi à janela. Fechou o armário. Demonstrou impaciência: “Pensei que estivesse mais atrasado”. Apareceu Carlotinha, encarregada pelas chaves da igreja e arrumação da casa paroquial:

– Não vai ter terceira chamada? Muita gente está indo embora.

Acordamos: eu, Joaquim e o Padre. Este se virou a mim:

– Não bateram a terceira chamada?

– Bateu não, padre. Pedi ao Joaquim pra só bater quando o senhor chegasse.

– Cheguei há mais de quinze minutos! Estou impaciente esperando essa terceira chamada e me diz isso?

– Desculpe, padre; não fui só eu. O Joaquim esqueceu e o senhor também.

– Não quero saber quem foi culpado. Corra já pra bater a terceira chamada.

Saí correndo. O que foi? O que foi? Respondendo a todas as perguntas invisíveis, falei: Esquecemos de bater a terceira chamada! Subi as escadas rumo ao sótão, onde ficavam os sinos. O local era habitado por morcegos, corujas e baratas. A quem atender: Ao padre ou ao medo que me recomendava retornar e dizer que não iria badalar o sino? O raciocínio foi rápido. Agarrei Elzir pelo braço: Venha ajudar a bater o sino. Pedi que puxasse a corda para lá e para cá. Ouvi o som mavioso do grande sino. Gritei, depois, que parasse. Foi inútil; Elzir continuou badalando por mais longos sessenta segundos, uma eternidade para uma missa que já estava atrasada. Criei coragem, subi ao sótão: Pára com o sino! Quer badalar a vida toda? Nunca mais chamo você pra bater sino.

– Você não me disse quantas batidas era pra dar. Depois, bater sino é bom.

– Bom pra você. Quem vai tomar bronca do padre sou eu.

O padre chegou ao altar-mor. Postei-me, ofegante, no lugar do coroinha que batia a campainha e, melhor parte, colocava a patena no queixo de quem ia comungar. Inclusive das mocinhas da minha idade. Eu era um coroinha feliz.

[…]

 III

Meu pai chegou para o café da manhã. Avó Nelcina fazia beiju e fritava um curimbatá. Ele era boa boca; lembrava não ter hora para chegar, importante alimentar-se bem logo cedo. Avó Nelcina compreendia: “Pode comer tudo. Faço mais para os meninos”. Assim procedia. Limpava os pratos e ainda saia com vontade de comer mais um beijuzinho da hora com dois ovos de galinha de quintal fritos no toucinho de porco. Uma delícia assassina!

Com meu copo de alumínio fui ao pote pegar água. Depois, ao quintal, escovar os dente. Pia ainda não chegara lá em casa. Os adultos lavavam o rosto em água posta em bacia esmaltada. Os meninos, com o restinho de água que sobrava da escovação. Em quinze minutos eu estaria a caminho da escola. Na sacola: Livro de leitura, caderno fino, borracha e lápis; não possuía caneta. Na escola perfilávamos em posição de sentido. Rezávamos Pai Nosso e Ave Maria, depois cantávamos o hino nacional. Estudei com dona Corina Castelo durante três anos. Eu não era flor que se cheirasse:

– Agildo.

– Presente.

– Não estou fazendo chamada. Quero que preste atenção à aula. Então me diga: Eu falava de quê?

– A senhora falava de um homem que desbravou o Brasil de norte a sul, entrando por Minas Gerais até a foz do Urinol.

– Você misturou tudo! Pegou um mosaico aqui, outro acolá e juntou para fazer uma figura estranha. Para completar, trocou Orenoco, que é um rio, por urinol – que você sabe o que é. Vou dizer a seu pai. Você pode ser bom aluno, como de fato é, mas não prestava atenção. Eu falava sobre os bandeirantes e você misturou tudo.

– Professora, me desculpe; estou muito preocupado. A senhora foi à missa ontem?

– Ontem não teve missa, não poderia ter ido.

– Desculpe. A senhora foi à novena ontem?

– Não pude. Meu filho Decinho teve uma dor de ouvido, não saí de casa.

– Estou preocupado, professora, com a imagem de Nossa Senhora. Levaram pra Salvador, pra restaurar, e até agora não voltou. Se perdeu, foi parar no Mato Grosso!

A classe toda sorriu alto. No Mato Grosso? – questionou Carlos Guariroba. No Mato Grosso mesmo! Nesse lugar que o bandeirante desbravou. Deve ser tão longe que não vai voltar mais, insistiu o colega. Vai voltar sim, Carlos – ponderou dona Corina. A imagem da Virgem é um patrimônio do povo de Remanso. O lugar dela é aqui.

– Professora, como essa santa vem de tão longe? Ninguém sabe nem onde é Remanso. – Está no mapa, respondi. – Nunca vi. Já procurei a morrer e nunca encontrei no mapa.

– Remanso existe, é um município legal na Bahia e no Brasil. Mas o mapa só registra municípios maiores. Remanso é pequeno.

– Pode ser, mas nunca encontrei.

– Voltando ao assunto, professora, a Santa não chegou. Ontem foi o primeiro dia de novena. A senhora sabe, eu sou coroinha…

– Pelo jeito vai ser é padre – gritou Moacir lá do fundo.

– Se Deus quiser – apoiou a professora.

– Vou ser padre quando padre casar. Porque quero é casar.

– Você é tarado! – completou Jorge Luís do Ismael.

A classe silenciou. Ele próprio sentiu que fora longe demais. Tentou corrigir: “Professora, eu quis dizer… A senhora me desculpe…”

– Indesculpável, Jorge Luís! Você usou termos inadequados para sala de aula. Não posso desculpar. Vou suspender você por três dias. Pegue suas coisas e vá para casa. Amanhã mando o aviso.

– Mas professora… – Nem mais nem menos. Faça o que estou mandando.

Jorge Luís saiu, cabisbaixo. Suspenso por uma palavra. Sabia o significado: Surra e três dias acordando madrugada para ajudar o avô na padaria. O recreio foi anunciado pela campainha, apelidada de sineta. Moacir Libório trouxera pequena bola; cuidamos de preparar o campo para o jogo. O suspenso, Jorge Luís, não foi para casa; escondeu-se, à espreita. Logo descobri a razão: “Você vai me pagar, seu China de uma figa!”. China era meu apelido. Nasci com olhos oblíquos e rosto arredondado. Repetiu: “Vai me pagar, seu China filho de uma égua!” Meu nome não é China e não lhe devo nada, respondi.

– Deve, sim! Por sua causa fui suspenso. Vou passar três dias acordando madrugada para ajudar meu avô na padaria. Pela aula, não; já estou perdido mesmo. Não quero é três dias debaixo do chicote de meu avô. Você foi o culpado. Fui dizer que você era tarado e a professora me suspendeu.

– Você acha que sou tarado?

– Falei brincando.

– Acha certo dizer palavrão na sala de aula? Sala de aula é lugar de brincadeira?

– Você vai apanhar, seu China xibungo!

– Xibungo é você! E apanhar não vou, não.

Jorge avançou. Rolamos pelo chão. Guariroba, o mais velho, atiçava: “Vamos, Jorge! O Agildo está vencendo!”. A turma aglomerou-se em volta. Jorge Luís apertava minhas goelas. Continuava apertando, já incomodava. A turma gritando, vai, vai, vai! Não vi outra saída: Para não ser esganado levei a mão aos órgãos sexuais do inimigo e apertei. Foi o suficiente. Jorge afrouxou a mão, afastou-se gritando: – O covarde me capou! Me acudam. Estou capado!

Levantei-me, sacudi a poeira. Toma, Filho da puta! Quer brigar com homem, dá nisso. Vi a professora Corina retornando do recreio. Marília, a sobrinha, disse-lhe algo. A mestra fez sinal com a mão pedindo que esperasse. Já na sala, dirigiu-se à turma:

– O delegado acabou de ir lá em casa. – Silêncio. A professora continuou: – Não querem saber por quê? – Continuamos em silêncio. Ela resolveu ir direto ao assunto: – Hem, Agildo? Não quer saber por que a delegado foi em casa falar comigo?

Não sei porque não, dona Corina, respondi-lhe. Lógico, a professora utilizava recursos para obter confissão do brigão. Tentei desviar o rumo da conversa: A não ser, professora, que tenha ido dar notícia da imagem de Nossa Senhora, disse.

– Você acha que ele iria a minha casa dar notícia da imagem desaparecida?

Carlos Guariroba interferiu, cheio de si: “A imagem não é Desaparecida não, professora: é de Nossa Senhora do Rosário!”.

A professora respondeu ríspida:

– Não estou pedindo sua opinião. Além do mais, o nome da padroeira do Brasil não é Nossa Senhora Desaparecida. É o contrário: Nossa Senhora Aparecida!

A classe caiu em risada. A professora permaneceu séria, zangada mesmo. Bateu a régua pedindo silêncio: “Aqui não é lugar de brincadeira! Não admito brincadeira em minha sala de aula. Eu sou a dona da escola. Aqui não é do governo”. O silêncio imperou. A professora, zangada, referiu-se a mim:

– Seu Agildo Regis me responda. Por que o delegado iria a minha casa dar notícias da imagem de Nossa Senhora?

– Professora, todo mundo sabe que a senhora é autoridade em Remanso. É uma das melhores professoras da cidade.

– O que tem o ensino com o desaparecimento da imagem?

– Além de professora, é cunhada do prefeito. O delegado pode não ter encontrado o prefeito, veio dar notícias à senhora.

– Você é muito vivo. Por isso sabe onde quero chegar. Quer que eu vá direto ao assunto?

– Pode perguntar que eu respondo. História, Geografia, Matemática, qualquer assunto. Pergunte que respondo.

– Minha pergunta é outra. O que você fez ao Jorge Luís, seu colega?

– Eu, professora? Não fiz nada. A senhora é que suspendeu ele três dias.

– Deixe de ser cínico! Você brigou com ele. Todo mundo viu.

– Não briguei, não. Ele é que avançou, me agarrou e jogou no chão. Me sujei todo.

– E não brigou? Isso não é briga?

– Pra ele. Só fiz me defender.

– Se defendeu como?

– No aperto, com falta de ar, garganta apertada, querendo desmaiar, não tive recurso. Peguei naquilo dele – não digo o nome porque a senhora me suspende também – e apertei. Só fiz isso. Todo mundo está de prova. Não foi, Guariroba? Carlos Guariroba nem olhou. Dona Corina decidiu:

– Você vai receber um castigo. Sala de aula não é lugar de briga!

– A briga foi lá fora, professora.

– Não pedi sua opinião! Sala de aula não é lugar de briga. É lugar de respeito e o recreio é uma extensão da sala. Para que não aconteça mais nenhuma confusão, por menor que seja, durante o recreio, vou lhe dar um castigo. – A professora sentenciou: – Seu castigo será escrever mil vezes a frase “Não devo brigar na escola”.  Vou olhar se a letra é sua mesmo. Se tiver letra diferente o castigo dobra. Entendeu? Entendeu mesmo?

Não respondi. Mil vezes era muito. Demoraria pelo menos uma semana! Logo na festa do Rosário? Perguntei em quanto tempo escreveria:

– Vai começar agora e só pára quando terminar.

– Dona Corina, só vou terminar daqui a uns dez dias.

– Melhor, para aprender. Não vai sair de casa até terminar.

– Dona Corina, pelo amor de Deus…

– Não venha meter Deus na história. Ele não gosta de coisas erradas.

– Professora, estamos na semana da festa. É a última festa do Rosário. Hoje é dia dos funcionários públicos.

– E daí? Você é funcionário público?

– Mas sou devoto de Nossa Senhora.

– Você não tem idade pra ser devoto de Nossa Senhora.

– Sou menino ainda, mas sei rezar. Tudo que peço ela me concede. Se não agradecer vou perder as graças.

– Agradeça de noite, antes de dormir. Eu quero as cópias daqui a três dias e com sua letra.

– Professora, me desculpe, a senhora esqueceu que sou coroinha? Que ajudo o padre a celebrar a novena? Vou pedir pelo amor de Deus: Me arranje outro castigo. Não vou conseguir escrever a frase mil vezes. Estou preocupado com o desaparecimento da imagem de Nossa Senhora do Rosário. A senhora não está preocupada?

Senti que ia vencer. A classe continuou silenciosa. A professora, quieta. Repeti a pergunta. A boa professora bateu a régua na mesa, gritou por silêncio quando ninguém dava um pio: “Silêncio! A aula está suspensa. Todo mundo pra casa. E você, seu Agildo, amanhã a gente termina a conversa”. Saímos sem agradecer o dia, como sempre fazíamos. No caminho Joaquim comentou: “Tá lascado, Agildo. Nunca vi a professora assim nervosa”. Lascado, por quê?

– Ainda pergunta?

– Pergunto sim: Lascado por quê?

– Você desafiou a professora.

– Não desafiei ninguém. Apenas me defendi.

– Ouviu bem o que ela disse? Que a escola era dela?

– O governo deve pagar a ela.

– Ela precisa de governo? Uma mulher rica, cunhada do prefeito, vai precisar de governo? Só as fazendas que tem… Se prepare.

– Pior é ela falar com meu pai. Vou tomar uma surra.

– Pior vai ser o castigo.

– Mais do que escrever aquela frase grande mil vezes?

– Eu acho. – respondeu Dilton. Você acha o que, Joaquim?

– Vai expulsar da escola.

– Nossa Senhora me proteja. Se sair não tenho outra escola pra ir. Vou fazer uma promessa.

– Que promessa?

– Não é da conta. Promessa fica entre a pessoa e o santo.

[…]

………………

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O Purgatório de Eduardo é um passeio pelas calçadas das cidades interioranas brasileiras, onde, em noites enluaradas e calorentas, os vizinhos reúnem-se para contar e ouvir as mais emocionantes, estranhas e bonitas histórias de vida e de morte.
Mais uma vez, o escritor leva-nos à cidade do fundo de sua alma e dá-nos de presente este lindo romance.

 

Opinião do leitor:

livro‏
De: orlando ribeiro de Souza (orlando13galo@gmail.com)
Enviada: segunda-feira, 21 de janeiro de 2008 13:52:43
Para: astrogildomiag@hotmail.com

Caro escritor,
Como disse no e-mail anterior acabo de ler seu livro achei excelente, ha tempos que não ria tanto, Apesar de ser mineiro, adoro os surubins de Remanso, adoro a Bahia e especialmente Salvador onde tenho passado algumas férias. Gostei demais de sua maneira de relatar o dia-a-dia de nossos manos. Apenas não entendi uma parte do livro, que se passa em 1998 e já foi relatado o caso de dólares na cueca. No mais, nota 9,9. Parabéns.
Orlando Ribeiro de Souza
Brasília 21 de janeiro de 2008

***

A razão deste livro

Eduardo dos Santos nasceu em Remanso, Bahia, e convivemos juntos na infância. A paralisia infantil o marcou, nem ele se lembrava quando. O aleijão numa perna não lhe impedia uma vida normal. Jogava, brigava e nadava como qualquer menino das barrancas do São Francisco. Até hoje carrego uma cicatriz na barriga, resultado de uma briga com Eduardo. Fisicamente debilitado e perdendo a peleja, de posse de um pedaço de madeira, investiu contra mim. Por sorte a ponta era rombuda e não penetrou profundamente. A cicatriz está aqui de prova.
Após a infância — quando todos são iguais — a realidade mostra as sequelas da sociedade capitalista, onde o ter suplanta o ser. Eduardo era de boa índole e trabalhador. De família pobre, não evoluiu nos estudos — ao contrário de muitos amigos da idade que, a troco de sacrifícios vida afora, viraram professores, engenheiros, médicos, advogados ou grandes comerciantes. Destituído dos meios de sobrevivência, dedicava-se a biscates, agregado a uma ou a outra família. Mesmo deficiente físico, não perdia um sepultamento. Vestindo a melhor roupa, fazia questão de carregar o caixão. Dizia que, assim, ajudando o defunto na última viagem, garantia uma cadeira no céu. A última vez que o vi foi em sonho. Ao chegar à terra natal, de férias, perguntei por Eduardo. Informaram-me que morrera. Entristeci-me, principalmente pela forma como lhe impuseram o caminho da outra vida. À noite, Eduardo visitou-me em sonho. Num purgatório, lutava desesperadamente para purificar a alma e ganhar o descanso eterno. Garantiu-me que o conseguiria. Mas um fato marcante redirecionou seu destino. Desistiu de tudo, até do descanso eterno. Que teria acontecido de tão importante?
Solicito a atenção do leitor a este relato, que me veio através de sonho numa noite do final do século XX. Acordei completamente atônito, algo me impeliu a escrever estas páginas. A cada noite vindoura, ele, Eduardo, sem que me sentisse invadido na privacidade noturna, cuidava de mostrar-me sua peleja no mundo pós-morte. Mas, acreditem, este não é um livro de terror, não amedronta. A beleza persevera até depois da vida terrena, através da simplicidade, do bom caráter e da amizade. Pena não poder comprovar a veracidade do relato. A nós, mortais, ainda não foi dada a capacidade de penetrar na escuridão de outras vidas. Mas acreditem, o relato é vero.

