sufocado de amor

despir-te

inebriar-me

admirar-te

e dizer: desejo-te.

Ah pudesse ainda

sublimado

extasiado

fitar-te cansada

e dizer-te: amada.

Tristeza

Haverá festa

haverá dança

haverá músico de fora,

e eu vejo a Maria Tiana

sentada num lado do prédio.

Está triste.

Tem dança

tem festa

tem bebida

tem músico de fora

mas ela é triste.

Coitadinha…

Tão bonitinha

e tão tristezinha.

A festa começou há pouco

agorinha mesmo.

Festa boa.

Não sei por que não lhe mexe os cabelos.

Nem se levanta.

Não se move

mas está tão bonitinha assim

triste

encostada na esquina.

Adeus, Maria Tiana

vou dormir.

Parece que também está cansada:

levanta-se

ergue os braços

caminha…

Mas que festa é essa?

Ah! dos namorados…

E o seu, Maria Tiana, abriu um oco no mundo e se socou.

07/06/73

Namoro

Carta de namorada

casa de namorada

bilhete de namorada

na morada…

Fiquei na porta da morada.

Eu em um lado

ela no outro

e a mãe atrás.

Cuspi.

Olhei

fiz cara feia

afastei-a

e a mãe de lado…

(a senhora não vai sair daí não?

namorada… )

Um abraço

e  a mãe do lado…

(Diabos!…)

Tantas namoradas…

Namoradas que me fazem chorar

namoradas que me fazem lembrar..

Namoradas…

muitas numa só…

— Depois eu dou o sim…

Ah namoradas…

— Meu filho, você tenha cuidado…

— Mas mãe, eu…

— Desse jeito termina casado.

Ah namoradas!…

Bilhete de namorada

carta de namorada

não de namorada

na morada

na sua própria morada

eu comecei a namorar.

17/06/73

Renovação

Você volta?

— Volto.

Um dia

um breve dia

quando sentires saudades de mim;

quando a lembrança

já não me falar dos teus cabelos cálidos

do teu beijo

dos teus seios

do teu sexo.

Quando tudo me estiver fugindo

uma noite

linda

sorrateiramente

sem compromisso

abrirei a porta do teu quarto

fitar-te-ei na cama

e amarei

para refazer uma lembrança.

13/11/73

Profanação

Mãe, por que tanto sinal?

— Não é sinal não, menino: é repique!

É Deus! É o pai do mundo!

É nossa senhora que dá a luz

é Deus que nasce

vive

vira criança

deita na cama de palha

sem fala

com frio

esmagado pelo hálito dos burrinhos

pelo mugido das vacas

pelas candeias de azeite,

chorando

gemendo

pedindo leite

e São José nervoso

preocupado em fazer leite!…

É a vaquinha que muge

que grita de alegria

mas não tem leite.

É a estrela

são os três reis.

um traz mica

ouro

outro sem carga

sem camelos

sem dromedários de duas nádegas

não traz nada.

— Pra que tanto sinal mãe?

— Não é sinal não, menino danado:

é Natal!

14/08/73

Viciado

Amanhã vou lá.

Amanhã volto.

Mesmo sem ter dinheiro pra voltar

eu volto.

Entro devagarinho no ônibus

no caminhão

me ajeito

e quando vir o cobrador

digo que não tenho dinheiro.

Se ele quiser dinheiro

digo que dou quando chegar a minha cidade.

Se quiser mulher

digo que dou quando chegar a minha cidade.

Se quiser cachaça

digo que dou quando chegar a minha cidade.

Se quiser luar

(digo que dou quando chegar a minha cidade)

oferecerei o luar da minha cidade

e com esse luar as serenatas

o calor

o frio

o calor quente da cachaça.

Se ele quiser alegria…

— Vem cá, amigo

prova aqui…

prove outra vez…

mais um pouquinho…

Pode tomar

aqui tem uma garrafa.

Amanhã vou lá.

Amanhã volto.

Mesmo sem ter dinheiro pra voltar

eu volto.

Não fico é mais aqui

onde não se tem cachaça

mulher nem luar…

22/11/73

Armas da Perdição

Minha cidade é um bar

dois bares, bares

um mercado

dois armazéns, uma estrada…

Minha terra é a terra da perdição

é terra de pecado e desgraça.

Se fores a minha terra

rezes antes de entrar

porque a morte te é selada.

A morte vem da cachaça

dos bares de cerveja quente e cara

dos albergues, do Cruzado

— zona de prostituição da cidade.

Verás

faceira, triste

passeando quando a tarde é finda

a Toinha do Capão de Cima.