Capítulo I

Correu o boato que tinham matado João Branquinho, no Piseiro, ponta de rua da cidade. A faca quebrara dentro, tão violento o golpe. O assassino fora o Expedito, negro forte carapinhado. A cidade foi ver o morto, o sangue escorrendo do peito. Atingiu o coração, disse o soldado Zé Cordeiro antes de sair à procura do delegado. Ninguém dava notícias da autoridade. A mulher informou que ele não dormira em casa. Teria ido atrás de um ladrão de gado.
O defunto continuava estirado; o sol já alto e quente. O assassino? Embrenhou-se no mato, rumo de Pilão Arcado, onde tem parente — diziam. Alguém colocou uma moeda na boca do defunto, o criminoso não iria longe. Muniz, o rezador, prometeu fazer Expedito andar em círculo, feito pião, até a polícia o prender.
O padre está chegando! Deram passagem ao Vigário. Lançou água benta, rezou em latim, como foi o crime? Ninguém respondeu porque ninguém sabia. Retornou o soldado Cordeiro. Dá licença, dá licença…. Aproxima-se do cadáver. O delegado não apareceu ainda? Onde esse homem se meteu? Chico Alfaiate, muito amigo do delegado, informou: “Foi a uma festa de São Gonçalo na Veneza. Só volta amanhã. A não ser que alguém vá atrás dele”. Quem iria? A delegacia não tinha carro. “Quando esse delegado aparecer o criminoso já foi pra São Paulo. Que chateação…”
A população sugeriu fretar a Rural de Zé Valter Rubem. Quem vai pagar? — perguntou o soldado — A família não tem onde cair morta. Zé Valter não vai de graça.
Apareceu Zezinho do couro, comprador de peles de bodes. Chegou sem nada, hoje é homem rico. As más línguas diziam que a riqueza viera do plantio de maconha. Zezinho ia procurar o delegado fazendo um ato de caridade. Mal conhecia o morto, mas foi o único que se prontificou. Onde estavam os ricos da cidade? Os Braga, os Castelo, os Ferreira, os Coelhos, os Rosal, os Macedo, os Gonçalves, o presidente da Câmara de Vereadores?
Pequeno problema: se Cordeiro saísse à procura do delegado, quem guardaria o morto? Perguntaram pelo outro soldado, de nome Esaú. “Deve estar bêbado em alguma casa de rapariga”, respondeu Cordeiro. A vida de Esaú era beber e raparigar. No fim de semana, jogava bola: era goleiro do Sete de Setembro, cujo uniforme era verde e amarelo. Alguém gritou “o delegado está chegando!” Graças a Deus! O delegado empurrou o povo: “Afasta, afasta!” Tocou o cadáver com pé, apertou a barriga, saiu sangue… Que hora foi? Ninguém sabia. Como foi? Ninguém viu. Quem foi? — O Expedito, com certeza. Passou correndo com a faca ainda suja de sangue. “Ele foi pra onde”, perguntou o delegado.
— Tomou o rumo do Pilão Arcado.
— E eu venho de lá… Se alguém tivesse me avisado era capaz de já ter pego.
Mandou levar o morto. Já estava morto mesmo! Só restava pegar o criminoso e botar atrás das grades. Alguém informou ter colocado uma moeda na boca do defunto para fechar os caminhos do criminoso. Mandou chamar Muniz rezador. Responderam que o mesmo já tinha rezado: o criminoso ia andar em roda feito pião. E Pedro Perdigueiro, pra descobrir para que lado — norte ou sul — o criminoso teria ido, alguém chamou? Pior é o carro. Nunca vi delegacia sem carro. O prefeito tem de alugar a rural do Zé Valter. Aonde vamos encontrar o prefeito, perguntou o soldado. O único lugar onde não está é na casa dele, completou. Capaz de estar no bar de Manuel jogando dominó.
O prefeito não estava no bar. Manuel não sabia o paradeiro. “Tem dois dias que não aparece”, informou com visível aborrecimento. O ponto dele não é aqui? — insistiu o delegado. Aqui não senhor! — defendeu-se Manuel. O ponto dele agora é na casa da Zildinha, xodó com uma rapariga que chegou do Piauí. Não diga que informei. Não quero complicação pra meu lado.
Já na casa de Zildinha perguntaram pelo prefeito. “O prefeito aqui? Estão procurando no lugar errado. Deve estar na prefeitura”, protegeu-se a mundana. Zildinha, segredo é segredo — cochichou o delegado — Não sabia que mataram o João Branquinho? Queremos que o prefeito autorize a Rural do Zé Valter ir com a força policial procurar o criminoso. Dizem que foi o Expedito, aquele!, que tem rixa com você. Zildinha ficou pasma. “Mataram Branquinho? Como foi?”. Só depois que pegar o criminoso; quanto mais demora mais difícil fica — vaticinou o delegado.
Zildinha pediu que a esperassem dois minutos. Retornou. “O prefeito já vem”. Alguém tossiu. O prefeito apareceu. “O que querem? A gente não pode nem acertar um particular?”. Seu prefeito, estamos em diligência, diz o delegado. Vieram me prender? — provocou o prefeito.
— Não, senhor, Deus me livre! Mataram João Branquinho. Não temos como ir atrás do criminoso que, dizem, foi o Expedito.
— Essa delegacia não tem nada. Comida dos soldados eu quem dou. Se é dos presos, eu quem pago a conta todo mês. Querem que eu vá atrás de criminoso?
— Pelo amor de Deus, prefeito, desculpe interromper, mas não temos transporte. O Fusca da delegacia não anda nem na cidade!
— Depois não querem fazer o que mando.
— Mas, prefeito, nunca lhe neguei nada. Quantos presos já soltei a seu pedido? Perdi a conta…
— O Benedito você não soltou.
— Não podia. O homem era fichado até na capital. Foi preso em flagrante e ainda tinha um processo contra ele. Se soltasse, o juiz me prendia.
— Aqui quem manda sou eu! Quero ver juiz ir contra ordem minha. Transfiro na hora! O governador atende a quem tem voto. É ele quem nomeia juiz.
— Sei, seu prefeito; mas se a gente não for atrás do criminoso por falta de carro, o povo vai dizer o quê?
— Vou autorizar a Rural do Zé Valter.
Pediu um papel. Após rabiscar, estendeu a ordem…
— Delegado, está dormindo? Ou prestando atenção ao que não é da conta? Se alguém souber que estive aqui, já sei quem foi.
Delegado Caldeira desculpou-se. O prefeito nem se preocupasse; da sua boca não sairia nada. Tomaram rumo da principal praça da cidade. Olhou o relógio. “Vamos, Cordeiro, já é tarde. Vamos procurar Zé Valter. Tomara que não esteja viajando ou pescando por aí”. Nem bebendo — lembrou o soldado. Se estiver bêbado, vai viajar assim mesmo! — definiu o delegado.
Passaram na padaria do Zezito Amorim, no armazém do Manuel Braga, na tenda do Evilásio Viana e foram encontrar Zé Valter na marcenaria de Everaldo Muniz. O delegado o chamou como ordem. Entregou-lhe o bilhete. Uma hora dessas? — queixou-se Zé Valter. Pra ir atrás de criminoso não tem hora — respondeu o delegado.
— Não posso ir atrás de criminoso desarmado. De repente, ele reage… A minha arma emprestei na semana passada. A pessoa viajou.
Everaldo interferiu: emprestava o trinta e oito dele; estava ali mesmo, na oficina. Saíram os três, armados, à procura do criminoso. Zé Valter lembrou do soldado Esaú. Por que ele também não iria? A lástima é tão ruim que ninguém sente falta — disparou o delegado. Vamos procurar ele, pediu o motorista.
— Aonde? Só se correr todas as casas de rapariga da cidade. Fora as incubadas que só ele conhece.
Zé Valter lembrou ter visto Esaú no sinuca de Lourinho Castelo; não custava tentar, poderia ainda estar por lá. Estacionaram o veículo. O delegado caminhou resoluto. Os tacos pararam. Lourinho franziu a testa ao responder.
— Esse soldado é demais. Desafiou todo mundo. Perdeu e não quis pagar. Não agüentou nem ir pra casa. Mandei botar lá no fundo, carregado. Vomitou o chão todo. Ainda nem se levantou.
Encontraram Esaú em petição de miséria. O delegado o empurrou com o pé. “Esaú, Esaú! Era só o que faltava! Desmoralizado desse jeito num destacamento que só tem dois praças”. Pediu uma lata d’água; Lourinho foi procurar vasilha mais limpa. A autoridade reprovou: “Traga essa mesma! Vagabundo não merece coisa melhor”. Despejou a água na cabeça do soldado. “Safado!” O soldado abriu os olhos. Levantou-se num salto! Correu gritando: Cadê meu revólver, cadê meu revólver?
— Esaú, sou eu, o delegado!
Zé Valter foi ao carro apanhar o trinta e oito. Passados os instantes iniciais, Esaú olhou para si, o delegado, o local, suas roupas. Meu revólver… Eu sei lá de seu revólver? — respondeu o delegado. — Um soldado desses pra dar segurança ao povo. Falta de vergonha. Caído bêbado nos bares.
Esaú baixou a cabeça. Todos tinham razão. Esperava a qualquer momento perder a farda. Bastava uma denúncia. Delegado Caldeira aplicou uma lição de moral no soldado. A vontade era devolvê-lo ao Comando, em Juazeiro, pra comer cadeia! Já refeito, ordenou: “Vá botar a farda que vamos atrás de um criminoso”.
— Aonde, delegado?
— Vive no mundo da lua? Não sabe que mataram João Branquinho e o suspeito é o Expedito, que tá corrido? Cadê a arma? Passamos aqui só pra pegar você.
— Tenho que ir mesmo, delegado? Estou sem condições.
— Você está é bêbado, safado! Cadê, rapaz? Não ouviu eu perguntar? Cadê a arma?
— O senhor sabe, minha mãe andou doente, internada na Casa de Saúde. Lá é tudo pago, não tinha dinheiro, não ia deixar a velha morrer à míngua.
— Vendeu a arma pra custear o tratamento da sua mãe na clínica de doutor Carlos, não foi? — O soldado respondeu afirmativamente. O delegado continuou — Ainda levanta falso ao doutor. Todo mundo sabe que cuidou de sua mãe e não cobrou um tostão, como faz com muita gente! Diga que vendeu pra beber de cachaça! Vou entregar você ao Comando.
Zé Valter olhou o relógio. Era tarde. Os faróis estavam ruins para viajar à noite. O delegado decidiu: Esaú iria, mesmo sem a arma. Depois apuraria o caso.
— Delegado, tem outro problema… Hoje é sábado, e amanhã é domingo. O senhor sabe, estamos na final do campeonato. Amanhã o Sete joga, eu sou o goleiro e não tem reserva. Se o senhor quiser eu vou, mas, e aí? O presidente do clube é Raulito, o pai dele é o vereador Elias. O senhor não se dá bem com seu Elias? Tem alguma coisa contra ele?
O delegado parou. Esaú não podia falar assim na frente de Zé Valter. Que desmoralização! Pelo menos chamasse em particular. O que fazer? Esaú insistiu no golpe fatal: “E aí, delegado, vou ou não vou?”. O delegado deu um soco no ar!
— Não tem jeito! Não posso levar um soldado desarmado numa diligência. Se acontecer um tiroteio, a responsabilidade é minha. Está liberado pra procurar a arma. Quando chegar, me dê conta dela, ouviu bem? Me dê conta dela!
Chamou os dois, entraram no carro. Esaú voltou ao bar para a vida de sempre. Pediu uma dose de cachaça para esquentar os nervos. A Rural tomou rumo do beco de Arame, saída da cidade. Dali passaria na Fazenda Velha, antiga propriedade de Rolim Sobrado. Estrada horrível, capaz de atolar até trator. O criminoso Expedito, a pé, andaria mais rápido que a força policial de carro. A estrada estreita, quase um caminho, não permitia ultrapassagens. Doente morria sem socorro, o carro atolado na areia. Quando chovia, os riachos cortavam a estrada. Dias e dias esperando a água baixar. Pedindo a Deus que parasse de chover, paradoxalmente a maior dádiva para o sertão. A vegetação era caatinga pura. A palmeira carnaúba dominava a paisagem. Os casebres cobertos com a palha da palmeira. Da madeira saíam linhas para toda obra: casa, curral, cancela, banco pra sentar. Os frutos todos comiam, bicho e gente. Sem falar na cera, muito valiosa no mercado mundial; até a segunda guerra mundial enriquecia os coronéis donos de carnaubais. Na ressequida paisagem nordestina, a carnaúba continuava sendo a salvação.

A rural prosseguia, gemendo. Sorte o motorista conhecer a estrada. Já escurecendo, chegaram à Fazenda Velha. O delegado saltou, cartucheira e revólver à mostra. Procurou Honorato, vaqueiro de confiança do proprietário: “Estou em diligência, Norato, atrás do Expedito preto, aquele amigado com a rapariga morena”. O vaqueiro perguntou o que acontecera de tão grave.
— Crime de morte. Matou o finado João Branquinho. Foi visto de madrugada com a faca ainda suja de sangue.
— Eu pensava que o senhor estava indo pra festa no Riacho dos Moura. Começou tem dois dias e só vai acabar domingo de noite. Sanfoneiro, tem três. O melhor é o Luís Cego que toca na Emissora Rural de Petrolina. Manuel Moura mandou matar três bois!
— Por que essa festança?
— Mistura de São Gonçalo com casamento. Quem puxa a roda de São Gonçalo é o Pombo da Veneza. É casamento de Silvinho, filho mais velho de seu Manuel. Pode ser que Expedito encoste por lá. Mas quem está corrido anda é pelo mato.
O delegado agradeceu a informação, continuou a viagem. A Rural gemia enfrentando o areão. Zé Valter temia quebrar naquele fim de mundo. O farol enfraqueceu; o gerador não gerava direito. A noite sem lua não deixava ver nada à frente. “E agora, delegado? A bateria vai arriar. Ainda faltam mais de duas léguas”. Desliga o farol pra economizar bateria — ordenou — Você anda aqui todo dia e conhece a estrada.
Passou a dirigir no tato, debruçado sobre o volante. Uma raposa atravessou a pista. Freou pensando ser um bode. Lá vai a Rural gemendo e perdendo forças. O delegado dizendo que o culpado era Esaú, que atrasou a viagem. Gritaram: Olha o boi! Olha o boi na frente!
O motorista pisou violentamente no freio! O carro rabeou, saiu da estrada comendo a vegetação rasteira. Por sorte, não virou. Retornaram à pista. Logo chegavam ao Riacho dos Moura. De longe se avistava o clarão, a batida da zabumba e a sanfona chorando: “Chora bananeira, bananeira chora, chora bananeira que meu amor já vai embora”. Era a toada do sertanejo quando ia para São Paulo.

Estacionaram a Rural. Sacudiram a poeira. O dono da casa veio recebê-los. “O que foi Caldeira? Anda atrás de quê, armado desse jeito? Veio trazer segurança?” — Que nada, Manuel, estou em diligência, atrás de criminoso — informou o delegado. Mataram João Branquinho ontem de madrugada. Ninguém viu o crime, mas o suspeito é Expedito. Aquele, amigado com a rapariga morena que veio de São Raimundo.
Manuel perguntou como fora o crime. Ninguém sabia, ninguém vira. O morto amanhecera estirado, lá no Piseiro. Como sabem que foi o Expedito, perguntou o dono da festa. Passou na porta do Antônio Joaquim, de madrugada, com a faca ainda suja de sangue. Só pode ter sido ele — simplificou o delegado. De qualquer forma, ele não passou por aqui; vamos lavar o rosto e comer um pedaço de carne assada — convidou o fazendeiro.
Os três estiraram as pernas em boa hora. A tensão na estrada os deixou cansados. Tomavam cerveja esperando a carne assar.
— Por que não dormem aqui? Aliás, dormir não porque hoje ninguém vai dormir. Amanhã vão embora.

A animação na casa de Manuel Moura era grande. Fazendeiro abastado, gostava de fartura. Convidou os policiais para ficar. Não responderam se ficariam ou não. (Uma pena perder essa festança, mas a obrigação em primeiro lugar, pensa o delegado). Sentaram-se à mesa, toalha de linho branquíssima. A autoridade mais elevada era ele, o delegado; depois o Juiz de Paz, que viera, inclusive, celebrar o casamento. Tanta fartura! Difícil era dizer a Cordeiro e a Zé Valter, que ele, Caldeira, queria pernoitar no Riacho. Não ficava bem o delegado, responsável pela diligência, convidar para festa arredando das obrigações. O Juiz de Paz, Antero Santana, era homem polido e esforçado. Não tivera o privilégio de grande instrução, apenas se alfabetizara. Lúcido, seu discurso gerava risadas e aplausos pelo inusitado das comparações. Certamente faria bonita oração após a cerimônia de casamento. O juiz aproxima-se, saúda em tom rocambolesco característico.
— Delegado Caldeira, prazer imenso encontrá-lo neste ermo do município. Fez boa opção oferecendo segurança a Manuel Moura, que muito merece.
O delegado gaguejou, quis dizer não, a língua embolou. Estava em diligência!
— Justa diligência – bradou o juiz. — Neste momento somos as maiores autoridades presentes. Observe a diferença do atendimento. Aqui Manuel abriu um litro de uísque!
— Seu Antero, estamos à procura de um criminoso; o Expedito, que matou João Branquinho. Nem sabia que tinha festa aqui. Parei pra pedir informação.
— O Remanso todo sabe desse casamento! Vem gente de Pilão Arcado, Campo Alegre, Juazeiro, de São Paulo e até de Brasília! A festa vai durar três dias. Já imaginou a quantidade de gente bebendo sem dormir? A confusão que poderá ocorrer se a força policial não estiver presente?
Elogiaram a inteligência do juiz. Agradeceram até. Era o argumento necessário.
— O que o senhor fala é verdade, seu Antero. Mas, procuramos um criminoso que matou um cidadão, e…
— Ora, Caldeira, vai atrás de um que já matou deixando que aconteçam não-sei-quantos crimes? Esse povo vai ficar doido com tanta bebida! — franziu a testa —- Você é quem sabe, o delegado é você. Eu avisei.
— A não ser que me peça pra ficar. Como Juiz de Paz, o senhor pode. Não quero é que o povo fale que o delegado saiu pra pegar criminoso e ficou numa festa pelo caminho.
— Quer que assuma suas funções? Quer me fazer de besta? A responsabilidade é sua! Você não é meu filho. E se fosse, eu não pedia, mandava!
— Então mande que eu fico.
O Juiz de Paz não entendeu a intenção do delegado, que queria mesmo ficar na festa. Levantou-se para brigar. Tenha calma, seu Antero — pediu Zé Valter. Manuel Moura, também pedindo calma, trouxe uma cerveja bem gelada. Os curiosos aproximaram-se para testemunhar a briga entre o juiz e o delegado, que também se levantou ajeitando o cabo do revólver sob a camisa. Suficiente para fustigar o juiz: “Essa arma é pra mim, Caldeira? Eu mando prender você! Sou mais autoridade”.
— Vai mandar quem me prender, o soldado é comandado por mim. O revólver não é para o senhor, não; é pra quem precisar…
O juiz avermelhou-se. De temperamento impulsivo, jamais ouvira aquilo. “Você me respeite! Vi você menino, de cócoras, cagando na minha porta. Delegado calça curta é o que você é, seu…”
Todos procuraram proteção. A briga com armas de fogo era iminente. O Juiz certamente estava armado. Derrubaram mesas, copos e garrafas. O dono da casa prostrou-se entre os dois.
— Que autoridades são essas, vão acabar com minha festa? Como é que pode! Juiz e delegado brigando! E a minha festa? Ainda têm três dias! E o casamento? E os bois que mandei matar? E o povo todo aqui esperando a festa? Pelo amor de Deus, vocês…
Ouviu-se um pedido de socorro.
— Corram aqui, acudam seu Antero Santana que caiu!
— Será que foi bala? Não ouvi tiro — observou Zé Valter.
Levaram o juiz ao quarto, desmaiado. Não encontraram vestígios de sangue nas roupas.
— Graças a Deus! — suspirou o delegado. — Iam dizer que fui eu.
— Tragam água com açúcar ligeiro.
— Com açúcar não! Ele é diabético.
Trouxeram algodão embebido de álcool para cheirar. Voltou a si perguntando o que acontecera.
— Nada não, seu Antero. O senhor se sentiu mal. Mas já está bom.
O juiz corou. Caiu na realidade. “Meu remédio, tragam meu remédio!”. Onde está seu remédio, seu Antero? — inquiriram.
— No bolso dessa calça — procurou no bolso — aqui não está não… Tenho que tomar meu remédio todo dia e hoje não tomei. Posso ter um derrame a qualquer momento. Alguém tem que ir buscar esse remédio em Remanso. Tem que fazer essa obra de caridade.
— Quem? — perguntou o dono da casa — De cavalo são dois dias. O único carro é a Rural do delegado. Se ele quiser…
O delegado não deixaria uma autoridade morrer à míngua. Virou-se ao povo e discursou.
— O Juiz de Paz é autoridade! Está a serviço, veio celebrar o casamento. Tem direito de requisitar o veículo para buscar seu medicamento. É questão de vida ou morte! Peço a compreensão de todos. Vou interromper a diligência para dar socorro a este homem honesto que todos conhecem: seu Antero Santana!
O discurso foi aplaudido. Acabou-se a confusão. Deus ajudou, não teve tiros. Quem haveria de dizer que o delegado deixou de ir atrás do criminoso para ficar na festa?
Logo se banharam em cerveja, cachaça, uísque, batida, jurubeba, conhaque e tudo o mais que aparecesse. Bêbado não escolhe bebida. Muito menos se for de graça, com sanfoneiro, saxofonista e três bois pra comer. O delegado deslizava no salão com uma morena. Soldado Cordeiro gastava conversa com uma sarará do Capão de Baixo. O juiz Antero já se levantara. Recebia toda a atenção e bebia o primeiro gole de cerveja. Seu Rosa, famoso sanfoneiro de Pilão Arcado, deu boa noite com o fole. Só faltava Zé Valter Rubem. Este fora a Remanso enraivecido, sem farol e no escuro, em busca do remédio para a pressão arterial do juiz, que já bebia o quarto copo de cerveja e se engraçava de Maria Helena, sobrinha do dono da casa. Expedito, o criminoso, aumentava a dianteira sobre a força policial.