E quererás (existe este termo? )

matar

suicidar-te

nos trajetos da estátua de carne.

Mas forasteiro, aquilo tudo é minha cidade

e minha cidade guarda suas coisas santas com armas mortíferas.

Tem a cachaça barata que logo mata

o sargento valente que logo mata

os armazéns

os políticos fingidos…

Todo isso é arma.

Tudo isso é a perdição da minha cidade.

13/11/73

Transplante

Você me entorpece.

Você de vermelho

calma, simples

dengosa

você me fascina.

Você me pega pela ponta do pé

e eleva-me ao mais alto dos céus.

Seu sorriso

seu mistério

seus cabelos bordados de ouro

Lembram-me a Tiana.

Você é linda como a Tiana

é  morta como a Tiana.

do outro mundo como a Tiana.

Você me mata como a Tiana.

Ah se as prostitutas da minha cidade

tivessem as pernas

a cor

o corpo que você tem…

Acordaria cedo

jantaria cedo

e iria para a rua do Cruzado.

Uma a uma amaria  a todas

apertaria todas

dormiria com todas.

11/1973

São João

São João vem aí…

São João bom

São João zoadento

São João quente que esquenta a gente.

São João das quadrilhas

das canjicas…

—  Traz mais milho!

São Joãozinho

tão bonitinho…

seu cordeirinho

tão branquinho…

E seu cabelo, Joãozinho

é tão lourinho…

Mais louro que o cabelo da Socorro da Ornelina.

São João das fogueiras

das apartações, dos padrinhos…

“São João dormiu

São João acordou

São João mandou dizer que você é meu compadre três vezes…”

Era o Joaquim e o Danton.

Brigavam o tempo todo

mas São João é bom

faz intrigados se acompadrarem.

Meu São João infantil…

Quando me lembro nem sei se sou homem ou menino.

São João faz isso.

As fogueirinhas

o cercado da Santa Clara

os galhos de jurema…

Pra trazer era o maior sacrifício…

— Zé, me ajuda aqui…

Terminava trazendo sozinho.

Zé era preguiçoso como o diabo

nem São João tirava a preguiça de Zé.

São João das quadrilhas…

Casa coruja com caboré

traz o dinheiro que o padre quer!…

Naquele tempo padre receber dinheiro era pecado…

07/06/73

EXPEDITO

Expedito macho!

foi bem feito!

Provou a macheza

destreza

violência

coragem

e (desculpe, Expedito)

a sua fragilidade…

Você viajou

passou dois dias

gostava dela

vivia com ela

comia com ela

dormia com ela

fez filho nela…

E quando voltou

Encontrou-a com outro.

E você

pegou a faca

correu

riscou o chão

lambeu

ouviram-se gritos

não se importou

correu dentro

e furou vinte vezes!

No fim, Expedito

você quem perdeu.

Você é moço

é novo

todos tiveram pena:

depois das vinte facadas

ajoelhou-se ao corpo

e chorou a morte da mulher amada.

Veio a polícia

corre aqui, corre acolá

o detetive particular

e nesse dia

a zona de prostituição da cidade

enlutada

ainda cedo

não atendeu a nenhum freguês…

13/11/73

COCEIRA

Coça, coça

quanto mais coça  gosta…

Coceirinha…

vai começando devagarinho…

em pouco…

— Olha a briga!…

Lá vêm os cabras do Capão de Cima

com suas facas afiadas!

— Sai do meio quem tem medo!…

Mãinha, mãinha

você está longe.

Minha mãezinha

que saudade de você…

E essa coceirinha me aporrinha de tal jeito…

— É besta, cabra pedrês!

Puxa sua peixeira!

Puxa que eu quero ver!

E veio o resto da turma do Capão de Cima…

Coceirinha gostosa…

nem me incomodo…

coço, coço, coço…

coceirinha gostosa…

Que me importa que tenha briga?

Briga se vê em todo lugar.

Só não estou acostumado, mãinha

a ficar tão longe assim…

Coceirinha gostosa, gostosa

tão gostosa que chego a esquecer…

25/07/73

Lembranças Noturnas

Carros

motores

calças sanforizadas ( já procurei demais essa palavra no dicionário e não encontrei )

caneta a riscar

— Ô preguiça danada…

É assim:

um dia de um jeito, outro de outro…

Há dias que não escrevo uma poesia

noutros… — Danou-se!

quero escrever um livro…

Carros

ronco de motores

mala rasgada

mala costurada

quarto mal iluminado

cigarro de lado (esse não pode faltar).

As vezes penso em voltar a minha cidade.