***

A cidade respirava mais aliviada. O enterro de Branquinho seguia para a igreja matriz. O sino badalava pancadas de pecador — Dão… Dão… Dão… Dão, dão, dão! Morrer era novidade, mais ainda se de morte matada. Carregavam o caixão: Adelino Luna, Zé Araújo, Chiquinho da Piranha, Pereirinha, Eduardo Perneta, Antônio Castelo, Geraldo Tardionato, Rui Ribeiro, Odécio Ferreira, Josemi Freire, Miguel Viana, Toinho da Narrita, Fefé Barbosa, Evilásio Viana, Edmar Freire, Zebinha cabeleireiro, Doutor Dogival, Eulálio Braga, doutor Severino Ferreira, Ariomar Cabelo-de-bagaço, Carlos do bode assado, Moisés da Pousada Progresso, Prisquinho Rodrigues, Leônidas Palmeiras e outros profissionais de carregar caixões de defunto. As beatas imploravam a salvação da alma. Alguns pensavam diferente, como Chiquinha: “Ele não merecia nada, nem caixão!”. Em defesa, Zilnoura, professora de muitos méritos. — Todos têm o direito de errar, Chiquinha. O perdão é Jesus quem vai dar. Apenas pedimos pela alma.
O converseiro dos trinta e poucos acompanhantes superava a reza incompreensível das beatas; ninguém entendia, só Deus. De repente, um acidente: uma alça do caixão soltou-se. O coitado, na sua última viagem, foi ao chão. Epifânio repreendeu o péssimo serviço do marceneiro: “Serviço malfeito daquele safado. Só porque foi fiado”. Isto nunca aconteceu — lembrou Zé Araújo fazendo o sinal da cruz. É a alma pedindo oração. Este coitado tem que ser encomendado ou não se salva.
— Cavou a própria sepultura. Vivia no errado e ainda foi bater no padre.
— Quem encomendará a alma, o padre apanhado? — Replicou Pereirinha.
O caixão continuou no chão; impossível carregar só com três alças. Ainda mais cheio de pecados, pesando que nem chumbo. “E agora, Epifânio? Só com três alças, não dá”. Epifânio, o bom vizinho, coçou a cabeça… “Chama o Doca, que fez o caixão. A tenda dele é aqui perto”. Sizaltino Sorné foi buscar o marceneiro. As beatas entoaram um cântico desafinado pior que agouro. Mesmo tementes a Deus, todos caíram em risada. Isaura e Januarinha elevaram as vozes e desentoaram mais ainda. Logo todos gargalhavam. E o corpo do pobre no chão, à espera do sem-vergonha do Doca que, querendo ou não, não parafusara direito a alça do caixão.
Sorné não encontrou o marceneiro; a tenda estava fechada. A mulher disse que ele fora a Sento Sé fazer outro caixão de defunto; só voltaria no outro dia. Até a igreja não é tão longe; mas ao cemitério é uma boa caminhada — lembrou Epifânio. Nininha, a viúva, soluça profundamente.
— Meu Deus, tenha misericórdia. Perdoa o que ele fez de errado. Vamos rezar outro terço pra ver se o satanás desencosta. Ele quer levar a alma ao fogo eterno. E nós aqui achando graça dos cânticos sagrados.
— Vamos rezar mais um terço. Para o espírito ruim, o sujo, o coxo, sair do meio de nós. O coisa-ruim se manifesta até na forma de gente. Pode se disfarçar em um desses que puxou risada — lembrou Marieta Queiroz.
— Com certeza foi ele, o cão, que fez alguém quebrar a alça do caixão. Quem quebrou a alça? A alça quebrou na mão de quem? — pergunta Nininha.
— Quebrou na mão do Perneta! — grita Valmir, genro de Jovita. — E o cão também é perneta, é manco!
O cão, o chifrudo, seria manco, perneta. E a alça quebrara na mão de Eduardo, apelidado Perneta, no momento em que o mesmo segurava o caixão. As coincidências eram grandes! Valmir insistia (De católico passou a defensor de uma igreja nova, que arrancava o demônio das pessoas em troca de ajuda financeira, a graça proporcional à colaboração). Gritou:
— Esse safado é o demônio em nosso meio! Merece ser apedrejado para salvar a alma de Branquinho. Vamos pegar ele!
Eduardo apavorou-se. Valmir, furioso como boi brabo, queria fazer exorcismo.
— Vamos arrancar o demônio! Acabar com esse perneta mondrongo. Fazer sangue pra deixar Branquinho livre dos pecados!
Eduardo viu Valmir abaixar-se, pegar uma pedra. Logo todos fariam o mesmo. Pediu clemência.
— Alguém me ajude! Esse homem está doido. Aqui não tem nenhum cão. Alguém me ajude. Segure esse homem! Eu sou um pobre aleijado!
Valmir avançou. Eduardo Perneta procurou as últimas forças.
— Valmir, não tá me conhecendo não? Sou eu, o Perneta. O Pernetinha, filho da Laura, sobrinho da Libória, irmão de Zé Arnaldo. Não tá me conhecendo, não, rapaz? — Valmir avançava, pedras na mão — Alguém me ajude pelo amor de Deus! Esse homem vai me matar. Sou um pobre aleijado, nem correr eu posso. Chamem a polícia!
Valmir retirou a bíblia do bolso.
— Vou te exorcizar, cão imundo! Nem que tenha que matar esse coitado em quem você encostou.
Eduardo Perneta recebeu a primeira pedrada. Ficou tonto, quis cair. Passou a mão, viu o sangue. Era o fim. Cambaleando, correu à casa de Né Filho, a mais próxima. As portas estavam fechadas. Implorou.
— Abram pelo amor de Deus! O homem quer me matar!
Valmir avançando, duas pedras na mão. Eduardo Perneta correu para a casa de Anésio. A mulher de Anésio tomou a frente.
— Aqui não, safado! Bebe suas cachaças para incomodar os outros? Anésio, traga o cacete aí, ligeiro!
Sentiu-se perdido. Portas fechadas, Valmir aproximando-se, mãos cheias de pedras! A cabeça sangrando. O sangue escorrendo, quente. É hoje! — pensa — Hoje eu morro. Não posso morrer. Sou tão novo! Meu Deus, não me deixe morrer. Valmir aproximando-se. O sangue descendo, salgando a boca. Aparece um carro; esperança para Eduardo. Valmir lançou outra pedra. Errou. Que carro é esse? É a Rural do Zé Valter. O delegado deve vir com ele.
— Delegado, esse homem quer me matar! Socorro pelo amor de Deus!
Pancada na cabeça. Rodopiou. A vista escurecendo, escurecendo. Outra pedra. Outra… (— Me ajudem. O homem me matou. Estou morto. Não sinto nada. Deus, perdoa meus pecados. Não nasci coxo porque quis. Não sou o cão, nunca vi o cão. Perdoa meus pecados. Morri. Não sinto nada. Só vejo uma luz, uma grande luz. Parece a lua, não me deixa enxergar. Morri. Deixaram o homem me matar. Não merecia uma morte dessas, à pedradas. Sem defesa. Todos me fechando a porta da salvação. Estou morto, morto, morto…). O povo correu até Eduardo. Didi da Rita foi avisar ao prefeito: “Morreu que nem cachorro doido, à pedradas”. Admirou a fúria de Valmir. Um coitado, casou-se com uma filha da Jovita. Sempre morou na roça. Calado, frequentava a primeira fila dos bancos da igreja. Comungava, não faltava missa aos domingos. Mudou da água para vinho quando conheceu os pastores da igreja nova. O que obtém com biscates comunga com os pastores. Coleta Donativos. “Mas só em dinheiro, para que a igreja possa crescer e multiplicar-se, para salvar mais almas! O maná Deus dará!”. Valmir transformou-se em vassalo. É obreiro vinte e quatro horas por dia. Jovita, a sogra, proibiu a filha de frequentar a dita igreja. Valmir não aceitou: como converter pessoas se a própria mulher o desobedece?”.

Perneta foi levado à Casa de Saúde como morto — e morto estava. O rosto era uma chaga só. O caixão com o finado Branquinho, no chão, abandonado. A mulher de Anésio desmaia ao abrir a porta da casa.
— Meu Deus, se soubesse que esse coitado pedia socorro para não morrer, deixava entrar. Não tive culpa. Deus chamou para que não sofresse mais com o aleijão.
Do meio do povo adiantou-se o rábula Lima Silva:
— Vou processar a senhora por omissão de socorro. Pela ruindade! Cristo, nosso pai maior, condenou sua atitude. Nós, mortais, condenaremos na justiça. Vou entrar com um processo. A senhora vai pra cadeia! — discursou o rábula arrancando aplausos.
— O senhor não é homem pra fazer isso, velho descarado! Quem não sabe que sua vida é correr atrás da safada? Lhe largou pra fazer vida. Você não presta! Se prestasse, matava a sem-vergonha. Mas não! Vai atrás dela todo dia, aliás, toda noite, no escuro!, pra ninguém ver. Pois processe! O senhor sabe que o Promotor mora na pensão de minha prima Conceição? Que o delegado é meu primo-segundo? Pra completar, advogado de nada, eu votei no Rolim Sobrado. Não sou eleitor do Pebinha, não!
O rábula Lima Silva chorou convulsivamente:
— Não mereço isso. Moro nesta cidade há quase cinqüenta anos. Minha vida é um livro aberto. É uma pena que não possa mesmo tomar providência nenhuma. Quem acaba preso sou eu. Esta é uma terra sem justiça, dona Alice!
Alice Palmeiras correu até Lima Silva, mas era tarde. O advogado estrebuchou-se no cão. “Valha-me Deus, mais um defunto! Cadê o delegado Caldeira? Corram, chamem doutor Marcelino. Ele só está desmaiado”.
Zé Bichinho correu a chamar doutor Marcelino, que morava nas imediações. Não o encontrou.
— Doutor Marcelino viajou ao Riacho, é padrinho de casamento do filho de Manoel Moura. Leva pra Casa de Saúde, lá tem enfermeira.
Acudiram oito homens. A emoção fez a pressão de Lima Silva elevar-se a mais de vinte. Quase morre.

O caixão de Branquinho permanecia no chão. Todos discutiam as notícias de Eduardo.
— Tudo indica que morreu — profetizou Epifânio. Qualquer informação, disse a enfermeira, só através de doutor Marcelino ou do delegado. Como nenhum nem outro está na cidade…
— Se morreu, não vai enterrar? É melhor cuidar porque o Doca, que faz caixão de defunto, está viajando. Se morreu mesmo, vai apodrecer em cima da terra — arrebatou Osvaldo Papudinho.

***

“Povo ingrato, deixar eu morrer a pedradas. Estou morto, que esperam para acender vela, botar no caixão e enterrar? Jogaram-me nesta sala suja, cheiro de remédio. Que utilidade tem um corpo aleijado com uma perna só? Morri. Meu coração parou. Não respiro. Só Deus pode me salvar — e Ele não vai se ater com um aleijado. Vou sair. Deixar meu corpo. Morto, não deve ser tão ruim. Vejo, ouço, não sou visto. Não sou ninguém, só um vulto. É melhor ser vulto que o merda que era. Não tinha nem nome. Não me chamavam de Eduardo. Era Perneta para lá, Perneta pra cá. Fazendo favor a um e a outro. Menino de recado em troca de comida. As pessoas valem pelo que têm. Sou um moço de vinte e poucos anos que teve paralisia infantil. Ganhei esse aleijão, manco da perna. Mas poderia ter vida normal. Trabalhar, estudar, namorar, construir família. Nada tive na vida. Fui só um perneta. Perdi o nome tão bonito: Eduardo. Virei só Perneta. Sou Perneta porque sou pobre. Aliás, era; esqueço que estou morto. Que me deixem apodrecer em cima da terra. Já não moro naquele corpo. Agora sou independente. Poderoso, vejo e sinto tudo. Vou à forra. Pra começar, uma voltinha na praça. Na casa daqueles que não me deram guarida. O Perneta agora vai virar alma revoltada”.
“Lá vou na minha nova fase. Vejo e não sou visto. Vôo sem esforço, planando como urubu. É o que não falta em Remanso. Céu limpo, azul forte, os urubus descansam perto das nuvens. Queria ser urubu, um bicho que sempre admirei. Grande e forte. Bateria asas pra São Paulo, terra boa onde todos trabalham; até aleijado. Em São Paulo, seria Eduardo dos Santos, muita disposição para trabalhar”.
“Meu corpo permanece na cama, ensangüentado, cabeça quebrada. Vou à casa de seu Né Filho. Varanda grande atrás, família reunida. Seu Né Filho cansado numa cadeira de velho. Criou mais de doze filhos, todos bem de vida. Ficou rico comprando couro, mel e cera de abelha. Vendeu muita madeira para estrangeiro. Aliás, as coisas do sertão servem pra isso: enricar alguns”.

***

— Priiiiiiiiuuuu! Priu-Pruiuuuuuuuu! Pronnnnn!
É o apito do Vapor. Está chegando. Traz mercadoria e turista; e carregando catingueiros para São Paulo. Muitos ficam lá mesmo, não dão sinal de vida; se morreu, se tem outra família. A viúva e os filhos sonham e rezam. Enviam cartas para emissoras de rádio em busca de informações do marido que se foi. O Vapor apita novamente. Antes de aportar, apitará a terceira vez. Os viajantes apressam-se. Vou ao Vapor usufruir a nova condição. Arremeto na carreira como um avião. Passo raspando no poste de iluminação pública. Por pouco não me espatifo na figueira. Sou um urubu perneta — observação interessante. O defeito da perna ficou na asa. Voando de lado, cai-não-cai, tentando me aprumar. Já passei pelo Grupo Escolar Getúlio Vargas. Estou ao lado do mercado, no cais, em pleno Rio São Francisco. Como é alto o cais! Mais de dez metros acima do nível das águas e quase não sei nadar. A perna aleijada me deixava medroso para afoitar-me no rio. Agora sinto medo, mesmo sendo urubu. A asa aleijada tira-me o equilíbrio. Estou perdendo altura. Vou cair na água. Vou me afogar. Estou caindo! Sou um urubu desequilibrado. Foi um erro não treinar antes de ir tão longe. Vou cair. O rio é infestado de piranhas, devoram até um boi. Já sinto as dentadas. O Valmir assassino ficará livre. A vingança de urubu Perneta não acontecerá. As piranhas vão me comer!
Que aconteceu? Não caí! Toquei as asas na água e não me molhei. Sou um espírito, grande descoberta!
Continuo o vôo com destino ao Vapor. Ocorrem mil pensamentos. Agora sobrevôo a ilha do Rolim Sobrado, na frente da cidade. De acordo com a Lei, a ilha não tinha dono. Mas seu Rolim era o prefeito. Seu pai foi prefeito. Seu irmão foi prefeito. Seu primo foi prefeito. Seu tio também. Quem diria que a ilha não era propriedade de seu Rolim?
Sobrevôo o rio grande, o São Francisco. Já foi mais fundo, com muito peixe. Morre aos poucos. O desmatamento vem matando o rio. A chuva carrega areia das margens para o leito do rio. O rio procura vingança. Vai comendo a margem, derrubando jatobás, oitis e maris. O rio também é violento. Mata bicho quando derruba barranco. O animal morto passa boiando; não apodrece porque as piranhas comem.
Aproximo-me do Vapor, que parece ser o “Benjamim Guimarães”. Se o for, o comandante é capitão Esmeraldo. Bonito um Vapor iluminado! Inicio a planagem para uma boa aterrissagem. Aterrisso na segunda classe. O Vapor está cheio de gente. Aquieto-me, não quero chamar a atenção. Tenho medo de ser visto. Um garçom equilibra bandeja com bebidas. Parece vinho. Resolvo passear pelo Vapor até a classe turística. Um conjunto musical toca boleros. Gostava de boleros. Não dançava por causa do aleijão. O palco na penumbra. Alguns pares desfilam dança elegante. O garçom oferece vinho. Sou um espírito; como oferece, se não sou visto? Ele insiste. Vou beber, ver o gosto. Tem gosto de vinho. É vinho! Então não morri. Sinto o gosto do vinho, estou vivo. Não sou urubu, sou Eduardo Perneta. Vou dançar e beber, comemorar o retorno ao mundo dos sofredores.
A movimentação no Vapor é normal. O garçom passa, peço-lhe mais um pouco. Serve e aconselha-me a ter cuidado para não ficar bêbado. Não posso ficar bêbado. Sou espírito, bebida não pega espírito; só dá prazer. Tenho horror a quem se embriaga. Lembro meu pai, de apelido Zé Boato. Dormia pelas calçadas. Chegamos a amarrá-lo para não sair, já estando bêbado. Um dia recebemos a notícia: “Fizeram uma perversidade com seu pai. Parece que está morto”. Uma turma de vagabundos o ensopou de gasolina e atiçou fogo. O coitado correu como tocha humana. Por sorte, o bar de Zezão Castelo ainda estava aberto; apagaram o fogo e ele não morreu. Um mês depois freqüentava os mesmos lugares. Nas vésperas de São João, foi encontrado morto. Enfiaram pedaços de madeira nos seus ouvidos. Por essa razão, não bebo até embriagar-me.
O vinho está gostoso. Parece suco. Peço mais bebida. O garçom adverte: “Perneta, se embebedar não entra mais no Vapor”. Espantei-me. Sabia meu nome! Me conhece de onde, perguntei-lhe.
— Todo mundo conhece você em Remanso.
Era a certeza de que estava vivo.
Uma turista cruza a pista de dança. Morena bonita, lembrou-me Soninha, filha do Chiquinho Calça-Grossa. Nasceu na caatinga, no Veredão. Estudou em Remanso, chegou ao ginásio. Venceu o primeiro concurso de miss São Francisco. Um moço rico de São Paulo a pediu em namoro. Os pais fizeram gosto, o namorado era advogado. Gostava de festas. Prorrogava o contrato dos conjuntos musicais. O sol saia, sete da manhã, e a festa continuava paga por ele, à vista! Diziam que seria até candidato a prefeito. Os professorandos já tinham imprimido os convites de formatura onde ele era o paraninfo. A mãe de Soninha pagou missa em ação de graças pelo noivo que a filha arranjara. Tudo bonito como sonho.
Um dia, cinco homens de fora se hospedaram no Hotel da Detinha. Queriam instalar uma fábrica de alumínio. Remanso seria o local ideal por constituir-se no centro regional. Mais de mês escolhendo terreno, conhecendo a região. O prefeito encaminhou projeto à Câmara Municipal. Doava o terreno e isentava o empreendimento de tributos por noventa e nove anos. “A oposição não aprovará a isenção por um século” — avisou o líder da minoria. O prefeito utilizou o carro de som para defender o projeto. O locutor Djalma Viana, “o locutor sanfranciscano”, visitou até o interior do município transmitindo, ao vivo, a mensagem do chefe do executivo. Ficou rouco, inflamou a garganta tentando provar ao povo que os vereadores eram mesmo parasitas.
Nas vésperas da votação do projeto, o prefeito organizou um comício na praça da matriz, sendo o último a falar. Pediu desculpas pela ausência dos investidores industriais; foram a Juazeiro resolver um problema maior. E continuou: “Meus concidadãos remansenses; quem vos fala é o prefeito que vocês elegeram em votação direta e secreta, para conduzir os destinos desta terra. Nossa Senhora do Rosário, padroeira de Remanso, é testemunha de que resisti, e muito, sair candidato a prefeito. Tinha meus afazeres, loja pra tomar conta e família para dar assistência. A pressão foi grande. Aceitei a espinhosa incumbência, e fui eleito prefeito da nossa terra. Fui eleito com a responsabilidade de zelar pelo melhor para todos vocês. E aqui estou, para defender um projeto de lei que enviei à Câmara de Vereadores. O projeto vocês conhecem. Quero isentar a fábrica de alumínio do pagamento de qualquer tributo, pelo prazo de noventa e nove anos, e não um século! — como alardeia a oposição. A inoperante Câmara de Vereadores, com algumas exceções, principalmente meu compadre Lameuzinho, insiste em não aprovar o projeto”.
“Meus conterrâneos, com esta postura, os edis dificultam a instalação de uma indústria que vai produzir panela, copo e garrafa de alumínio. Exportará inicialmente para todo o vale do São Francisco. Depois para a Bahia, para o Brasil e para o mundo! Ou seja, esses vereadores safados querem abortar a instalação daquela que será a primeira multinacional de Remanso. Que poderá, com sua expansão, gerar centenas de empregos. Mas para isso precisa de tempo para se capitalizar. E uma das formas de capitalização é o não pagamento dos tributos. É por esse propósito insofismável, que precisamos aprovar o projeto. Meia dúzia de vereadorzinho não impedirá que o progresso finalmente chegue a nossa terra. O objetivo deste comício é pedir o apoio de todos, para aprovação do meu projeto de desenvolvimento para o município. O que os vereadores querem é dinheiro. Mas dinheiro eu não dou porque não é meu. É de vocês! É para comprar remédios, pagar professor e ajudar a quem precisa. Vocês querem que eu pare de distribuir sacos de cimento, tijolos e dentaduras? Pois então, vamos à luta! Com o apoio de vocês, vamos aprovar esse projeto amanhã mesmo, na sessão especial convocada pelo meu dileto vereador Lameuzinho. Quero todo mundo amanhã lá, às três horas da tarde. Quem agradece não sou eu; são as gerações futuras da nossa terra. Nossos netos e bisnetos. Nossa Senhora do Rosário fique com todos vocês!”.
O projeto foi aprovado na íntegra. Os industriais continuaram no trabalho de pesquisa. Foram aceitos na sociedade, participando de aniversários, casamentos e bodas. Até que estourou o escândalo: eram policiais federais no encalço de um grande traficante de drogas do Rio de Janeiro. O traficante era, infelizmente, o noivo de Soninha.
O boato estava na rua. O falso advogado já estava preso e seria deportado para o Estado de origem. A demora era o avião aterrissar. Acabou o sonho de Dona Rita, mãe de Soninha. O príncipe virou ladrão, e o futuro da filha, pó. Pó mesmo, na acepção da palavra: o noivo de Soninha era traficante de cocaína.
A noiva enlouqueceu. Trancou-se, dias e dias sem comer nem beber. Não abria a porta nem ao padre. Dizia que se conselho fosse bom, era vendido, não se dava. A mãe implorava que abrisse a porta, tomasse uma sopa de feijão, um escaldado de peixe, um banho! A filha não perdoava: “A senhora foi culpada de tudo. Até promessa pagou. Mandou rezar missa. Por que seus santos não avisaram?”.
As amigas de Soninha foram solidárias.
— Soninha, sou eu, Cordélia Miranda, abra para a gente conversar. É sua amiga Cordélia.
Minhas amigas são essas formigas e os ratos que vêm dormir comigo. Sabiam que não sou mais virgem? Quem tirou minha virgindade foi um ratão que mora aqui. Ele não quer que abra. Se eu abrir, quebra tudo aqui dentro.
Não houve meios de Soninha voltar para a vida. Após muita insistência, prometeu sair em oito dias, se o noivo permitisse. Vai passar oito dias sem comer e sem beber, minha filha? — perguntou a mãe. Derrame água por baixo da porta e farinha pelo buraco da janela; mas não abro a porta, meu noivo pode não gostar — dizia.
E assim correram os dias. Dona Rita já entregara o caso ao Pai Eterno. Perdera a filha. Confessava-se todos os dias, perguntava a origem do erro. São os desígnios de Deus, confortava o Reverendo. A penitência era a mesma: cinco pais-nossos e cinco ave-marias.
Finalmente, o grande dia, quando Soninha abriria a porta. Chegaram o médico, o padre, avós e tios da moça bonita. A mãe iniciou a chamada: “Soninha, hoje você vai abrir a porta. Completam oito dias que se trancou. Prometeu sair hoje. Abra a porta!”. A mãe repetiu o apelo. A porta abriu-se, devagar. Abriu mais. Mais… Apareceu Soninha, vestida de noiva, toda ensanguentada! A mãe desmaiou. O padre benzeu-se, pediu a Deus que ajudasse. Doutor Délio acudiu a mãe, massageando e tomando a pressão. Esquecera o estetoscópio em casa, contornou pragmaticamente: “Desmaiou, mas continua viva. Vamos levar ao quarto”.
— Soninha, que aconteceu, minha filha? — perguntou a tia Marocas, mulher de Senhorzinho. As amigas saíram aos gritos.
— É assombração! Soninha voltou morta!
Soninha continuava impávida. A face límpida, sem sangue. Ainda conservava os traços de moça bonita. Os cabelos sedosos, carcomidos pela sujeira. Os lábios carnudos pediam ajuda: partidos e sem cor. O olhar, distante e sonhador. Estava a morrer, subnutrida. A roupa de noiva, vestido branco e grinalda, cobriam o corpo mais bonito da cidade. Dona Candinha esmerara-se naquele vestido. Todos o acharam lindo, desejavam o mesmo modelo para um futuro casamento de filha. Soninha calçava sapatos altos, ramalhete na mão. O sangue manchava a cintura do vestido. Imóvel, balbuciou:
— Não vão dar os parabéns à noiva? Como são mal educados. Onde está minha mãe? Não vai dar os parabéns? Fiz tudo que ela mandou. Nunca deixei meu noivo encostar a mão. Não fiz certo, minha mãe? Casei virgem. Esse sangue foi meu noivo, o ratão, que me desvirginou. Está se trocando, vem já. Onde está minha mãe?
O médico vai a Soninha.
— Vem dar os parabéns, doutor Délio? Muito obrigada.
Abraçou-se ao médico. Dominaram-na. Aplicaram uma injeção, levaram à Casa de Saúde. Vi tudo. Estava lá, sofrendo como todos que gostavam de Soninha. Mas eu não gostava: amava aquela mulher, mesmo sabendo ser amor impossível.
Nunca mais foi a mesma. Endoideceu. Jamais tirou o vestido de noiva. Quando sujo e rasgado, a família providenciava outro. A mãe morreu de desgosto. Soninha ainda perambulou muitos anos. Apareceu grávida. Um bicho desalmado a engravidara. Não respeitou a morte que habitava aquele corpo bonito. O filho nasceu. Os parentes mandaram para São Paulo. Pelo tempo, já é adulto.
Um dia, Soninha apareceu boiando no São Francisco. Morrera afogada. A história viveu na lembrança dos remansenses durante anos. Agora, depois de morto, já como urubu perneta, encontro essa moça que parece Soninha. É sonho. Estou doente, delirando. Mas o vinho está gostoso. Vou indagar ao garçom quem é a moça. A festa prossegue animada. O saxofone chora uma música pedindo que o relógio pare. Uma voz maviosa entoa a música. Só a voz e o instrumento se deixam ouvir. Empolgo-me. Resolvo dançar. Levanto-me. Todos veem que sou aleijado. Cruzo pela moça que parece Soninha. É idêntica. A cor dos olhos, até o penteado. A música continua intensa. Encontro alguém desacompanhado. Convido-a para dançar. Ela não aceita. Fala-me ao ouvido: “Aqui cada um tem seu par; procure o seu”. Não entendo. Como tenho par, se não falei com ninguém? Chamo o garçom: como é seu nome, amigo?
— Uoston, com u mesmo. Não souberam escrever em inglês. Era homenagem ao presidente da República. Virou homenagem ao ridículo. Sou o único Uoston com u do Brasil.
— Por que cada um tem seu par?
— Pra não dar confusão. Não pode haver disputa.
— Quem arranjou pra mim, se não avisei que viria?
— O organizador da festa não deixa faltar nada.
— Quem é meu par?
— Quem estiver sobrando como você.
— Por que vim?
— Porque ouviu o chamado do Vapor. O apito foi o convite.
— Aquela é Soninha?
— A mulher mais bonita do Remanso. É a primeira vez que vem. Você é um bêbado felizardo, Perneta.
— Perneta não: Eduardo.
— Você não é mais nem Eduardo.
— Soninha não pode ser meu par. Ela não chega pra mim.
— Aqui todo mundo é igual. A festa é recepção pra quem vem ao nosso mundo. O organizador sou eu, lembra de mim?
— Você é o Uoston, filho da Florzinha do Capão! Mataram você na rua do Cruzado. Era o maior pé de valsa de Remanso, apelidado de Nego-Doido. Mas Nego-Doido, o que faz nesse Vapor?
— É minha sina. Tenho que permanecer neste Vapor organizando festa mais duzentos anos.
— Duzentos! Está doido? Ninguém vive duzentos anos.
— Aqui vivemos a eternidade. Este Vapor é o Mata Machado, que afundou no Curralinho em mil novecentos e não-sei-quantos. Morreu todo mundo.
— Por que organizou essa festa?
— Primeiro, porque sempre gostei de festa. Morri numa, na casa da Maria Pernambucana, lembra? Quando você desencarnou pensei prestar uma homenagem. Então apitei para você.
— Soninha também foi convidada hoje?
— Veio dançar. Sempre soube que você era apaixonado por ela.
— E os músicos?
— Não reconhece o saxofone do velho Hermes? O pandeiro do Mazinho, o violão do Zé Boneta? O trompete do Quincas Bento e a bateria do Canetinha? O cantor é o Silvestre, filho de Dona Mariana. Estou numa espécie de purgatório. Ainda bem que o Pai é bom. Mandou-me fazer o que mais gosto.

A orquestra parou. A penumbra domina o ambiente. Vou ao palanque, cauteloso. É seu Hermes mesmo! O melhor saxofone do São Francisco. Não tocava, chorava com o velho instrumento alemão. Ganhou um novo, presente de Zé Lelé. Tirou a paleta, soprou, limpou com a camisa. Chamo-o. É ele mesmo! Contando ninguém vai acreditar. O grande saxofonista franziu a testa, apurou a vista cansada pelos setenta e tantos anos.
— Perneta? Essa festa é sua. O Nego-Doido convidou do bom e do melhor. A começar pelo seu par. Você era apaixonado pela Soninha. Ela não era pra você. O destino era ser assassinada.
— Morreu afogada. Afogamento não é assassinato.
— Foi atirada no Rio porque não deixou que fizessem outro filho nela.
— Quem foi o desgraçado?
— Dobre a língua! Estamos aqui para purificar a alma e partir.
— Só queria saber quem foi o desalmado.
— Pra que, se não é mais de lá?
— Talvez pudesse ajudar avisando a polícia.
— Não misture as coisas. Cuide de sua festa. Também vai passar uma temporada purificando-se, depois deve descansar. — Seu Hermes virou aos músicos — Quincas Bento você conhece. Aliás, todo mundo conheceu o grande trompetista. Nunca perdeu uma discussão. Dava pra ser advogado. Virou alfaiate e técnico de futebol.
Quincas Bento levantou a mão espalmada em continência. Falou-me que sua mãe, Dona Júlia, ia bem, com o reumatismo de sempre. E Benedito Leiteiro, perguntei.
— Não ficou nem aqui. Levaram ele.
Entendi. Deve ter ido ao lugar que ninguém quer ir, nem morto nem vivo. Fiz outra indagação: e seu Antônio do Veneza da Gameleira, como vai?
— Já subiu ao descanso eterno.
— E o finado Deusdete, que mataram no beco do Artur?
— A última pergunta. Seu par está esperando, e a música vai recomeçar.
Quincas Bento virou-me as costas. A curiosidade mata mesmo depois de morto. Gritei: Quincas, só mais uma. Quem tocou fogo no armazém do velho Bertinho?
— Está querendo saber demais, Perneta. Esqueça o lado de lá.
Quincas Bento escarrou e cuspiu. Avancei dois passos até Zé Boneta, violonista. Bom sapateiro. Recebia dinheiro para comprar o material; mas o objeto bonito e lustroso só quando Deus desse bom tempo. Morreu tocando violão. Manejava muito bem o banjo e o bandolim. Apertei-lhe a mão. Estava fria.
— Seja bem-vindo, Perneta! A festa é sua. Estava indisposto e triste. Só vim porque era você.
O baile recomeça. Alguém me chama. Quem será? Mas é o Dílton, filho de seu Max Oto Ledoux! Que saudades, amigo. Há quanto tempo! Que falta você fez. Partiu tão cedo, tão novo…
— Cedo, não; minha hora era aquela. Fiquei sentido, com saudades, mas a hora era aquela.
— O povo era apaixonado por você. Seu irmão, aquele que mora em…
— Por favor, não me traga lembranças. Estou aqui com você, seu Hermes e Zé Boneta. Não perco uma festa.
— Dílton, me dê um forte abraço. Vou ali falar com seu Artur. Seu Artur! O senhor sisudo, voz grave… — Como vai, Perneta? Seja bem-vindo! — Seu Artur, não sabia que o senhor gostava de festas.
— Todos gostam de diversão. Mais ainda para homenagear um conterrâneo. Até o Ademar Soares está presente. Desencarnou em São Paulo. Veio purificar-se aqui, onde a vida é menos corrida. Olhe o Raul Barbosa, cabeleireiro que virou comerciante. Veio ver você. Não lhe pergunte nada. Não pode lembrar-se de lá, pois quer voltar.

Um foguetório. Tiros de adrianinos e de foguetes tipo lágrimas.
— É o Zé Lelé chegando de São Paulo. É festeiro por natureza. Deu um saxofone de presente a seu Hermes. Fica zangado quando o vê com o saxofone velho. Ele está chamando. Viro-me. Recebo um abraço descomunal de Lelé.
—- Perneta! O homem mais rápido de Remanso. Todos sabemos que virou Urubu Perneta. Quando for a São Paulo, voando, não deixe de me procurar. Ainda fico por lá, embora não perca uma festa aqui.
— Zé Lelé, você é doido? Como voar até São Paulo se nem sei pra que lado fica?
— É fácil. Pega um mapa rodoviário. Só um pequeno problema. Como Urubu Perneta, vai gastar os trezentos e sessenta e seis dias do ano bissexto. Isso se não pegar uma constipação no caminho e morrer.
— Zé Lelé, deixe de brincadeira. Veio de São Paulo só para a festa? Me dê um abraço. Devagar, tomei uns vinhos… Não me derrube. Doido do jeito que é…
Zé Lelé apertou-me contra o peito.
— Vai dançar a noite toda com minha sobrinha Soninha. Vim participar.

O livro é uma grande concentração de suspense, humor e poesia.
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* Você pode encontrar mais detalhes sobre cada versão abaixo.

A SANTA DO PAU OCO
Brasília
Edições: 2003 e 2013.

Apresentação

A Santa do Pau Oco, primeiro romance de Astrogildo Miag, é obra que a mão escreveu e a emoção ditou. Tem a mensagem da gramática do coração. Por isso foge habilidosamente da tirania da objetividade absoluta, deslizando por uma narrativa sem pressa. Flui naturalmente. Às vezes, ingênua e comovedora. Quase sempre brutal e meiga, engraçada e triste, frenética e sentimental. A vida como ela é. Com o autor deixando transparecer uma criatividade que funciona com liberdade, coragem e determinação. A palavra salta, esguicha, ora num grito de alegria, ora num jato de sangue, ora num gesto brusco de soco na cara. É realismo sem retoque, adrenalina pura do cotidiano transformada em ficção. Ou será tudo real mesmo?
De permeio, o autor usa uma doçura persuasiva para atrair o leitor, lançando-o, vez ou outra, na condição de personagem, também. Ou pelo menos é levado a esta ilusão. Com essa técnica o texto é costurado.
A paisagem regional de A Santa do Pau Oco evidencia a intimidade do autor com o ambiente. Terra, povo e costumes vão desfilando como se o romance fosse um agradável passeio descritivo. O padre, o delegado, o prefeito — todos personagens — se mobilizam com graça, pisando no tênue limite entre a realidade e a fantasia. Embalados por intrigas e acontecimentos que fazem a desbotada rotina daquela pequena e viva comunidade do interior baiano, o autor revela habilidade e emoção.
Astrogildo Miag, escritor por vocação e talento, em A Santa do Pau Oco mostra, acima de tudo, que sabe trabalhar com a ferramenta fundamental de sua obra: a palavra. E todos sabem que as palavras dormem ao relento. Leito de terra e teto de céu. Ao sol e à chuva. Alimentam-se de horizontes, de espaços e de tempo. Vestem-se de sonhos, desejos e ilusões. Saber usá-las é o desafio. Nesta obra o autor não vem como promessa, mas realizado e pleno.
Nilo Vaz
Jornalista, escritor e publicitário.

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A Santa do Pau Oco- Resenha crítica
por J. Simões – Doutor em Educação, Presidente da ATL

MIAG, Astrogildo (pseudônimo de Astrogildo Regis Barbosa). A Santa do Pau Oco. Guará Editora, Brasília – DF, 2003, 177p.

Astrogildo Miag é baiano, desses meninos que vieram do interior para as metrópoles à busca de vida melhor, mais digna. Passou pelos percalços de todos os migrantes, geralmente sem muita instrução escolar, sem profissão e sem em que se apegar. Estudou, formou-se, venceu. Hoje é servidor público em função de alta responsabilidade. Escritor, principalmente prosador, mas, também, poeta. Sua última conquista foi tornar-se Membro Titular da Academia Taguatinguense de Letras.
A Santa do Pau Oco, segundo registra o autor, é história verídica, ocorrida em Remanso, cidade que foi alagada pela hidrelétrica de Sobradinho. Sendo, então, um ensaio em estilo memória, aumenta a responsabilidade e a validade do enredo, vindo a ser um documento, uma crônica histórica. O enredo é linear, seguindo a ordem do tempo e do espaço, com uma narrativa carregada de humor, uma sátira ao comportamento humano. Os personagens são tipos, verdadeiros representantes dessas figuras ímpares que vivem no nosso imaginário e nas nossas memórias. Ocorrem fatos os mais variados, sempre envolvendo problemas humanos, o que torna o livro, mais do que um ensaio biográfico, uma análise psicológica e social desses agrupamentos humanos. Há os vencedores e os vencidos, os espertos — ou que se acham iluminados — e tudo isso se emaranha em vivências, atitudes, estratégias políticas e em resistência às fatalidades.
A trama é engraçada, lírica, emotiva. Sobretudo, retrata a alma saudosa do autor ao resgatar suas lembranças de menino, ao recriar casos e causos que ouviu e/ou presenciou. O maior mérito é atribuído à habilidade do autor em trabalhar com as palavras, retratar fatos, reproduzir falas – diálogos que engendram a trama e a tornam envolvente, forte. É uma narrativa fácil, simples, predominantemente dialogada com a expressividade dos personagens interioranos, com um vocabulário limitado, regionalista, mas que demonstra nesses “falares” toda a astúcia, a sagacidade desses “simplórios” que se tornam seres ativos, agentes que constroem suas vidas com muitas dificuldades, mas com energia e trabalho. Tudo aqui se torna hilário: o que é para ser triste, até mesmo um enterro, torna-se cenário de ironia, de comportamentos e ações denunciadoras da brejeirice da alma daquela gente, com seus pensares característicos, suas histórias quase sempre tristes, mas que, pela forma narrativa, tornam-se engraçadas, motivando o riso do leitor.
A paisagem e a linguagem são regionais, mas os fatos são universais. A expressão “santa do pau oco” é de domínio público como qualificação de mulher que se apresenta como santa (pura, casta) e, ao se verificar a realidade, de santa nada tem. Aqui não se faz graça com a desgraça alheia, não se descaracteriza nada nem ninguém. O retrato é real, mas a realidade, por mais simples e dura que seja, é sempre o milagre da vida. Viver, como disse Guimarães Rosas, “é muito perigoso”; mas, para Luiz Gonzaga Jr. (Gonzaguinha), “A vida é bonita, é bonita e é bonita!”
É um livro para se conhecer a alma humana desses brasileiros simples, mas cheios de energia, de poesia e ação. É o retrato de um pedacinho do Brasil. É uma leitura agradável, leve, que leva o leitor ao riso, ao bom humor.

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Livro‏
De: orlando ribeiro de Souza (orlando13galo@gmail.com)
Enviada: segunda-feira, 21 de janeiro de 2008 13:52:43
Para: astrogildomiag@hotmail.com

Caro escritor,

Como disse no e-mail anterior acabo de ler seu livro achei excelente, ha tempos que não ria tanto, Apesar de ser mineiro, adoro os surubins de Remanso, adoro a Bahia e especialmente Salvador onde tenho passado algumas férias. Gostei demais de sua maneira de relatar o dia-a-dia de nossos manos. Apenas não entendi uma parte do livro, que se passa em 1998 e já foi relatado o caso de dólares na cueca. No mais, nota 9,9. Parabéns.
Orlando Ribeiro de Souza
Brasília 21 de janeiro de 2008

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http://www.portaldetonando.com.br/forum/indique-um-livro

Projeto Democratização da Leitura

merjory Assunto do Tópico: Re: INDIQUE UM LIVRO
Enviado: Sáb Abr 04, 2009 7:25 pm

Data de registro: Ter Mar 31, 2009 4:22 pm
Mensagens: 2 A SANTA DO PAU-OCO DE ASTROGILDO MIAG: MUITO CÔMICO!HAUAHUAHUAHUAHA!!!!!!!!!!!!

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Após rápida apresentação, eis A Santa do Pau Oco, primeiro romance de Astrogildo Miag, editado em 2009 pela Editora Guará, Brasília, DF. O livro encontra-se esgotado nas livrarias. Pode ser adquirido no site/loja do escritor: astrogildomiag.com.br ou, em formato e-book, na página da Livraria Saraiva: www.saraiva.com.br

Capítulo I

A seca continuava comendo bicho e gente. Quase todos os barreiros e cacimbas já tinham secado. Os catingueiros fugiam para a beira do rio, acampando na sede do município. Comiam o que encontravam pela frente. O povo tinha medo. O comércio de cereais e alimentos fechava as portas; o risco de saque era grande. O prefeito pouco fazia, dizia sempre:
— Não sou Deus pra fazer chover!
— O senhor não é Deus, mas é a autoridade maior da cidade.
— Mas não sei fazer chover.
— Então vá pra Bahia.
— Na Bahia já estamos.
— Vá pra capital, onde está o governador.
— Fazer o quê, meu Deus do céu?
— Buscar comida e bebida para o povo que está morrendo de fome.
— Essa foi boa, Antônio Souza; você quer que eu traga água de Salvador? Só se encher um bocado de tambor com água do mar, botar em cima do caminhão e mandar deixar em Remanso.
— O senhor é muito cínico, seu prefeito. Água aqui tem demais. Esta cidade só existe porque existe o Rio São Francisco. O senhor precisa ir a Salvador exigir do governador feijão, arroz, farinha e carne seca para esse povo faminto. Foram eles que elegeram o senhor — infelizmente.
— Está pensando que é só assim? Chegar na capital e trazer um caminhão de comida? Pra começar, tenho que marcar audiência com o governador. Depois, não tem verba sobrando. Nem frente de serviço está tendo.
— Frente de serviço não resolve.
— O que é que resolve, vereador Antônio Souza? Me diga, pelo amor de Deus!
— Dar condição ao povo.
— Mas, se não chove?
— Chove e muito. Dê condição ao povo para armazenar água pra beber e molhar as plantas.
— Você está sonhando…
— Ainda vou ser prefeito dessa cidade. Aí o senhor vai ver o que é sonhar.
— Deus não dá asa a cobra…
O dia amanheceu lindo e tenebroso. O sol despontou no horizonte pintando de dourado translúcido as águas do Rio São Francisco. As promessas continuavam acontecendo. Vanderlin Dias, fazendeiro que fez fortuna em Campo Alegre de Lourdes, oferecera cinco bois aos pobres se caísse chuva em oito dias.
— Esse homem é doido. Dar cinco bois de graça a quem nem conhece.
— Dá porque tem. Vai fazer muito bonito. Espero que Deus compreenda a boa intenção de seu Vanderlin e mande chover nesses oito dias.
— Será que está querendo se candidatar a alguma coisa?
— Só se for besta. Rico do jeito que é…
As maiores promessas eram para pagamento em rezas. Dona Miluzinha prometera uma trezena ao Bom Jesus:
— Vamos rezar é uma trezena. Treze dias de reza e foguetes para essa chuva cair logo.
— Por que isso, Miluzinha? A senhora mora na cidade, onde tem muita água e chuva não faz falta. Prometeu logo uma trezena?
— Sou filha de Deus. Amo meu próximo como a mim mesmo. O sofrimento do catingueiro também é meu sofrimento. Minha fome não se saciará se meu irmão da caatinga continuar sofrendo.
Muitos santos foram roubados. Seriam entregues aos donos, em procissão, debaixo de cânticos e rezas, assim que caíssem as primeiras gotas d’água. Mas, nenhuma promessa alcançou a iniciativa das Legionárias Filhas de Maria, da igreja Matriz. A presidente da Legião, Mariinha da Conceição, nascida em oito de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição — daí o seu nome — convidou o padre para falar-lhe da maior promessa de todos os tempos!
O padre atendeu:
— Estamos aqui, dona Mariinha e amigas legionárias, atendendo ao convite. Estou curioso para saber de que forma as senhoras participarão da cruzada cívica contra a seca.
Dona Mariinha ajeitou-se no banco, armou-se dos óculos… — Padre, nossa força é a reza. O apego à nossa mãe Maria. Queremos fazer uma promessa de reza.
— Muito bem, em que participarei?
— Anunciando na missa de hoje e de amanhã. E que nos ceda as instalações da igreja.
— A igreja não é minha, é de vocês. Que promessa é essa?
— Vamos selecionar cinco legionárias. Juntas, rezaremos três mil terços pedindo a intercessão da Virgem Maria para que a chuva caia no Remanso.
— Três mil terços? Não acham demais?
— Vamos rezar em vinte e quatro horas. Começaremos amanhã, depois da novena. Vamos jejuar e dormiremos aqui mesmo. Alguma coisa a acrescentar, legionárias?
Edite Soeiro pediu a palavra:
— Espero que a Mãe do céu nos dê força e saúde para conseguirmos nosso objetivo.
— Será necessário mesmo, dona Edite Soeiro. Três mil terços não são três terços. A responsabilidade é grande, promessa é dívida.
No outro dia, após a novena, as legionárias que pagariam a promessa permaneceram na igreja. De manhã, cedo ainda, comentava-se que já tinham rezado mais de mil e duzentos terços. Zé Revestrés não acreditou:
— Não acredito mesmo. Devem ter saltado a metade dos mistérios. Impossível rezar mil e duzentos terços numa noite só.
— É verdade, Revestrés. Rezaram mesmo. O padre anunciou na missa.
— Anunciou o que não viu. Foi emprenhado pelos ouvidos.
— Olhe o respeito. Todo mundo sabe que você não acredita em Deus.
— Não acredito nesses homens que dizem ter poder de perdoar pecado.
— Todo padre tem. Foi legado pelo papa.
— O papa também é homem. Um homem não tem poder de perdoar outro homem.
A conversa evolui para discussão. Isaías, conhecido como Profeta, conversador e contador de casos, chegou desafiando: — O melhor vocês perderam.
— Vocês quem? — questionou Revestrés. — Eu sou homem de perder nada?
— Pois, perdeu. Perdeu a maior confusão ontem na igreja.
— Confusão na igreja? — admirou-se Pedrinho Teófane. — Que hora foi essa confusão?
— Estava em casa pegando a resenha da Globo quando ouvi gritos vindos da igreja. Percebi que era gente. Desliguei o rádio, apurei os ouvidos. Era gente conversando na igreja mesmo.
— Deviam ser as mulheres rezando os três mil terços. Não sabia, não?
— Guardei o rádio e caminhei para a igreja. A porta estava fechada.
— Lá dentro, trancadas, as legionárias de Maria faziam vigília e rezavam os três mil terços.
— Pra que tanta penitência? Não estão fazendo as novenas, trezenas e outras mais?
— Revestrés, se não acredita, respeite a fé dos outros.
— Posso até não acreditar, mas gosto. Gosto de novena, trezena, missa, benção e tudo mais, porque a Maroca, minha mulher, não perde uma.
— Não entendi…
— Não entendeu? Ela vai pra igreja e eu vou pra rua.
Profeta continuou o relato; Revestrés só falava o que não prestava. Pedrinho Teófanes queria detalhes do ocorrido. Pediu que terminasse a conversa. O conversador atendeu.
— A porta estava fechada. Não podia entrar. Os gritos vinham de lá mesmo. O que fazer? — Isaías tirou uma baforada no cigarro sem filtro… — Só tinha uma saída: entrar pela janela. Mas, também estava fechada. Os gritos ficaram mais fortes. Eram gritos diferentes. Precisava ver o que ocorria. Pedi perdão a Deus e tentei forçar a janela. Não consegui, estava com a taramela. E agora?
— Agora vou tomar uma pra esquentar — cortou a conversa Revestrés.
— Não estou falando com você, depravado! — respondeu Isaías.
— Vá para o inferno!
— Então você acredita no céu! Está me mandando para o inferno…
Isaías Profeta continuou:
— Corri a igreja quase toda, porta por porta. Descobri uma aberta, no fundo da sacristia. É por aqui, pensei. Empurrei devagarzinho. Assustei-me; alguma coisa caiu atrás da porta. Meu Deus, é armadilha…
— Teve coragem de entrar?
— Já estava na chuva… A curiosidade era maior. Empurrei a porta devagar, até abrir. Botei a cabeça, escondendo o corpo. Ninguém na sacristia. Atrás da porta alguma coisa reluziu, brilhou com a luz da lua .
— O que era?
— Não lhe conto, Pedrinho. Alguém tinha escondido uma bandeja, certamente pra pegar depois.
— Fez o que com a bandeja?
— Trouxe pra casa.
— Vai ficar com ela?
— Quero dar de presente à paróquia, através do vigário.
— Se ele disser que foi você que pegou?
— Tenho você de prova.
— Não me bote nessa história, pelo amor de Deus. Nunca fui ladrão.
— Ladrão é sua mãe! — respondeu Isaías Profeta.
— Desculpe, não quis dizer isso. Conte o resto da história. Por que as mulheres gritavam?
— Não vou contar, não! Essa você vai ficar sem saber, como castigo. Da próxima vez preste atenção no que falo e me respeite.
Isaías Profeta saiu derrubando cadeira. Revestrés tomava a segunda dose de cachaça. Cuspiu longe atendendo recomendação de Pedrinho.
A conversa já estava na rua. As legionárias de Maria tinham rezado mais de mil e duzentos terços. À meia noite, em ponto, foram despertadas por uma visagem. Uma mulher toda de branco apareceu na frente do altar-mor. A igreja estava na penumbra, apenas com o fifó do sacrário — aquela luzinha que não apaga nunca, mas, deu para ver: a visagem vestia uma roupa comprida, clara. Com certeza era a Virgem Maria!