Quero ir

aparecem imprevistos

e não vou porque quero ser responsável…

Cigarros aos lábios…

fumaça gostosa

(só sendo mesmo!)

cigarro barato…

Um dia dei minhas poesias para alguém ler.

Sem pensar  em nada, claro:

onde já se viu besta pensar?

Entreguei-as.

Quero uma crítica

e escrita.

Não veio a crítica

nem tampouco escrita.

Talvez nem lesse minha poesia.

Mas hoje estou doido pra escrever.

Esqueci regras gramaticais.

Você sabe o que é parêntese?

pois saiba que o pus até nas cartas da namorada

e foram muitos.

Quero sorrir de tudo

ser melhor que tudo

escrevo entre parênteses (duas meias luas ao contrário: sinal gráfico) o que não quero dizer de frente.

Cheguei da rua

sentei

esperei o leite

esperei a mesa

não me veio nem o leite nem a mesa.

Limitou-se a um cafezinho quente.

Tomei-o.

Do mesmo jeito que tomaria o leite tomei o café.

Café nosso, café do Brasil.

Levantei-me

(só tinha eu à mesa)

rumei ao quarto

(sujo como nunca)

procurei o cigarro.

Bebida não

porque essa só em ocasiões especiais.

Acendi o cigarro

caneta à mão…

uma, duas, três…

(sei lá! ainda nem contei)

só sei dizer que saiu poesia como o diabo.

Poesia besta como eu.

Só não é mera análise

porque não sei analisar.

Só uma vez analisei…

— Boa noite…

e seu Zezinho respondeu:

— Boa…

Vi logo que ele estava com preguiça

e foi a primeira vez que analisei.

Não analiso as minhas poesias.

Escrevo.

Penso que ligo à rima

ao ritmo?

Rima vi muito nos folhetins de feira

e achava uma beleza.

Ritmo vi nas cantigas de cego:

sanfona de lado

pandeiro…

Agora escrevo poesia.

Está bem feita?

Nem eu próprio sei se escrevo poesia.

Posso ser besta.

Acho que sou besta.

No fundo o mundo está cheio de bestas

de linguarudos

de controvérsias.

Imagine que zombaram de mim … “pacificador fingido…”

só porque quis evitar intrigas.

Os futuros intrigados viraram-se contra mim.

Não corri.

Pensei e respondi-lhes.

Como são insípidos

deixaram-se levar por mim.

Carros

motores

calça sanforizada (pus o dicionário há pouco sobre a máquina…)

máquinas…

— Benção, Engrácia.

— Deus te abençoe, meu filho.

Leve essa melancia pra você.

E eu ia chupar a melancia.

Agora passam carros

eu fumo

(mais uma vez: cigarro barato)

penso na namorada

dou uma tragada.

Tiro uma fumaçada como dizem as velhas lá de casa

deito-me (deitar não porque já estou deitado, mas ponho a cabeça sobre o travesseiro…).

Os carros passam…

Sei lá de minha cidade!

Está perdida

sinto saudades

quero ir

surgem imprevistos e não vou

— Como ficou Remanso?

— Tá pra se acabar…

Mexo-me na cama

lembro…

minha mãe…

fumo o cigarro (já está pra terminar)

O sono me quer pegar

sinto-me cansado…

(carros, ronco de motores…)

— Benção, Papai do céu?…

Apago a luz e vou dormir…

17/06/73

MORTE DA PROSTITUTA

Mulher, você está mal…

— Eu, doutor?

Eu? logo agora?

Não doutor, não me deixe morrer…

Mas morreu

e vestiram-na de azul

de luz

de esplendor.

Apertaram-na entre tábuas cobertas de rosas

cor de rosa…

A Nininha morreu.

Sua mortalha

seu chambre de dormir

é azul

e o caixão cor de rosa

as cores da simplicidade

da virgindade.

Chorem virgens

chorem anjos

chorem camas

chorem irmãs!…

A Nininha prostituta morreu…

Vontade

Pernas, caminho

pedras, caminhada

escuro, cipreste

várzeas

lama, água

perto, maior vontade…

a porta trancada

um toque

dois toques

um murro, um soco

a porta aberta

uma silhueta enorme

o abraço, o beijo

o caminho

a sala, a vitrola

a pilastra

as cadeiras

o sofá

a porta

a chave, o quarto

a porta trancada por dentro

a cama

a ânsia

o censo

o aumento

o barulho

o rolar de corpos

dois suores num só

suspiros

ais, gemidos

gemidos da cama

do homem

do colchão…

a porta trancada

o telhado

o escuro

o quarto encerrado

— ai… ai… ai….

ais

os gostos, os gozos

a fadiga

a porta aberta

o ar

o ar puro

o término

o talco, o cheiro

a água

os botões, o cinturão

botões de lado,

botões atrás… — Vestidos!