***

O padre convocou reunião com as autoridades, do Juiz de Paz ao diretor do Ginásio, para testemunhar o relato das legionárias. A igreja assumiu um ar de alegria. Resolveram fazer a reunião no conjunto dos primeiros bancos, em frente ao altar onde aparecera a visagem. Seria mais fácil demonstrar o ocorrido.
Inicialmente tomou a palavra a autoridade eclesiástica, padre Mário. Agradeceu o comparecimento de todos. Estava ali atendendo a um apelo das legionárias. Solicitaram a reunião com a finalidade de divulgar as últimas ocorrências religiosas. Ele, padre Mário, representava também o bispo de Juazeiro, dom Antônio José, o pastor maior da paróquia de Remanso. Após a abertura o padre solicitou que cada um se apresentasse e ficassem devidamente registradas as presenças. Secretariando a reunião, a professora Beatriz; uma das mais versadas intelectuais da cidade.
O primeiro foi o Promotor Público, guardião dos costumes e da lei: — Todos me conhecem, sou o Promotor Público desta comarca e fui batizado na igreja católica com o nome de José Porfírio. Nasci na região, precisamente em Petrolina, Pernambuco. Minha família assumiu a lei como forma de prestar serviços à comunidade.
Após, apresentou-se o diretor do Ginásio:
— Meu nome é Altamirando Ribeiro. Nasci aqui mesmo, onde ainda moram meus familiares. Tenho visto muitas coisas nesse sertão da Bahia, mas, garanto, o que testemunharei nesta reunião meus olhos e ouvidos jamais conheceram.
O advogado rábula, doutor Tenório, representava a liderança local. Bom orador, discursou:
— Amigos remansenses; talvez tenha chegado a hora de a cidade testemunhar uma grande revelação. Eu me sinto humilde, pequenino até, para merecer ouvir o relato sublime e encantador, que, certamente, teremos aqui. Sou todo ouvidos para o que vier da boca das senhoras legionárias.
O delegado municipal, Protógenes Braga, mais conhecido como Toginho, colocou-se à disposição: — Bem, meus amigos, represento pouco. Não sou rico, não sei discursar. Represento a força policial; os dois soldados que deixei no quartel tomando conta dos presos. Estou aqui para manter a ordem, aconteça o que acontecer.
Zé Mariano da Alda manifesta-se. Ele mesmo se convidara: — Sou apenas um vereador, cidadão remansense. Quero testemunhar o relato dessas nobres senhoras sobre o ocorrido. Me perdoe o reverendo padre Mário. Não sou católico praticante. Faço minhas orações escondido no fundo da alma. A melhor oração sai do coração para o ouvido de Jesus Cristo.
As palavras arrancaram aplausos; Zé Mariano agradeceu. O padre pedia calma; ali não era lugar de comício eleitoral. Magoou Zé Mariano, que revidou:
— Padre Mário, até compreendo o senhor não me convidar. Afinal, nada sou além de um vereador. Quem representa a Câmara Municipal é seu presidente, Antônio Souza, que está presente. Vim por conta própria, preocupado com as coisas da minha terra. Nasci aqui. Tenho o dever de me preocupar com tudo que se refere a Remanso. Peço desculpas se arranquei aplausos das pessoas aqui presentes.
O padre não gostou. Treplicou:
— Para encerrar, seu Zé Mariano, o senhor não está falando como remansense comum. Este está na roça, no mato, nas bodegas da cidade. Fazendo calo nas mãos para garantir o sustento da família. O senhor está falando como político. Todos sabem que o candidato do atual prefeito é o senhor, seu seguidor há mais de vinte anos. Aqui não é palco para político. Mais respeito com o relato que virá. Vamos passar a palavra adiante.
Zé Mariano mudou de cor. De branco-rosado ficou vermelho queimado. Levantou-se. Assumiu posição de ataque, disparou:
— Peço permissão às senhoras da legião para concluir minha apresentação. Parabenizo pela forma corajosa, natural e sublime, de pedir a ajuda de Jesus Cristo. Esta responsabilidade seria da autoridade maior da igreja católica, que está aqui presente. Mas essa autoridade, que é o Reverendo Mário, só cuida dos interesses do grupo político do partido dos batalhadores, aliás, dos trabalhadores. Padre, não sou candidato. Mas tenho o direito de pleitear candidatura a prefeito da minha terra e enfrentar seu partido político, que é o partido do comunismo.
O Padre levantou-se agitado. Percebeu a resistência de Mariano, que continuou:
— Por favor, Reverendo, respeite a casa de Deus. Não se altere. Aproveito para lançar, aqui, nesta casa de oração, minha candidatura a prefeito. Meu partido será o partido do povo, do pobre, do beiradeiro e do catingueiro. Muito obrigado!
Padre Mário empalideceu, da cor de papel branco. Dona Maricotinha o colocou a sentar. Foi à sacristia, voltou com um copo de água: “É água pura. Beba . É bom. Tá sem açúcar.” Do meio dos presentes, alguém balbuciou o suficiente para ser ouvido: “Devia trazer era um pouquinho de vinho.”
O padre bebeu a água, gole a gole. Agradeceu…
— Peço desculpas aos presentes. Aqui é a casa de Deus. Testemunharemos o relato das legionárias de Maria. Alguém mais quer se apresentar para ter o nome na ata?
Levantou-se Nilton Moura:
— Sou Nílton Moura Fé. Gosto desta terra como se aqui tivesse nascido. Fundei o partido de oposição, estou ao lado do povo. Como representante do povo vim para testemunhar.
O presidente da Câmara não gostou da interferência de Nílton Moura: — O senhor não pode dizer que é representante do povo.
— Sou, sim.
— O senhor não é representante do povo porque nunca foi eleito para nada.
— Mas me considero representante do povo.
— Ninguém representa o povo sem que o povo outorgue a representação através do voto. O senhor nunca foi eleito, portanto, não é representante do povo.
— Nunca fui eleito, mas já me candidatei várias vezes, inclusive a deputado estadual!
— Nunca se elegeu, portanto…
— Não fui eleito porque você e outros nunca deixaram.
— Quem elege é o povo. Não somos o povo.
— Faz conchavo com os grandes e poderosos. Saem comprando os votos que seriam meus. Por isso nunca me elegi.
— Na última eleição o senhor só teve doze votos para vereador.
— Porque fui traído. Na véspera você vendeu a honra e o apoio político ao prefeito. Quem lhe deu aquela camioneta nova nas vésperas da eleição? O Remanso sabe que veio do prefeito.
— Se você fosse vereador mesmo, eleito, eu pediria sua cassação por falta de decoro parlamentar.
Doutor Tenório intercede:
— Se estaria faltando decoro numa câmara municipal, um ambiente profano, imaginem o que está faltando aqui, que é uma casa de oração? Só falta chamar a polícia.
O padre tomou para a si a coordenação:
— Não permitirei que se excedam nos comentários. Alguém mais quer se apresentar para o nome sair no livro? Quero lembrar que a ata vai chegar ao Santíssimo padre, o Papa Paulo VI.
Do penúltimo banco manifesta-se Hemitério Santana, Juiz de Paz, dono de bom discurso:
— Amigos conterrâneos, vim com o objetivo de testemunhar o relato das legionárias. Não ia me manifestar. Agora o faço, levado exclusivamente pelo que acabou de dizer o reverendo Mário: a ata dessa reunião chegará ao santo padre, o Papa. Que o meu nome vá até o Vaticano e receba a benção do sucessor de São Pedro.
Do outro lado levanta-se um senhor sisudo:
— Meu nome é Carlos Vicente. Me conhecem mais como Vicentinho. Nasci no município de Sento Sé, localidade de Aldeia. Perambulei por muitos lugares, sofrendo e pedindo para sobreviver. Vim parar aqui, onde vivi anos e anos, morando ao lado do bom amigo Artur Freire, numa casa abandonada. Comia o que me dava de bom coração dona Valdete, sua esposa. Fui motivo de chacota. Recebi pedradas e mais pedradas, de menino e de gente grande também. Andei como um farrapo humano até que um dia sonhei. Uma voz me dizia: vai, Vicentinho, ao Juazeiro! Peça ao doutor Marcelino que interne você num hospital e ficará bom.
E assim fiz. Estou bom, amigos. Já não sou o Vicentinho. Agora sou Carlos Vicente Ribeiro, um cidadão como todos vocês.
Maricotinha assustou-se com o relato de Vicentinho:
— Padre, aquele é o Vicentinho. Ele é doido, não pode participar da reunião. Pra fora, Vicentinho!
Vicentinho ouviu quieto. O padre cruzou as mãos sem saber onde coloca-las. Delegado Protógenes disse em bom som:
— Estou às ordens, reverendo. Se quiser boto pra fora agora!
Vicentinho falou com tranqüilidade:
— Muito obrigado pela acolhida, dona Maricotinha. Continuo a mesma pessoa. Pode me chamar de Vicentinho. Agora mude o respeito. Quanto ao senhor delegado, que tantas vezes me escorraçou, como se faz a um cachorro, ameaçando-me colocar no xadrez, digo: conheço de lei mais que o senhor. Toda sua autoridade não pode colocar-me para fora. A Constituição me garante o direito de ir e vir, mais ainda neste recinto, que é público. Esta casa tem como lema, determinado pelo Pai dos pobres, Jesus Cristo, a humildade. Exatamente o que lhe falta, caro delegado.
Delegado Protógenes procurou a arma:
— Me respeite, maluco! Quem é você para falar assim com uma autoridade?
— Bem disse o delegado no início: sua autoridade só vai sobre os dois soldados que estão na delegacia a olhar os presos. Não sou soldado nem preso.
Maricotinha teve uma crise de tosse; correu a beber água . O delegado danou-se a tremer; sentou para não desmaiar. Padre Mário, mesmo acostumado a situações delicadas, suava. As demais autoridades esperavam o desenrolar dos fatos. Exceção de Artur Freire, elogiado por Vicentinho:
— Amigo, você diz que me deve favor. Perambulou pelo mundo atrás do quê-não sabe, feito farrapo humano. Escorraçado pelos cachorros e até pelo delegado, no cumprimento das suas obrigações de autoridade. Disse também que se arranchou numa casa velha, vizinha à minha residência, onde vivia da comida que lhe dava minha mulher Valdete. Pergunto-lhe do alto da minha ignorância: quem é você?
O senhor barbudo apalpa os cabelos brancos:
— Sou eu mesmo, seu Artur. Sou o Vicentinho. As suas calças usadas cobriram meu corpo por muitos e muitos anos. Da sua família recebia o único afeto durante o tempo que vivi na escuridão. Você para mim foi mais que um pai. Ajudou-me a sobreviver na clausura, encerrado do mundo, sem nada compreender. Sem saber de onde vinha e muito menos pensando para onde pudesse ir. Seu Artur, acredite, estou vivo graças a meia dúzia de pessoas de bom coração. Que me ajudaram a viver como Vicentinho, o maior louco que o Remanso já teve. Hoje já não sou o Vicentinho. Meu nome é Carlos Vicente Ribeiro. Voltei para pagar o que o devo à cidade de Remanso.
Vicentinho falante, bem apessoado, pensamentos claros. Seu Artur continuou:
— Vicentinho, a última vez que nos vimos foi numa manhã ensolarada como hoje. Estava no meu armazém e recebi um recado. Você tinha entrado num paquete e desaparecido rio abaixo. Presumimos que sua morte fosse a alternativa mais concreta. Quanto ao paquete, certamente, teria descido o rio, até ser apossado por alguém. Afinal, que aconteceu?
— Amigo seu Artur, fui embora. Como havia dito, fui ao Juazeiro. Improvisei remos com as mãos. Desci a correnteza. Quase morro na cachoeira de Sobradinho. Dormi pelas barrancas, comendo frutos que desciam pelo rio. O peixe me alimentou quando encontrei uma pequena rede de pesca. Comia cru mesmo, apenas seco pela calor desse sol que todos conhecemos.
— Foi fazer o que no Juazeiro?
— Buscar minha cura. Tinha uma pequena lembrança de Juazeiro, terra onde morei. Procurei doutor Marcelino Ribeiro. Não acreditou que fosse eu: “Você desapareceu há mais de vinte anos! Já devia estar morto”.
Convenci o grande doutor que não estava morto. Estava louco, sem juízo, queria me curar. Fui internado. Passaram ferros na minha cabeça. Choques e mais choques. Sofria, mas não me queixava. Queria me curar e me curei, seu Artur. Depois de quase dois anos de tratamento, coordenado pelo próprio Marcelino, virei outro homem. Um dia ele me disse: “Você vai voltar a ser o bom advogado que era”. Fiquei sabendo que fora um dos bons advogados de Juazeiro. Estudei para recuperar a sabedoria jurídica. Voltei, seu Artur, a Remanso, como advogado. Quero retribuir o que essa cidade fez por mim, aconchegando por mais de dez anos um débil mental.
Delegado Protógenes aos poucos recuperava as emoções. Balbuciou ao ex-louco:
— Me desculpe, seu Carlos Vicente. Se quiser pode me prender.
— Em absoluto, delegado. Pode continuar me chamando de Vicentinho, é assim que quero. Depois, não tenho nenhuma razão para prender uma autoridade. Não tenho poder para tal.
Artur Freire fez mais uma pergunta:
— Vicentinho, veio aqui fazer o quê?
— Amigo Artur, permita a intimidade, aqui nada vim fazer. Voltei para morar. Minha intenção é estabelecer-me como advogado e trabalhar para retribuir um pouco do carinho recebido.
Uma voz, a mesma voz, soou atrás:
— Ele veio pra ser político! Vai ser candidato a prefeito!
Zé Mariano estremeceu-se. O padre assustou-se. O Promotor abriu os ouvidos . O delegado virou-se para reconhecer o dono da voz. Maricotinha benzeu-se:
— Cruz credo, aqui na igreja não é lugar de falar em política.
Vicentinho permaneceu tranqüilo, como se as palavras não lhe fossem dirigidas.
— Reverendo, autoridades e amigos; da minha boca não saíram palavras que, pelo menos, indicassem pretensão de candidatar-me a qualquer cargo eletivo. Mas não ficarei de fora; ajudarei o candidato que tiver condições de servir a esse município, meu por adoção.
Padre Mário pediu a palavra:
— Amigos, depois de muita conversa proveitosa, chamo a atenção para o objetivo da reunião. Peço encarecidamente à secretária Beatriz que não registre todos os diálogos na ata, que irá, repito, ao conhecimento do santo Papa. Certamente ficará intrigado com os assuntos que foram, até o momento, aqui tratados. Mais alguém quer se apresentar?
Da platéia um jovem magro e tímido:
— Padre, autoridades presentes, meu nome é Raulzinho. De batismo, Raul Borges Barbosa Júnior. Nasci em Remanso, sou filho da Adinólia e do Raul Barbosa. Meu pai queria vir. Estava muito ocupado, cortando cabelo na barbearia. Vim por conta própria. Ainda não sou adulto, pretendo acompanhar tudo que acontece no Remanso, pois quero ser um cidadão participante. Gosto muito de música. Sou compositor, tenho mais de cinqüenta músicas já prontas. Vim para ouvir o relato das legionárias. Terminei presenciando uma das partes mais bonitas da minha vida, que foi o reaparecimento do maluco Vicentinho, agora vestido de advogado, como de fato é. Seja bem vindo, Vicentinho! Essa cidade precisa de gente que tenha amor no coração. Você sentiu a necessidade de retribuir o que Remanso lhe ofereceu. Vou fazer uma música para você. Se se candidatar a prefeito vou ser seu eleitor. Aliás, ainda não voto. Mas vou arranjar muito voto para você.
As palmas vieram após a manifestação do menino Raulzinho. O padre inquietou-se; era arriscado não concluir a reunião. Já passava das onze, quase a hora do almoço. Resolveu apresentar as legionárias de Maria, todas com a medalha da protetora no peito, roupa azul marinho e véu sobre a cabeça. Um missal de orações enfeitava a mão de cada uma. Virando-se para as legionárias, falou:
— Este é um momento solene. Pela primeira vez uma reunião para relatar um acontecimento espiritual relevante. O município vive a pior seca do século. Os animais estão morrendo. Pessoas estão sendo comidas pela fome e pela sede. Nossas irmãs legionárias não poderiam ficar alheias ao sofrimento do povo. Resolveram, por conta própria, fazer promessa a Jesus, com intercessão da Virgem Maria, para que as chuvas voltem a molhar nosso chão. Em troca deliberaram rezar três mil terços — ouviram? três mil terços! — não parando nem para comer ou beber. Ofereceram o sacrifício às três pessoas da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, para que se apiedem e mandem chuva para nosso sertão. — E continuou. — Entretanto, amigos, nessa madrugada, por volta da meia-noite, aconteceu um fato inusitado enquanto as legionárias rezavam. Não vou contar-lhes. Quero chamar dona Mariinha Conceição, presidente das legionárias, para que proceda ao relato. Por favor, dona Mariinha, queira chegar a frente.
Mariinha atendeu ao chamado. Professora de profissão, sua escola era reduto do bom aprendizado. Sempre com o missal à mão, iniciou:
— Autoridades civis, eclesiásticas e militares, senhores e senhoras. Minha vida mudou a partir dessa madrugada. Tive a felicidade eterna de presenciar uma passagem que marcou profundamente. E marcará a própria cidade, quando for divulgada pelos meios de comunicação. Sugeri ao padre convocar os jornais da capital e a Emissora Rural de Petrolina, para este momento tão solene. Merece ser do conhecimento de todos que amam a Deus e a Virgem Maria. Infelizmente o telégrafo está quebrado. As chuvas devem ter derrubado os fios da transmissão telegráfica. Cabe a nós registrarmos tudo e passar, fielmente, aos meios de comunicação, ao bispo, e, daí, ao Papa. Por isso o padre convocou todos vocês. Para que testemunhem e assinem a ata, o documento mais importante jamais produzido em Remanso. Quero chamar Edite Soeiro para iniciar a apresentação, ela, que primeiro percebeu a visagem.
Edite Soeiro caminhou, devagar, terço na mão e véu sobre a cabeça:
— Querido padre, autoridades, meu nome é Edite Soeiro. Nasci aqui no Remanso mesmo. Sou de família pobre, mas ilustre; que muito já contribuiu com esta terra. Meu pai foi prefeito duas vezes, no tempo em que era função de responsabilidade. Não igual a hoje, quando prefeito só pensa em se locupletar de dinheiro. Comprar fazenda, apartamento, carro e até barca grande para passear no rio São Francisco. Ser prefeito hoje é o início da degradação. É logo chamado de ladrão, como de fato quase todos são. Não existe mais aquela responsabilidade. Quando meu pai era prefeito nossa casa andava cheia de gente, matando a fome com comida comprada com dinheiro do bolso dele mesmo. Queria ver meu pai, quando era prefeito, não estar presente em todo batizado, casamento ou formatura. Hoje, não; nem para esta reunião o prefeito foi convidado.
Padre Mário tossiu. Permaneceu olhando Edite Soeiro, que percebeu o recado:
— Senhoras autoridades, eu estava terminando o quarto mistério, um pouco cansada, pois já tinha rezado duzentos e sessenta e dois terços, quando alguma coisa me mandou olhar o altar. Percebi algo diferente. O missal estava em cima do altar. Quem trouxe aquele missal, se o padre não estava na igreja? Fiquei olhando. Vi uma sombra cruzar e ajoelhar-se em frente ao altar. Fiquei toda arrepiada. As legionárias continuavam rezando de olhos fechados. A sombra então desapareceu. Fiquei com medo de ser um mau elemento, com intenção de se apoderar das relíquias da nossa paróquia. Procurei me esconder atrás da pilastra. Esperei um pouco e caminhei ao centro do salão em busca de melhor visão. Deparei com o vulto branco no altar-mor, onde fica a imagem da Virgem Maria. Desmaiei na hora. O barulho da queda despertou as legionárias da vigília. Encontraram-me no chão, com o braço desmentido. Me levantaram pelos braços. Gritei de dor. Disse-lhes que tinha quebrado o braço. Por que você caiu? — perguntaram-me. Respondi que tinha ido ver uma visagem branca em frente ao altar-mor.
— Que tipo de visagem? Quer detalhar, por favor? — interferiu o reverendo. — Quero pedir à professora Beatriz que não deixe passar um só detalhe do relato, o mais importante na história de Remanso.
A legionária continuou, emocionada. Os presentes ouviam atentamente. Vicentinho demonstrava interesse. Zé Mariano escutava com o lenço na mão, enxugando as lágrimas que lhe desciam a face de vez em quando. Chamava a atenção do vereador Antônio Souza, presidente da Câmara Municipal, que nunca admitira que homem chorasse. Mandava recado baixinho:
— Ele está querendo aparecer. Disse que é candidato a prefeito, já está agindo como político em campanha. São lágrimas de crocodilo.
O menino Raulzinho arranjou papel e lápis. Anotava e rabiscava algumas frases ditas pela legionária. Dali sairia uma música, no mínimo um poema. O Juiz de Paz, Hemitério Santana, preocupava-se com o tempo. Deixara seu armazém entregue aos empregados. Fora informado que a reunião não duraria mais de uma hora; já tinha três horas. Impaciente, procurava um relógio. O padre o repreendeu:
— Olha o silêncio… Vamos prestar atenção. A responsabilidade de vocês é muito grande.
O padre, então, repetiu a pergunta a Edite Soeiro:
— Responda, dona Edite: que tipo de visagem a senhora teve? Seja o mais clara e fiel possível.
Edite fechou os olhos buscando concentração:
— Padre, sinceramente, no início, logo depois que me pegaram, não via quase nada. Na queda meus óculos quebraram. Perguntei logo por eles. As legionárias me deram só a armação: “Estão aqui seus óculos. Quebraram as duas lentes. Leve a armação para mandar fazer em Juazeiro. Sua sorte é ter outro em casa” – disseram. E tenho mesmo, este que estou usando.
O padre continuou a interrogação:
— Dona Edite Soeiro, por favor, seja clara e se apegue aos detalhes.
— Que detalhes, padre? O senhor acha que não estou sendo clara? Mais clara é impossível.
— Dona Edite, por favor, compreenda; este é um momento muito importante para a cidade.
— Por acaso estou dizendo que o momento não é importante?
— A senhora viu o que?
— Como ia ver sem óculos? Sem óculos não enxergo nada.
— A senhora não viu absolutamente nada?
— Vi sim, senhor. Vi muito claramente.
— Viu o quê?
— O que já falei. Vi a sombra ajoelhando em frente ao altar da missa.
— E o que mais?
— Um vulto branco em frente ao altar, perto do lugar onde fica a imagem da Virgem Maria.
— Viu mais alguma coisa?
— Padre, já disse que só vi isso. Não vi mais porque fiquei sem óculos. O senhor quer que eu minta? Acabei de rezar mais de duzentos terços. Mentir não posso.
— A senhora ouviu alguma coisa? Não podia ver, mas podia ouvir.
— Ouvi os morcegos voando e soltando aqueles gritos finos. Ouvi também uma coruja piando no coro da igreja. Uma “rasga-mortalha” cantou lá fora. Pensei comigo: deve ser o agouro que desmentiu meu braço.
— A senhora ouviu alguma coisa da visagem?
— A visagem branca não falou nada que eu ouvisse. Tive a impressão de ter ouvido um barulho de porta abrindo, no lado da sacristia.
— Tem certeza?
— Certeza, não; tive a impressão. Certeza de jeito nenhum.
A plateia inquietou-se. Raulzinho rabiscava, rápido como jornalista antes de aparecer gravador-miniatura. O Juiz de Paz, Hemitério Santana, toda hora mudava a posição de sentar. O presidente da câmara, vereador Antônio Souza, acompanhava atentamente o relato. Zé Mariano, chorando, chamava a atenção de todos. Maricotinha trouxe-lhe água:
— Tome um copo de água. Mas está sem açúcar.
O nobre vereador bebeu devagar. Agradeceu, enxugou o rosto suado. Vicentinho, com semblante tranqüilo. Moreno, cabelos esbranquiçados, não lembrava a figura maluca a cortar as ruas, dia e noite, sem parar. Não raramente, totalmente nu por não ter juízo. Reapareceu doutor.
O padre, na sanha inquiridora, cobrando definição de Edite Soeiro, que diminuía mais ainda de tamanho frente à pressão do vigário: — Dona Edite Soeiro, a senhora não viu mais nada? Não ouviu mais nada? Quem mais viu alguma coisa?
Da platéia levanta a mão Isaías Profeta. Queria falar. O padre fez que não o viu. Repetiu a pergunta. Isaías Profeta levantou o braço novamente. Continuou com o braço levantado. O reverendo sem dar atenção. Intercede o vereador Antônio Souza:
— Reverendo, o senhor ali — como é seu nome amigo? — Isaías Gonçalo. — O senhor ali quer usar da palavra.
A contragosto o padre respondeu:
— Agora é impossível. Estamos apenas começando o relato. Peço ao senhor Isaías, vizinho que pouco freqüenta esta igreja, esperar o momento oportuno para se manifestar.
— Mas padre, eu queria…
— O senhor vai querer depois; por enquanto o relato. Dona Edite, me responda: quem mais viu alguma coisa?
Edite não respondeu. Voltou ao seu lugar e sentou-se. O padre não gostou.
— Dona Edite, este é um momento muito importante na vida de todo nós. A senhora já ouviu falar na santa inquisição?
— Cruz credo, satanás! — respondeu benzendo-se com o sinal da cruz.
O padre levantou-se, dedo em riste:
— A senhora está blasfemando!
— O senhor me respeite! Tenho mais de trinta anos de Legião. Nunca blasfemei.
— A senhora acabou de blasfemar, todos são testemunhas. Se fosse no tempo da inquisição a senhora, dona Edite Soeiro, ia limpar a alma na fogueira.
— O senhor me respeite, já disse. Quem ia pra fogueira era o senhor, me condenando pelo que não fiz.
— Como não fez? A senhora acabou de blasfemar.
— O senhor me diga onde blasfemei.
— Acabou de pronunciar o nome de satanás dentro da casa de Deus, numa reunião tão importante.
— O senhor é que está blasfemando, querendo que eu minta. Que fale do que não vi.
— Amanhã quero a senhora no confessionário.
— E o senhor vai se confessar a quem?
— Se continuar com esse comportamento vou excomungar a senhora.
— Quem é o senhor pra me excomungar?
— Sou o pastor desta paróquia. Basta fazer uma carta ao santo padre, o Papa, falando os motivos e as graves acusações que pesam sobre a senhora.
— Se o senhor me acusar, acuso o senhor.
— A senhora vai me acusar de quê?
— O senhor sabe muito bem. Aliás, sabe melhor do que eu.
— Minha vida é um livro aberto, todo branco. Não tem mácula nem pecado. A senhora está me caluniando e calúnia é pecado, dona Edite.
— O senhor pare com isso.
— Quero a senhora amanhã, aliás, hoje mesmo, no confessionário. Caso contrário vou pedir sua excomunhão.
— Se o senhor pedir, peço também a do senhor. Sou capaz de ir ao bispo em Juazeiro e até ao Papa, contar tudo a eles.
— Contar o quê? Já disse que minha vida é um livro aberto. A senhora não tem nada pra contar.
— O senhor quer que eu conte aqui e agora?
O reverendo empalideceu, parou no tempo. Edite Soeiro repetiu a pergunta:
— O senhor quer que eu conte aqui e agora?
O reverendo respondeu:
— Não permitirei que esta reunião perca seus objetivos. Não misture coisas pessoais com a sublimação desse momento. Vamos continuar ouvindo o relato.
Hemitério Santana, Juiz de Paz, impacientou-se de vez. Saiu de fininho.
— Vai para onde, senhor Hemitério? — O homem assustou-se. O padre continuou: — Se vai a procura de água aqui na igreja não tem.
Hemitério vislumbrou a saída. De fato ia correndo para seu armazém, que ficara na mão dos outros. Mas não caia bem declarar tal coisa. Respondeu ao reverendo:
— Padre, com licença da palavra, não agüento mais.
— Não agüenta mais? O senhor como Juiz de Paz é autoridade no município.
— Sei disso, padre, mas não agüento mais.
— O senhor não está gostando do relato? Ainda estamos na metade.
— Estou gostando. Mas não agüento mais.
— Senhor Juiz de Paz, nem a ata vai assinar? o seu testemunho é importante.
— Posso assinar depois.
— Como vai assinar, ou seja, se responsabilizar por algo de que não participou?
— Eu participei, padre.
— Mas está indo embora.
— Não fico porque não posso. Não agüento mais.
— Não agüenta o quê, homem de Deus?
— Estou com vontade…
— Vontade de que? Pode se expressar melhor?
— Estou com vontade daquilo…
— De comer? Já está com fome, seu Juiz de Paz?
— Tou não, seu padre. Não estou com fome, não.
— E está com vontade de quê?
— De ir na privada. Não agüento mais.
— Na privada, seu Juiz? Como uma autoridade é capaz de misturar tanto as coisas?
— Não estou misturando, não. Estou com vontade mesmo.
— Espere só um pouco mais.
— Não aguento. Se aqui na igreja tivesse uma privada…
O Padre, semblante agressivo, investiu contra Hemitério Santana: — Vai-te embora, satanás! Respeite a casa de Deus. Acha que vou permitir colocar uma privada aqui na igreja? Essa é maior depravação que já ouvi. Vá embora para a sua privada.