Era o último filho…

Os parentes e amigos de Nininha Silva

morta por ocasião de um parto mal sucedido

convidam o povo em geral

para o seu sepultamento…

05/03/73

Caldo de Cachaça

Doutor, o que é que eu tomo?

— Caldo de cachaça misturado com cana.

— É bom, doutor?

— Você é homem? Pois foi feito pra homem:

tome, corra, grite, exalte-se, xingue, brigue!…

Vamos! vamos safado!

Tome o caldo de cachaça misturado com cana!

É bom pra quem está como você!…

Tome torrado, masque

fume por cima um cigarro

caia n’água, nade (se não morrer afogado…)

coma feijão, macarrão

coma mamão, coma João!

Seja você mesmo, embriague-se!

Safado, cachorro, tarado

vamos tomar o caldo de cachaça

a bebida real, da realidade

da realeza de ontem que comia feijão e dizia que não comia feijão.

Mas o que é que eu tomo, doutor?

— Já disse: caldo de cachaça misturado com cana

caldo de cachaça misturado com choro…

Xingue, brigue

ofenda a namorada

toque fogo na casa

saia nu de casa

nu! nu!

entendeu? — Nu!

Faça todo mundo correr

as mulheres se horrorizarem

cobrir com a luva a cara.

Faça os homens se revoltarem!

Agite-se! Queira forçar, subestimar!…

Corra! ali vem eles!

Cuidado! vão lhe pegar

botar na cadeia

vão levar ao lugar da sujeira

onde só tem rato preto

sem sanitário!…

Onde só tem o cabo

a vassoura

sem garfo nem faca

sem água encanada

e você será o burro de carga.

Corra! Cuidado pra não cair!

Cuidado com o nariz!

Cuidado!…

Coitadinho…

já o pegaram…

e batem tanto…

— Mas doutor, o que é que eu tomo?

— Caldo de cachaça misturado com cana.

— E depois?

— Depois vá pra cadeia

coma peia, coma peta…

fique de joelhos… (cuidado com o peito!)

deite-se… deite-se! (os soldados andam sem dinheiro)

aguente-se, rebele-se

vá dar parte no comando do quartel

depois saía com as ancas doendo

tremendo

aos pedaços

mas saía

antes que seja tarde.

Depois, olhe lá, não esqueça,

lembre-se que eu nunca fui doutor…

— Mas doutor, o que é que eu tomo?

— Caldo de cachaça misturado com cana.

— Tudo isso?

— Então tome só a cana…

17/03/73

SEMANA SANTA

Ah que saudade da minha semana santa de criança!…

A Mintora pagando promessa

fazendo sacrifício não tomando café.

As ruas enfeitadas

minha mãe fazendo empadas…

— Não compre carne..

Ai que saudade…

Os soldados sem farda

os presos em suas casas

o comércio fechado

eu jogando farinha para as piabas

o delegado tomando cachaça…

— Mentira: nesses dias só tomo vinho.

Mas ai que saudade…

O Raulzinho ajudando a missa

um velho pedia esmola e eu lhe dava uma talhada de abóbora.

O Cenço passando a noite sem dormir…

Ai que saudades…

A radiola de seu Pedro dizendo bem alto a paixão de Deus

(crucifica-o! crucifica-o!)

e eu me tremia dos pés a cabeça.

Ai que saudades…

A fazenda, o catecismo…

— Hoje é dia de eucaristia…

— Amanhã não tem missa.

Ai que saudades…

Bolinhos, melancias…

— Eu vou, eu vou!

— Menino não pode ir.

— E o Raulzinho?

— Besta, você vai ficar com medo

os penitentes vêm todos de preto…

Ai que saudades…

Matraca, rádio, a Ná Rosa…

— Eu vou! eu vou!

— Não vai não. Amanhã tem procissão.

E só não vai tomar uma surra

porque está na Semana Santa.