Hemitério Santana escapuliu correndo, segurando as calças. Foi para o armazém, tomar conta do que era seu. O padre continuou falando e falando. Por fim a secretária da reunião, professora Beatriz, interviu:
— Padre Mário, o senhor quer que coloque essas coisas na ata?
— A senhora é maluca, dona Beatriz?
A professora baixou a cabeça. Maricotinha chegou com mais um copo com água: — Toma, padre. Para o senhor se acalmar. Só não tem açúcar.
— Não estou nervoso, Maricotinha. Já sei muito bem que não tem açúcar.
— Meu nome não é Maricotinha, padre. É Maria. O nome da mãe de Jesus.
O padre bebeu compassadamente. Respirou fundo, arrotou alto. Assustou-se com o ato, pediu desculpas. Maricotinha falou-lhe ao ouvido. O padre franziu a testa:
— Não tem, dona Maria, vou fazer o quê?
Maricotinha voltou a falar-lhe ao ouvido. O pároco reagiu: — Dona Maricotinha, não me fale em segredo. É falta de educação.
— Já lhe disse, padre, meu nome é Maria. O mesmo nome da mãe de Jesus.
— Tá certo, dona Maria. Agora peço: não me fale em segredo. Fica parecendo fuxico. Ainda mais numa reunião como essa, com todas as autoridades.
— Não estou vendo autoridade nenhuma. Nem o prefeito está aqui.
— A senhora respeite as autoridades aqui presentes.
— A autoridade maior não está aqui.
— Quem é essa autoridade maior?
— Ora, padre, o prefeito.
— A senhora sente falta de um homem daqueles? Deve estar em casa de pijama.
— O maior prefeito que Remanso já teve.
— Todo mundo sabe, dona Maricotinha, que a senhora mata e morre por esse homem. O que foi que ele já lhe deu?
— A mim não deu nada. Deu ao povo. Distribui todo dia muito saco de cimento, bloco, tijolo, telha e até caixão de defunto. E prometeu dar cinqüenta cruzeiro por mês a cada família, para que no Remanso ninguém passe fome. Acha pouco? O senhor é que não precisa. Tem o povo pra dar. Recebe tudo em casa.
— Quer dizer que recebo tudo de graça, sem trabalhar?
— O senhor celebra missa, faz batizado, casamento quando tem…
— E não é trabalho?
— Acho que não, padre. Isso é graça. É o senhor aplicando os santos sacramentos para graça do povo e honra e glória de Jesus.
— A senhora está me deixando nervoso. Respeite as autoridade aqui presentes.
— Que autoridades? Estou vendo é fofoqueiro, como o Isaías Profeta. Mora vizinho da igreja e nunca vem à missa. Não sei o que faz nessa reunião.
— Ele não foi convidado. Veio porque quis. Aqui é a casa de Deus e não vou botar ninguém pra fora.
— Então…
— Continuo dizendo, respeite as autoridades. O juiz, o Promotor…
— Justo. Esses são autoridades. Mas o que dizer do maluco Vicentinho, que já desfilou nu pelas ruas? Uma vez ele quis entrar na igreja e o senhor não deixou. Expulsou como se expulsa um cachorro.
— Dona Maricotinha, a senhora está me desmoralizando dentro da minha igreja.
— Não estou não, padre; apenas falo a verdade e a verdade dói.
— O que quer afinal de contas?
— Queria dizer uma coisa, o senhor não deixou. Ordenou que falasse alto pra todo mundo ouvir.
— Então fale de uma vez, alto ou baixo.
— Já que o senhor insiste, vou dizer: Não tem farinha de trigo pra fazer as hóstias da missa de amanhã cedo!
Todos os presentes gargalharam. O Promotor Público preparava-se para sair do recinto, tal a degradação. O Juiz já redigira uma ordem de prisão. O delegado com o papel na mão, sem saber o que fazer.
— Dona Maria, pelo amor de Deus, deixe as hóstias para depois. Estamos aqui há quase quatro horas e não conseguimos chegar a nenhum termo. Todo mundo tem suas atividades para dar conta. Vamos deixar as hóstias para depois. – pediu o padre. Maricotinha não aceitou a orientação. De pronto respondeu:
— Padre, todo mundo sabe que a responsável pelas hóstias sou eu. Amanhã na missa vai ter gente pra comungar.
— Não vai ter gente pra comungar, não. Vou dizer que não tem comunhão.
— Agora o senhor saiu da linha mesmo. Uma missa sem comunhão?
— Qual o pecado?
— A missa é a reprodução do Santo Sacrifício. A transformação do pão em corpo de nosso senhor Jesus Cristo. Daí, padre, o que o senhor vai transformar em corpo de Jesus se não tiver hóstia?
— Transformo outra coisa.
— Padre Mário, pelo amor de Deus… O senhor falou como se fosse um bruxo. Transformo outra coisa…
— Dona Maria, entenda…
— Entenda o senhor. Minha obrigação é fazer as hóstias e vou fazer.
— Faça então.
— Como, se não tem farinha de trigo?
— Arranje um pouquinho emprestado.
— Arranjar aonde? Os donos de padaria não se dão bem com o senhor, devido a problema político.
— Danou-se. A senhora só falta dizer que sou comunista.
— O senhor é quem disse. Eu não disse nada. Se bem, é o que todo mundo acha.
— E a senhora acha?
— Não vou responder. Minha obrigação é fazer as hóstias. Quero cumprir a obrigação.
— Quem lhe deu essa obrigação? Por que essa obsessão em fazer hóstia?
— Não é obsessão. É obrigação. Uma obrigação que herdei dos meus avós. Desde o primeiro padre minha família tomou para si a obrigação de fazer as hóstias. Essa obrigação virou uma devoção. Virou promessa e dedicação de vida. Minha obrigação é fazer as hóstias e vou fazer.
— Então, dona Maria, eu lhe retiro a obrigação. A senhora não está mais obrigada a fazer as hóstias.
— Quem é o senhor pra determinar isso?
— Eu sou o padre, o chefe da paróquia.
— Essa obrigação não tem nada a ver com o senhor. É obrigação com nosso Senhor Jesus, que está acima de mim, do senhor e de todo mundo aqui.
Criou-se o impasse. Maricotinha não arredou da determinação. O padre sem ter como prover a farinha de trigo. Os presentes já impacientes, aproximando-se a hora do almoço. Raulzinho rabiscava e rabiscava. Vicentinho continuava impassível, apreciando o diálogo. Isaías Profeta, o vizinho que não freqüentava a igreja, não entendia a razão para tanta discussão.
Zé Mariano, com candidatura lançada, ouvia preocupado. Lenço na mão, já ensopado de lágrimas e a suar. Resolveu pedir a palavra. O padre não concedeu:
— Seu Zé Mariano, por favor, não entre nessa discussão. O senhor não entende de hóstia nem de consagração. Já estamos atrasados.
Mariano não gostou:
— Reverendo, isto é uma afronta à democracia. Quero falar e o senhor não deixa.
— Como, se o senhor já está falando?
— O senhor é democrata no discurso. Na prática é um ditador. Quero expressar minhas idéias. A Constituição diz que a manifestação das idéias é um direito inalienável.
— O senhor assumiu ligeirinho a condição de candidato. A discussão com dona Maricotinha nada tem a ver com a importância da reunião.
— O que sei, padre, é que o senhor me negou o direito de expressão.
Maricotinha continuava à frente do padre. A figura da mulher, de pé, enervou mais ainda o vigário:
— Dona Maricotinha…
— Já disse, padre, meu nome é Maria. O mesmo nome da mãe de Jesus.
— Dona Maria, pelo amor de Deus, saia da minha frente.
— Vou sair sem a decisão das hóstias?
— Decida você mesmo. Com hóstia ou sem hóstia vou celebrar a missa amanhã cedo.
— Aí o senhor vai estar errado. Sem hóstia não pode ter missa.
— Minha senhora, a hóstia é apenas o símbolo que vai ser transformado em corpo de Cristo.
— Disso todo mundo sabe.
— Então vou trazer um pedaço de pão, benzer e transformar em corpo de Cristo.
— O senhor me desculpe, mas o povo não vai gostar.
— Não vai gostar por quê? O pão não é a mesma farinha de trigo?
— Mas foi feito por um padeiro, sem ninguém saber nem como foi feito.
— Como a senhora faz as hóstias? Alguém já viu a senhora fazer?
— Nunca viu, não. Mas faço com muito respeito.
— Não sei não, dona Maricotinha; esse negócio de só a senhora fazer as hóstias… E faz sem ninguém ver? O padeiro pode fazer também o pão com muito amor e dedicação, não pode?
— Olha, padre, se o senhor rezar a missa com um pão não piso mais os pés na igreja. Já pensou, assistir a missa e depois comungar recebendo um pedaço de cacetinho?
Delegado Protógenes levantou-se. Olhou o Juiz; a autoridade judicial nada falou. Postou-se na frente de Maricotinha e deu a ordem:
— A senhora está presa!
Maricotinha ficou aérea, sem entender a situação. O delegado repetiu:
— Teje presa, Maricotinha!
— Não me chamo Maricotinha. Meu nome é Maria, o mesmo da mãe de Jesus.
— Maricotinha ou Maria, teje presa.
— Teje-presa por quê?
— Desacato à autoridade. Acha pouco o que disse ao padre?
— Não disse nada que qualquer pessoa sã não pudesse ouvir.
— Você desacatou a autoridade.
— Desacatei como?
— Desacatando, ora. Indo de encontro ao que a autoridade falava. Negando a autoridade, falando mais alto que a própria.
— Quem é a autoridade que desacatei?
— O padre Mário, vigário de Remanso. Representa no município o bispo Antônio José. Aliás, representa o próprio Papa, a autoridade maior da igreja. Teje presa.
Ninguém esperava esse desfecho numa reunião religiosa. E pior, dentro da própria igreja. Antônio Souza, presidente da câmara, solicita um aparte, não concedido pelo delegado:
— Aqui não existe aparte. Ninguém está discursando.
— O senhor está com a palavra. É uma questão de educação. E educado sempre fui. Posso até não ser católico, mas educado sou até a alma.
— O que quer?
— O senhor está praticando uma ação ilegal e imoral.
— Imoral é sua mãe.
— A resposta dou depois. Mas como dizia, a situação é ilegal e vai de encontro ao que rege a máquina pública brasileira. O que o senhor está fazendo se chama abuso de poder e pode ser punido com pena que vai até a cassação.
— Só faltava essa. Quero ver alguém me cassar. Como vão cassar um mandato se não tenho mandato?
— O senhor não está entendendo. Cassação não é apenas o ato de retirar o mandato de quem o tenha. Cassação também é retirar um cargo público de alguém.
— Mas não sou funcionário público. Sou é delegado.
— O senhor é um cidadão no exercício de uma função pública. Tem os mesmos deveres de um funcionário público, enquanto estiver no exercício do cargo.
— Nunca fui funcionário público. Fui alfaiate a vida toda. Quem me deu esse cargo espinhoso de delegado foi o prefeito, que o senhor tanto se preocupa em denegrir.
— Em absoluto, delegado. Nada tenho contra o senhor prefeito. Ele é que tem contra ele mesmo. É o maior inimigo dele mesmo, pelo comportamento e postura. — Antônio Souza completou de pronto: — A vida particular dele não me diz respeito. Mas a vida pública é da conta de todo mundo.
— Você não conhece a vida pública do prefeito. Se entoca naquela câmara…
— Ledo engano, delegado; acompanho tudo. Até as negociatas que o prefeito faz para aprovar as contas. Se não correr dinheiro não aprova.
— Isso acontece desde que me entendo por gente. Um dos poucos trabalho de vereador é aprovar as contas do prefeito. Não é nada demais receber uma gratificação pelo bom serviço.
— Essa pequena gratificação é dinheiro pra vereador comprar casa, boi ou fazenda. Tudo sai do cofre público.
— Não é da minha conta.
— É da conta de todo mundo.
As pessoas transformaram-se em plateia. O delegado estava armado. Vicentinho interfere:
— Por favor, amigos, prestem atenção. São dois pais de família no exercício de funções públicas. Diz o Direito que os dois são passíveis de punição enquanto tal. Prestem atenção: se não acabarem agora com essa discussão, entro com uma ação na justiça para cassar os dois das funções publicas pelos motivos necessários. Estamos aqui com a finalidade de testemunhar o relato das legionárias. Parece que alguma força estranha não quer que cheguemos a tanto!
Vereador Zé Mariano levanta-se, ergue os braços e, com postura e tom de voz característicos…
— Senhores vereadores, peço silêncio! A mesa pede silêncio.
O delegado respondeu:
— Está ficando maluco. Não somos vereadores. Nem o senhor está na câmara. O senhor está na igreja, casa de oração e de respeito.
Padre Mário tomou para si as palavras do delegado:
— O senhor não está na câmara municipal. Está na igreja, casa de oração e de respeito. Peço que se recolha ao seu lugar. Igualmente solicito ao delegado e ao senhor Vicentinho. Recolham-se aos seus bancos para que possamos prosseguir a reunião.
Maricotinha permanecia de pé. Virou-se ao padre:
— E eu, padre? Como fica minha situação? Vou presa ou vou fazer hóstia?
— Acho melhor a senhora ir presa. Foi responsável pela complicação toda.
— Se for presa não vou fazer hóstia.
— E se não for presa também não vai fazer hóstia.
— Por que, santo padre?
— Não me chame de santo padre.
— Por que não vou fazer hóstias?
— As razões já sabe: não tem farinha de trigo.
Raulzinho continuou rabiscando. Anota tudo em verdadeiros garranchos. Zé Mariano chorava novamente. Antônio Souza, seu inimigo, não se contém:
— Esse candidato a prefeito que lançou candidatura na igreja chora é de frouxidão.
Zé Mariano soou o nariz, vermelho de tanto lenço:
— Você não tem coração, Antônio Souza. Só tem olhos para dinheiro. Não vê que estou com pena dessa pobre senhora, Maricotinha, desamparada frente à sanha do delegado?
Maricotinha do meio do salão responde:
— Meu nome não é Maricotinha. É Maria, o mesmo nome da mãe de Jesus.
— Seu nome é Maria, um nome santo. Mas frente aos seus agressores transforma-se numa Maria pequena. Por isso a chamei de Maricotinha. Deus a proteja, dona Maricotinha!
O delegado conversa com o Juiz da comarca. Depois mostra uma folha de papel:
— Não tem jeito não, dona Maria, vulgo Maricotinha. A senhora está presa mesmo.
— Se estou presa, delegado, me leve. Deus está vendo. Enquanto estiver presa não terá hóstia na igreja de Remanso.
— Pela hóstia, não; o padre manda buscar em Juazeiro.
— O Juazeiro é longe, delegado. Pelo menos dez dias para ir e vir. O rio cortou a estrada na altura de Pau-a-Pique.
— A mim não interessa. Estou prendendo a senhora cumprindo ordens superiores.
— Que ordens o senhor está cumprindo, delegado? — perguntou Vicentinho.
— Estou cumprindo um Mandado Judicial.
— Quem outorgou esse mandado, delegado?
— O Juiz da comarca, aqui presente.
— Quais os argumentos que compõem esse mandado, delegado?
— O senhor pode perguntar diretamente ao Juiz.
— Peço ler o que está descrito, delegado.
— Só leio com ordem do próprio Juiz. Ele está aqui presente.
— Caro delegado, esse documento é público. Seria publicado, inclusive, no diário oficial, se aqui tivesse. O senhor quer fazer o favor de ler o documento?
O delegado resolveu tornar público o documento tido como mandado judicial.
— Comarca de Remanso, Estado da Bahia, poder judiciário…
— Delegado, o escrito na cabeçalho não interessa. Isso chama-se papel timbrado. O senhor está lendo o timbre do papel. Solicito que leia o teor, o conteúdo da mensagem.
O delegado pôs-se a tremer. O papel caiu-lhe das mãos. Maricotinha foi pega-lo. O delegado não gostou:
— Deixe isso aí, Maricotinha. Se não, vai piorar mais ainda a situação. Não toque nesse papel!
Maricotinha recuou amedrontada. Vicentinho continuou.
— Por obséquio, seu delegado, pode ler a mensagem?
O delegado iniciou a leitura:
— Protógenes, o senhor é delegado ou não é? Não está vendo o claro desacato que a senhora Maria está cometendo com o reverendo? Prenda ela por desacato à autoridade. Depois mando redigir um mandado de prisão.
Após a leitura o delegado olhou o Juiz. Raulzinho copiava ardorosamente o que se falava. A professora Beatriz, ao contrário, apesar de secretária da reunião, há muito não escrevia uma linha. Como poderia mandar tais obsessões ao santo Papa?
Vicentinho voltou a incomodar o delegado:
— Quem assina este bilhete, delegado?
— Quem mandou foi o Juiz da comarca. Está ali sentado.
— Pelo que percebi ninguém assina esse papel, que diz ser uma ordem. Tem o número da ordem? Tem o carimbo?
— Tem não .
— Então não tem força de mandado judicial. Está destituído das variáveis intrínsecas de uma ordem judicial. Não apresenta o que deve apresentar todas os mandados judiciais. Portanto, não tem validade. E seu conteúdo é dúbio, para completar minha interpretação.
— Então o senhor acha que não houve desacato à autoridade?
— Quem vai responder é o reverendo. Devo lembrar que ele é uma autoridade espiritual. Não uma autoridade legal. É o chefe do rebanho da igreja católica. Quem quiser segui-lo que o faça. Mas não tem poder de coerção sobre as pessoas, capaz de obriga-las a seguirem-no. Não é autoridade no sentido formal. Não existindo autoridade no sentido formal não pode existir o desacato.
— Mas foi desacatado, todo mundo viu.
— Não existe o crime sem a existência do prejudicado. Ela não desacatou a autoridade porque não existia essa autoridade.
O delegado ficou possesso:
— O padre estava certo quando não convidou você. Veio de enxerido. Pra mim você ainda é o mesmo maluco que andava nu pelas ruas botando as mulheres pra correr. Sorte você não ter passado nu na frente de minha mulher. Dava uma surra e ainda jogava sal, pra demorar a sarar.
Vicentinho dirigiu-se aos presentes:
— Amigos, perdoem a insanidade. No fundo, no fundo, é uma pessoa honesta. Tem dificuldade para compreender as coisas, mas a culpa não é dele.
A reunião perdera o significado. O relato nem começou e já estavam desmotivados. Isaías Profeta quis retirar-se; a consciência não deixou. Mariinha, a presidente, pediu ao padre que contornasse a situação. Maricotinha permanecia de pé, esperando a decisão:
— Como é delegado… Vai me prender ou não?
— Não sei. Estão dizendo que a ordem não vale. Agora quem decide é o padre.
Maricotinha virou-se ao pároco:
— Vai mandar me prender, padre?
— Você quer ser presa?
— Se for pra comungar hóstia de pão amanhã na missa, prefiro ser presa.
— Pois então, delegado, pode prender. E de noite dê para comer pão cacetinho e água.
— Só pão e água? — perguntou o delegado.
— Amanhã quando ela acordar — se conseguir dormir — dê, como café, pão e água.
— É castigo, reverendo?
— Não é da sua conta. E tem mais: só solte amanhã depois da missa.
Maricotinha jogou-se ao chão, de joelhos:
— Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!
Ela mesma respondeu:
— Para sempre seja louvado! Vou presa como uma mártir, por amor a você, meu Jesus. Que o povo de Remanso saiba que Maria dos Santos, conhecida como Maricotinha, está sendo presa. Talvez até apanhe, se não for jogada no covil dos ladrões. Mas não arredei pé do amor declarado a Jesus, presente na forma de hóstia consagrada. Louvado seja nossa Senhor Jesus Cristo!
A secretária Beatriz sugeriu suspender a reunião. O sacerdote não concordou. Respondeu na linguagem bíblica:
— Nem só de pão vive o homem, mas também das palavras do senhor.
Mariinha expressa-se com seu sotaque de gente letrada:
— Caro reverendo, o senhor pode me dizer que palavra de Deus estamos a ouvir?
— Que quer dizer, dona Mariinha?
— Que, de Deus, aqui, não ouvimos nada. Quem está se expressando e de forma muito depravada, é o homem. Um homem desrespeitador e despreocupado com o próximo.
— Dona Mariinha, me desculpe, estamos aqui para o relato da visagem. Nem começou e já querem ir embora? Estão com fome, embebedem-se nas palavras de Cristo quando disse: “Homens de pouca fé, acham que os deixarei morrer de fome?”
— Não existe esta passagem na bíblia sagrada, padre Mário.
— Ora, dona Mariinha, as palavras não são ao pé da letra. Interessa o sentido. Vamos adiante com nossa reunião. Quero chamar para depor a terceira representante da Legião de Maria, Adinólia Barbosa. Estava presente quando esta igreja teve a felicidade de ver a força da Virgem Maria.
Adinólia levantou-se, semblante cansado. Quem agüentaria quatro horas sentado, sem direito nem de ir ao sanitário? Atravessou o grande corredor, pôs-se à frente da banca, aliás, da mesa, onde estavam já Edite Soeiro, Mariinha, o próprio reverendo e a secretária professora Beatriz. O padre iniciou a inquirição:
— Dona Adinólia Regis Barbosa, legionária de Maria, senhora de bom coração, esposa do cabeleireiro Raul Barbosa, jura, neste momento, frente às autoridade presentes, perante ao Deus vivo no sacrário, falar a verdade e somente a verdade?
Adinólia encarou o padre, mãos postas sobre o peito:
— Reverendo, o que o senhor pede é impossível.
— Impossível, por quê? Será que não pode falar a verdade e somente a verdade? É mentirosa por acaso?
— Dessa boca nunca saiu uma mentira, mesmo que fosse para beneficiar o próximo necessitado.
— Então por que o que peço é impossível?
— O senhor está querendo me colocar no pecado.
— Logo eu, dona Adinólia, que tenho o poder de perdoar os pecados com intercessão de nosso senhor Jesus Cristo?
— Santo padre, o senhor está me pedindo que use o seu santo nome em vão.
— Primeiro, não sou santo; depois, eu pediria à senhora para usar meu nome para quê?
— O senhor está destrambelhado, padre.
— A senhora dobre a língua!
— Não dobro se a intenção for defender o nome do Senhor e a minha própria honra.
— Por acaso estou ofendendo sua honra?
— Está querendo me levar ao pecado. Quer que eu jure que só vou dizer a verdade. Primeiro, só falo a verdade. Depois, jurar é pecado. É nesse pecado que o senhor quer que eu caía.
Padre Mário veio à razão. Fechou os olhos por alguns segundos:
— Desculpe, dona Adinólia. Minha intenção não foi essa. A senhora não precisa jurar. Também não precisa falar só a verdade. Fale o que a senhora quiser.
— O senhor está me ofendendo novamente. Não sou mentirosa.
— Vai, vai, vai! Fale o que quiser.
— Não vou falar o que quiser. Vou falar o que mandar minha consciência em testemunho do que presenciei, com a graça de Deus.
Professora Beatriz perguntou se colocava na ata todos os diálogos. O padre mal respondeu. Sentou-se desalentado. Atrás, Raulzinho copiava tudo. Zé Mariano já ensopara o lenço de tanta lágrima e suor. Alguém bate à porta e pergunta se tem alguém. A porta foi aberta. Era Tezinho; de batismo, Venâncio. Tinha o péssimo hábito de viver embriagado. O padre fez muxoxo. Dona Mariinha também não gostou. As autoridades preocuparam-se ante a presença inesperada. Tezinho vestia calça surrada, camisa velha e limpa. Tinha mãos de trabalhador. Manifestou-se:
— Meu nome é Venâncio, Venâncio Viana. Sou filho de Maria Amélia e de Antônio Viana. Nasci aqui em Remanso há quase quarenta anos. Tenho as mãos calejadas pelo trabalho. Não dei pra estudar, mal assino o nome. Sonho um dia ser, pelo menos, vereador nesta terra que amo.
O presidente da câmara, Antônio Souza, chama a atenção de Tezinho:
— Tezinho, por favor, estamos numa reunião secreta. Pode se retirar?
— Amigo vereador, reunião secreta só da maçonaria. E a maçonaria não ia se reunir na igreja. Maçom não gosta de igreja. Entrei porque é a casa de Deus. Aqui o pobre é tido como rei, todos são iguais. A única diferença é a roupa que cada um usa. Mas a terra há de comer todo mundo um dia. Então, vereador, não vou me retirar.
— Essa reunião é secreta.
— Reunião secreta com a porta aberta? Por falar nisso, o senhor sabe por que cachorro entra na igreja? Porque encontra a porta aberta. Não sou cachorro, mas sou filho de Deus. Entrei porque encontrei a porta aberta. Não quero ouvir segredo de ninguém. Entrei para orar pela alma do meu amigo Araújo, que Deus a tenha em paz.
Tezinho soluçava alto. Reclama da sorte, inconformado:
— Tem hora que acho Deus errado.
Mariinha não gostou:
— Pare com isso, Tezinho. Ninguém pode dizer que Deus é errado.
— E não é não, dona Mariinha? Com tanta gente ruim pra morrer e a morte leva um inocente? Que Deus levasse um como eu, que não tenho nada nesse mundo. Nem pai nem mãe.
— É assim mesmo, Tezinho.
— Não é não, dona Mariinha. Vivo chorando nessa vida.
— Um dia muda, Tezinho.
— Quando esse dia chegar já estarei velho. Não me conformo, dona Mariinha. Deus podia ter me levado no lugar do compadre Araújo.
— Levado pra onde, Tezinho?
— Pra qualquer lugar, pra onde vão as pessoas depois de mortas. Queria que me levasse e deixasse meu compadre Araújo.
— Onde está seu Araújo?
— Entrei na igreja, minha querida dona Mariinha, para rezar pela alma dele, que Deus levou de ontem pra hoje.
— Levou como, Tezinho? — admira-se Mariinha.
— Não se sabe direito como aconteceu.
— Ele estava doente?
— Estava são, alegre e satisfeito. Me chamou para correr os fios do telégrafo com ele. Sabia que tinha caído algum poste. Era seu trabalho. Como funcionário do telégrafo tinha a obrigação de fazer vistoria nas linhas. Eu sempre ia com ele. Dessa vez não fui, dona Mariinha.
— O que aconteceu, afinal?
— Um morador do pé da serra, dez léguas de Remanso, encontrou o corpo do meu compadre Araújo caído em uma loca da serra.
— O que é loca?
— Caverna, lugar onde se acoita bicho.
— Como estava ele?
— Morto. Não tinha mais nada. Só o couro. O bicho tinha comido tudo.
— Que bicho foi?
— Pelo que conheço foi onça — e das pintadas!
— Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo — manifesta-se Mariinha temerosa.
— Pois, dona Mariinha, foi onça mesmo. Vou caçar essa bicha que matou e comeu meu amigo.
A informação foi chocante. O primeiro a se pronunciar foi o vigário:
— Me diga pelo amor de Deus, como está a viúva?
— Desesperada, padre. Chora o tempo todo. Já desmaiou três vezes.
Presidente da câmara pediu desculpas a Tezinho pela forma como o recebeu.
— O senhor não me deve desculpas, vereador Antônio Souza, foi nossa Senhora do Rosário que me fez vir aqui. Ela que o desculpe.
O delegado falou ao padre que precisava ausentar-se para receber o morto. O reverendo perguntou onde estava Maricotinha.
— Está presa, o senhor não mandou prender?
— Queria apenas dar-lhe um susto, delegado. Pode soltar.
— Agora é tarde, padre. Quem tem a chave da cadeia é o carcereiro Sinval. Ele viajou e só volta amanhã. Dona Maricotinha dorme hoje lá. O senhor, por favor, providencie o pão e a água.
Dona Mariinha falou baixinho ao padre. Este balançava a cabeça, concordando. Virou-se à professora Beatriz. A professora também concordou. O padre, então, tornou público:
— Queridos fiéis e autoridades, encerraremos temporariamente essa reunião para que possamos levar forças à família de seu Araújo, barbaramente assassinado por um animal selvagem.
— Não foi bem assassinado, padre — falou Antônio Souza.
— É como se fosse, pois foi morto de morte matada. Amanhã quero que estejam aqui às nove horas em ponto. Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.
Antes que o padre se retirasse, Edite Soeiro perguntou-lhe respeitosamente:
— Padre, de sua sabedoria responda: continuaremos a rezar os terços?
— Já rezaram quantos?
— Pelas contas, quase três mil.
— Então já pagaram a promessa.
Da igreja o grupo tomou o rumo da casa de Araújo, responsável pela conservação das linhas telegráficas. O relato de Tezinho deixou todos com um nó no estômago. Comida só amanhã, quando o corpo do finado fosse enterrado e bem enterrado. Ao passar pelo beco da Sinhazinha presenciou-se um espetáculo da indignidade humana. Mariinha chamou a atenção:
— Padre, não quer dar a benção à dona Sinhazinha?
— Quem é?
— A senhora que mora nessa casa. Está tuberculosa. Não tem ninguém por ela. Nem caminha mais. Vive acocorada na entrada de casa, onde recebe as migalhas para se alimentar.
O vigário parou admirado. Franziu a testa, questionando Mariinha: — Como pode não ter um parente?
— Ter tem, mas não ligam para ela.
— Ela está muito doente?
— Não disse ao senhor que nem caminha mais?
— Escarra muito?
— Colocaram uma escarredeira perto dela. Mal tem forças para tirar o cuspo do boca.
— Ela quer o que de mim? Não sou médico.
— Padre, o senhor não cura doença do corpo, mas tem poder de curar doença espiritual através das palavras.
— Ela ainda ouve?
— Nunca lhe disseram que tuberculoso ouve mais que gente sã?

Como respondendo ao Padre, Sinhazinha falou da sua porta: — Quem está aí no oitão de casa? Que converseiro é esse?
A comitiva adiantou alguns metros, suficientes para ver a senhora doente acocorada sobre os próprios pés. Mariinha falou: — Somos nós, Sinhazinha.
— Nós quem?
— A Mariinha e …
— Vem trazendo alguma coisa? Não comi nada hoje. A barriga está doendo de fome.
— Estou com o padre Mário, o vigário da igreja matriz.
— Esse padre Mário não conheço, não; quando ele chegou eu já estava doente sem caminhar. Não pude mais ir a missa.
— Ele veio conhecer você, Sinhazinha. Veio lhe dar a benção.
— Louvado seja Deus, padre Mário. Jesus Cristo lhe proteja e dê sabedoria, para que possa diminuir o sofrimento das pessoas que precisam do senhor.
— Amém, dona Sinhazinha. Deus lhe dê saúde e muitos anos de vida.
— Não creio não, padre. Sou temente a Deus, mas nesse sofrimento, tenho certeza, Ele não demora a me levar. É um bom pai. Não há de querer ver uma filha sofrendo como estou.
— A senhora parece uma pessoa esclarecida.
— E sou, padre; fui professora a vida toda. Boa parte desses homens, que hoje são doutores e moram aqui, em Juazeiro, Petrolina, Salvador, São Paulo e até em Brasília, foram meninos um dia. Foram meus alunos. Aprenderam a ler e a escrever nesta casa. Fervilhava de menino. Muito me honra ter colaborado com a vida deles.
— Por que a senhora ficou tão sozinha?
— Eu era uma mulher feliz. Tive tudo que a vida pode dar. A felicidade de ver meus alunos progredindo nas letras era completada em casa. Ao chegar encontrava meu santo esposo de braços abertos. Eram seis nossos filhos, hoje são dois.
— Onde estão esses dois filhos da senhora?
— No mundo. Um se formou em médico, outro é advogado. Há mais de dez anos não os vejo. Devem ter vergonha da mãe pobre e doente.
— A vida dá muitas voltas, dona Sinhazinha.
— É o ditado mais certo, reverendo. Comigo continua dando voltas. Fiz o bem a vida toda. Nunca esperei recompensa, nem estou me queixando. Mas certas coisas doem no fundo da alma.
— A senhora não tem nenhum parente aqui, em Remanso?
— Tenho, sim. Um irmão, era o caçula. Se apossou de tudo que nosso pai deixou. A grande fazenda, berço da cidade de Remanso, virou pó na mão dele. Vendeu o gado. A fazenda foi virando loteamento. Fez muita casa para aluguel. Até esta, que comprei com minha renda de professora, diz que é dele. Só não toma porque não tenho para onde ir. A comida que me mantém viva não vem da casa dele. Vem do povo. Das filhas de Maria, das pessoas que freqüentam a igreja. Acham por bem matar a fome dessa velha professora.
O movimento de gente aumentou. A curiosidade trouxe as pessoas. Muitos achavam que o padre viera dar a extrema-unção à velha Sinhazinha. Jorge da Martinha, gritou à tia Maria José:
— Tia, venha depressa! O padre veio benzer dona Sinhazinha. Peça pra benzer minha mãe também, pra ver se ela fica boa.
Maria José aproximou-se do grupo. Deu boa tarde, só Mariinha respondeu. Sinhazinha não parou a conversa. Raramente alguém a visitava. Mesmo quem lhe trazia comida derramava esta na cumbuca e saia correndo com medo da doença. Maria José dirigiu-se à Mariinha:
— Dona Mariinha, o padre está fazendo visita de caridade?
— O que é visita de caridade, Maria José?
— Visita aos enfermos e adoentados. Queria que fosse até minha casa e desse a benção à minha irmã Martinha, que está muito doente. Começou pela cabeça. Era uma dor de cabeça que não passava. Depois veio uma lerdeza, a coitada perdeu a vontade pra tudo. Não gosta nem de falar. Está ficando amalucada. A vida é dizer que qualquer dia sai voando pelo mundo.
— Maria José, sou sua amiga, mas acho que o padre não vai poder ir, não.
— Aqui pertinho, dona Mariinha?
— O padre até agora não comeu nada. Está nervoso. Quando fica nervoso passa pito em todo mundo. Eu mesma não vou falar com ele. Se você quiser falar…
Maria José caminhou até o reverendo. Saudou-o; este respondeu-lhe mantendo a distância. A mulher buscou forças no fundo da alma:
— Seu padre, me desculpe. Sei que o horário não é o mais …
— Pode falar, senhora.
— Sei que o horário não é o mais …
— Pode falar, senhora.
— Quero falar, o senhor não deixa.
— Pode falar, senhora. Pois fale…
— Para o senhor ir lá em casa abençoar minha irmã, que está em cima da cama há mais de sessenta dias. Garanto que com a fé que tem em Deus e com a benção do senhor, ela vai melhorar.
Dona Mariinha afastou-se para não ouvir a resposta. O reverendo respondeu:
— A senhora acha que sou curandeiro?
— Acho não senhor. O senhor é padre e tem a palavra de Deus.
— A palavra de Deus se refere à salvação espiritual. A pregação da palavra é para obter a salvação da alma. Não para curar um corpo enfermo. Esse, quem cura são os médicos.
— O senhor ia ajudar e muito, levando um pouco de água benta para a coitada que padece feito farrapo humano. Jesus sempre acatou os miseráveis e sofredores. Por que não o senhor?
— Minha senhora, não tenho água benta aqui comigo. Leve-a até a igreja.
— Mas padre …
Mariinha tentou argumentar. O reverendo não deixou a professora concluir:
— Dona Mariinha, estamos aqui com o objetivo de visitar a família do rapaz que foi assassinado pelo animal selvagem.
— Padre, não custava nada. A casa da coitada é ali.
Sinhazinha estende a mão para receber a benção do vigário:
— A benção, padre…
Este não retribui. Afasta-se um pouco, fez o sinal da cruz e, de longe…
— Deus te abençoe. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tenha um bom descanso eterno, filha do pai…
Afastou-se incontinente. Jorge Luís, sobrinho de Maria José, indignou-se. Do alto dos seus dez anos pegou uma pedra e lançou de encontro ao padre, com fúria:
— Padre fila da puta, fi-de-rapariga. Vou rachar sua cabeça!
As pessoas esquivaram-se das pedradas de Jorge Luís. Este só queria acertar o padre. Uma pedra foi de encontro à cabeça do vigário. O sangue desceu na hora. O menino correu e o padre iria ao chão não fosse o adjutório das pessoas:
— Rachou a cabeça do padre. Menino danado. Vou meter bala nele! — gritou o delegado.
Vicentinho intercedeu com a tranqüilidade característica:
— Tenha calma, delegado. Não aconteceu nada. Esse padre não merece coisa melhor. Será que você não enxerga um palmo na frente do nariz? Esse padre precisa aprender a ser um guia espiritual.
— Padre é padre.
— Esse não merecia nem ser coroinha. Não tem sensibilidade.
— Vou prender o menino.
— Não vá, delegado. O pai dele não vai deixar.
— Meto bala.
— O senhor já pensou na aflição de um pai de família vendo sua mulher definhar, morrendo, sem nada poder fazer?
— Mas padre não é doutor
— Pode ter o remédio espiritual. Acalmar o espírito é bom para o corpo. O remédio da alma é bom para o corpo. Outra coisa: o menino é menor. Não se pode prender um menor de idade, muito menos bater.
As palavras acalmam o delegado. Alisou a careca, suada. Ele próprio transformou-se num monte de roupas ensopadas. Trouxeram o padre para a sombra. Uma cadeira e uma vasilha de água. Vomitava. Mariinha convocou Adinólia Barbosa, preocupada:
— Adinólia, vá atrás de um médico para o padre. Ele está vomitando. A pancada foi muito forte. Pode ter tido congestão.
— Não acredito, não, dona Mariinha; congestão só quando a barriga está cheia. A senhora mesmo disse que o padre hoje não comeu nada. Então não pode ter sido congestão.
— Faça o que mando, Adinólia. Sou a presidente da Legião de Maria. Faça o que mando.
Dona Mariinha voltou-se ao padre. Olhos fechados, com gastura, acabava de vomitar. Edite Soeiro segurava um pano molhado sobre a testa do reverendo. O sangue parou de correr. O ferimento fora superficial graças a pouca força de Jorge Luís.
Da porta, Sinhazinha presenciava tudo, acocorada sobre os calcanhares. Uma criança chegava, comida na bacia e um caneco com água. Anunciou:
— Sinhazinha? É da casa do seu Raul.
— Obrigada, minha filha. Já estou que não agüento com tanta fome. Demorou hoje, hem?
— Faltou carvão pra fazer a comida. Trouxe até um pedaço de doce de umbu que dona Nelcina mandou.
— Diga a ela que muito obrigada. Deus dê muito mais. Vou comer agora mesmo.
Mal Sinhazinha acabou de falar o reverendo teve um acesso de vômito. Quem viu jurava que foi em conseqüência da comida da mulher. Raulzinho continuava na fúria de anotar tudo. Já tinha gasto mais de cem folhas de papel. A quem perguntava para que tanta anotação, respondia:
— Pra nada, pra mim mesmo. Lembrar depois que Remanso já viveu esse tempo.
— Você está é doido! Inteligência demais também é doidice.
Isaías Profeta continuava com a comitiva, sem saber muito porquê. Vereador Antônio Souza, presidente da câmara, amargava o prejuízo:
— Perdi o dia. Deixei de ir ao Marcos fazer um comício. E o pior: fui obrigado a presenciar o lançamento da candidatura de um adversário. Talvez até de dois, se esse Vicentinho sair candidato mesmo.
— É assim mesmo, Antônio Souza, política se faz tecendo como rede. Do meio para o fim é que toma forma. Quem sabe se essa conversa não serviu para aproximar você, Zé Mariano e esse Vicentinho? — o delegado tentou confortar.
— Delegado, me desculpe, mas de política o senhor não entende nada. Acho que entende mesmo é de alfaiataria.

Zé Mariano mandou buscar outro lenço. Mandaram um cor-de-rosa, que mais combinava com o sexo feminino. O ilustre vereador e futuro candidato a prefeito devolveu o lenço:
— Diga a Alda que só uso lenço azul. Esse deve ser do Paulinho do Popô, irmão dela.
O sol continuava forte, em plena seca. O calçamento faltava pouco para soltar fogo. O reverendo sentado, cabeça baixa. Sinhazinha devorava sofregamente a primeira refeição do dia. Por um momento esquecia a tuberculose; saciava a fome e a sede. Lambuzava-se tanto que alguém chamou-lhe a atenção:
— Tenha educação, Sinhazinha. O povo está aqui.
O padre vomitou mais uma vez. Provava-se que a gastura era por conta de Sinhazinha. Estava com nojo da coitada. Esta, continuou devorando a comida utilizando as mãos como colher.
A comitiva aguardava a recuperação do padre. De pavio curto, Edite Soeiro falou baixinho: — Vamos, padre, já é tarde. Todo mundo sem comer, morrendo de fome. Até o senhor mesmo.
A resposta do padre foi um vômito escuro. Apareceu Maria Vitoria, costureira da praça da igreja. Trazia uma bacia com chá. Entregou à Mariinha:
— É chá de umburana para o estômago. Curei meu neto, que obrava sangue, com esse santo remédio. Basta tomar que faz logo efeito.
Dona Mariinha chegou pacientemente ao vigário, tocou-lhe o braço:
— Padre Mário, padre Mário. Tome aqui um chazinho. É de umburana, feito agora mesmo.
O padre apenas gemeu. Não respondeu sim nem não. Dona Mariinha insistiu:
— Padre, é chá. Bom para o estômago…
O padre abriu lentamente os olhos. Semicerrados, perguntou dengoso de que era o chá.
— Chá de umburana, padre. É bom para o estômago.
— É bom mesmo?
— É ótimo.
— Tem açúcar?
— Não precisa, não.
— Vou tomar na bacia?
— Vou providenciar um copo.
Correram à procura de copo. Antes o padre exigiu:
— Na casa da Sinhazinha não…
— A coitada não tem nem copo, padre. Só um caneco amassado.
Procuraram Maria José, que acabava de dar banho e trocar as roupas da irmã doente. Abriu a porta com a toalha na cabeça:
— Sou eu! A Duquinha. Faça uma caridade, Maria José. O padre está se sentindo mal.
— O que foi que ele teve?
— Você não soube? O Jorge Luís arrumou uma pedra na testa do padre .
— Meu sobrinho Jorge Luís jogou pedra no padre?
— Rachou a cabeça. O padre está sangrando e vomitando. Parece que teve congestão.
— O que quer de mim? Não sou mãe dele, não.
— Sei disso. Queria que emprestasse um copo para o padre beber um chá de umburana.
— Não posso emprestar, Duquinha.
— Por que, Maria José? Você é tão caridosa.
— Primeiro, aqui em casa não tem copo sobrando; cada um tem o seu. Depois, só tem copo de alumínio. Você acha que ele ia beber água num copo de alumínio usado?
Duquinha saiu, cabeça baixa. Aproximou-se de Mariinha; esta pediu o copo. À Duquinha restou uma mentira:
— Só achei de alumínio. Nesse o padre não bebe, tem nojo.
— Como é que você sabe?
— Até na casa dele só bebe água em copo plástico descartável. Bebeu jogou fora. Ele acha que a água que lava o copo pode trazer contaminação.
— Então peça ali na casa de seu Ademar Soares. Dona Clarissa tem copo de vidro.
Duquinha arribou para a casa de Ademar Soares. Bateu palmas, chamou os de casa:
— Ô de fora. Já vai! — Logo dona Clarita abria a porta, enxugando as mãos no avental. — Que foi, Duquinha?
— Vim pedir uma caridade. O padre está doente, vomitando e sem forças, ali perto da casa da Sinhazinha. Preciso de um copo de vidro pra ele tomar um chá de umburana. Depois devolvo. Agora, dona Clarissa, me faça o favor de trazer já lavado. Esse padre é todo cheio de nove horas.
Clarissa retornou com o copo ainda pingando água.
— Tome. Cuidado! Tirei do meu conjunto na cristaleira.
Duquinha agradeceu. Logo Mariinha despertava o padre para tomar o chá:
— Pronto, padre; aqui está o chá de umburana. Beba devagar.
O padre perguntou na agonia:
— De quem é esse copo?
— Mandei tomar emprestado na casa de dona Clarissa.
— Esse nome não conheço.
— É uma senhora distinta. Mulher de seu Ademar Soares. Pouco sai de casa.
— Esse copo foi lavado?
— Foi, sim senhor. Duquinha pediu que dona Clarissa lavasse.
— Foi lavado com que sabão?
— Aí não sei, padre. O senhor gosta que lave com que sabão?
— Lá em casa só se lava prato com sabão de coco do bom.
— Dona Clarissa não usa sabão de coco. Só usa sabão em pó, que vem da capital.
— Então o copo deve estar bem limpo.
O reverendo bebeu o primeiro gole. Fez cara feia, lançou o remédio longe. Falou grosseiro:
— A senhora disse que era bom…
— Bom não, é ótimo.
— Mas é ruim. É amargo.
— Eu disse que era bom pra curar a doença.
— A senhora disse que tinha colocado açúcar.
— Eu disse ao senhor que não precisava de açúcar.
— Mas é ruim…
— É ruim de gosto. Tome de gute-gute. Vou botar o dedo no seu nariz pra não sentir nem o gosto.
E assim foi feito. O padre bebeu o chá amargo de umburana. Depois queria vomitar, botar tudo para fora. Mariinha não alisou:
— Se vomitar toma tudo de novo.
O reverendo acalmou-se. Fechou os olhos e serenou durante cinco minutos, tempo suficiente para a comitiva recuperar as forças. Comeram alguma coisa. Um menino passou vendendo manga; compraram todas as mangas. A mulher do “quebra-queixo” quase vende seu estoque. Na mastigação Mariinha quebrou a prótese:
— Meu Jesus, quebrei minha chapa. Má hora que comi esse quebra-queixo. O bicho tava duro demais. Passou do ponto.
Edite Soeiro veio acudir:
— Mariinha, manda fazer outra chapa. Eu também não quebrei meus óculos?
— Mas você tinha um de reserva.
— Você não tem outra chapa?
— Tenho não.
— Manda fazer uma ligeiro.
— Quem vai fazer? Seu Nildo, o dentista, está viajando ao Piauí. Só volta no fim do mês. Vou ficar banguela. Não posso nem cantar a missa.
— Manda fazer uma chapa no Juazeiro. Entrega no outro dia.
— A estrada tá interrompida. A chuva cortou a estrada lá no Pau-a-Pique. Não passa ninguém.
— Então cola. Chegou uma cola maluca aí.
— Aí, aonde?
— No armarinho da Hilda.
— Como é essa cola?
— Basta triscar que cola na mesma hora. Cola tudo, até pedra.
— Graças a Deus. Vou lá antes que o padre acorde.
Mariinha fechou a boca e o padre suspirou. Suspirou e soltou um peido — como dizem — pegando todo mundo desprevenido. O delegado não se conteve:
— O que é isso, padre?
Levaram a mão ao nariz. A professora Beatriz manifestou-se:
— Como está fedendo!
— É efeito do chá — observou Marieta, que se juntara ao grupo.
— Se fosse num quarto fechado matava todo mundo — completou o delegado.
O reverendo mudou de posição. Tossiu, balançou a cabeça a procura de posição melhor. Balbuciava palavras. Aumentou a voz, todos ouviam:
— Ai, ai, ai. Não me bata mais. Esta doendo muito. Não me bata mais. Socorro, me ajudem…
A comitiva não sabia o que fazer. O delegado iniciou a reação:
— Estão batendo no padre. Sou delegado, o que devo fazer?
— Entra no sonho e investigue quem está batendo nele — respondeu Zé Mariano.
— Estou falando sério. Estão batendo no padre, o que faço, seu Promotor?
— O Promotor foi em casa tomar banho. Disse que volta já.
— O que é que eu faço mesmo? Estão batendo no padre; como delegado faço o quê?
— O senhor não é delegado; continua sendo um alfaiate, um reles alfaiate.
— Alfaiate é sua mãe! Sou é delegado. Fui nomeado no diário oficial. Recebi arma, bala e a chave da delegacia. Depois que fui nomeado nunca mais trabalhei de alfaiate. Por isso me respeite, vereador Antônio Souza. Eu sou o delegado.
— Você é mata-cachoro do prefeito — arriscou Isaías Profeta.
O delegado perdeu a compostura. O padre a gritar e a gemer. Falou à dona Mariinha:
— A senhora, como presidente da Legião, me diga: o que faço pra salvar o padre?
Dona Mariinha, segurando a chapa com as mãos, falou quase sem abrir a boca:
— Acorda ele…
O delegado sacudiu o reverendo pelos ombros:
— Padre, Mário; padre, ô padre, acorde. Sou eu, o delegado.
O padre assustou-se, empurrou o delegado que quase vai ao chão:
— O que foi? O que foi?
— Acorda, padre.
— Não estou dormindo. Que aconteceu?
— O senhor estava apanhando.
— Apanhando de quem?
— Não sei. O senhor é quem sabe.
— Como é que eu sei? O senhor disse que eu estava apanhando?
— O senhor estava gemendo e pedindo socorro.
— Não lembro de ter pedido socorro nenhum. Quando foi isso?
— Agora há pouco.
— Eu não saí daqui, delegado.
— Foi no sonho. O senhor estava sonhando.
— Como sabe que eu estava sonhando?
— Estava dormindo. Começou a gritar e a pedir socorro.
— Não devia ter me despertado. Estava dormindo. Só durmo falando.
— O senhor me desculpe.
— Agora vai ser difícil pegar no sono novamente nesse calor.
— O senhor me desculpe, já disse.
— Há dias não durmo quase nada. Quando consigo um pouquinho o senhor vem e me acorda?
— Já disse, padre, me desculpe.
O padre virou a cara. Todos sentiram o mesmo odor do efeito do chá. Mariinha não resistiu:
— Êta! assim não. Acompanhamos o senhor, mas não somos obrigados a sentir esse cheiro horrível. Pior que ovo goro.
O reverendo olhou pra si, batina suja de vômito; passou a mão, tentou limpar…
— O que é isso? Essa sujeira em minha batina.
— É vomitação, padre.
— Quem vomitou?
— O senhor mesmo.
— Eu? O que estou fazendo aqui?
— Descansando de uma pedrada que tomou na cabeça.
O reverendo levou a mão à testa. Pegou o lenço com nojo, jogou longe:
— O que é isso? pano imundo!
Zé Mariano, que emprestara o lenço para estancar o sangue, não gostou:
— Mal agradecido. Emprestei para estancar o sangue. Agora joga meu lenço no mato. Fez isso porque sabe que é meu. Não gosta de mim. É o pior adversário que tenho.
O reverendo soou o nariz externando os resíduos da vomitação. Levantou, sacudiu a batina, perguntou para onde iam. Mariinha respondeu:
— Estávamos indo para a casa de seu Araújo. Aliás, do finado Araújo, pois morreu comido por uma onça. Ainda vai?
— Minha obrigação é confortar quem precisa de conforto. Para levar a palavra de Deus vou até o fim do mundo. Até onde derem as minha forças. Fica muito longe a casa?
Seguiram pelo beco do Artur. O padre não se conformou:
— A casa do coitado fica longe, dona Mariinha.?
— Não é muito longe, não; fica no Capão. É só atravessar a várzea e estaremos lá. Só tem um problema, padre… O choveu muito e água da várzea se juntou com o Barreiro da Beata. Não dá para atravessar a pé. Mas a gente arranja uma canoa emprestada.
— Dona Mariinha… Tanta gente para atravessar numa só canoa? Eu não sei nadar.
— Não se preocupe, reverendo…

* * *

Foi mostrado o primeiro capítulo dos nove que compõem A Santa do Pau Oco, uma história inusitada que acontece em Remanso, BA. Inimaginável o enredo e o desfecho de A Santa do Pau Oco.
Em formato papel já não está disponível nas livrarias, pois esgotou-se a edição. Pode ser adquirido neste site/loja do Autor: astrogildomiag.com.br.
Em formato e-book, disponível nas páginas da Livraria Saraiva: www.saraiva.com.br