Ai que saudades da minha Semana Santa de criança…

10/08/73


Senhor Presidente da Academia Taguatinguense de Letras, Escritor J. Simões; Senhores acadêmicos que compõem esta mesa; escritores e confrades; acadêmico Ronaldo Mousinho, pela mão do qual cheguei a esta Academia; senhores professores e diretores de colégios; autoridades presentes. Querida esposa, Célia; querido filho, Ciro; Rafael, sobrinho com quem divido o pão. Querido irmão, Inocêncio Regis, esposa e filhos, que representam, neste evento de rara felicidade, minha família ausente, sobretudo nossa idolatrada mãe, que ainda mora em Remanso, nos confins da Bahia. Amigos conterrâneos da Bahia, que aqui labutam pela vida, e agora testemunham uma página importante da minha vida; cumprimento-os na pessoa do doutor Manuel Bonfim Ribeiro. Colegas e amigos da Subsecretaria da Receita do Distrito Federal, minha acolhedora casa desde 2001, que aqui comparecem para ratificar uma amizade. Não menos queridos, vizinhos da QNL, nesta cidade, lugar que escolhi para deitar meu domicílio. Caríssimos novos amigos, que tive a felicidade de angariar aqui, no Distrito Federal, especialmente em Taguatinga, onde, conscientemente, escolhi viver meu dia a dia — ato do qual não me arrependo. Por fim, senhoras e senhores, queridos jovens estudantes.

É praxe em eventos e solenidades desta natureza o empossando dirigir palavras para enaltecer as qualidades do Patrono da Cadeira que está a assumir. Peço permissão para quebrar um pouco o protocolo e iniciar esta manifestação mostrando aos senhores o significado desta data e deste evento para a minha pessoa.

Quando me vejo criança, menino, em Remanso, lá no final da Bahia, depois de Pernambuco e ao lado do Piauí, sonhando, estudando, testemunhando as dificuldades que meu pai enfrentava para manutenção digna da nossa família.

A cidade onde nasci, hoje, só existe no fundo da minha alma, no sentido mesmo das palavras. Isto porque Remanso foi engolida, inundada pelas águas da grande barragem de Sobradinho. Hoje, só existe na saudade e na memória de todos que lá nascemos.

Vejo-me aos dezesseis anos, concluindo o curso ginasial, momento da grande inflexão, da grande passagem da minha vida. Lá, na minha pequena cidade, só dispunha do curso normal-pedagógico e eu queria ir um pouco além do curso pedagógico. Queria galgar a Universidade e sonhava até em ser um Advogado, Médico, Engenheiro; o que não seria possível lá, na minha cidade.

Fazendo das tripas coração, meu pai, homem pobre, com ajuda da tia Ana e Sebastião Alves, conseguiu me manter, a duras penas, em uma cidade maior, Petrolina, no Estado de Pernambuco, onde fui cursar o antigo curso Científico. Foi o primeiro passo importante da minha vida. Arribei da minha cidade. E nunca mais voltei para morar. Voltei, e volto ainda, como visitante, para matar saudades.

Após, imaginem os senhores, fui morar em um pensionato, ainda em Petrolina, onde obtive a complacência da senhora Zita, que me fez um abatimento de cinquenta por cento. Vejam os senhores, fui morar em uma praça, cujo nome popular era Praça da Biblioteca. Exatamente naquela praça estava instalada a Biblioteca Municipal da cidade!

E ali, em contato com os livros e com os maiores autores infantis e juvenis de todo o mundo, abriu-se-me um universo sem tamanho!

A leitura transporta-nos aonde queremos ir, através da seleção dos livros que lemos.  Devorei tudo que podia em termos de leitura: literatura, história, geografia… Eu era um ávido leitor cotidiano, todos os dias pela manhã e à tarde, um universo sem tamanho à minha disposição. A leitura foi o instrumento que pavimentou minha estrada, referencial e passaporte para a vida, enfim, que me transformou em Escritor.

Estou muito emocionado; mas, não me sinto plenamente realizado, pois não me vejo no porto final. Nunca haverá o último porto. Qualquer porto que nós cheguemos é, só provisoriamente, o porto final. Dali, partiremos para outros voos, outras viagens. E minha viagem continuará através da produção literária.

Senhores acadêmicos, colegas, amigos, utilizei estas palavras e fatos para fazer referência à figura do meu querido pai, maior exemplo que tive na vida.  Nasceu do nada, de família do interior do interior da Bahia, era um homem de bem.  Com muita luta conseguiu um lugar ao sol… Já não está aqui. Partiu jovem, aos 58 anos de idade!

A meu pai, que tanto se sacrificou para atender uma reivindicação daquele menino renitente, ofereço este momento. À sua memória, meu pai! Onde você estiver, veja que a semente que ajudou a germinar e fertilizar eclodiu e gerou frutos. O fruto não é esta Cadeira que ora assumo na ATL, mas, a vida digna que me legou, pautada na responsabilidade e respeito à dignidade de todos que partilham nossa vida. Obrigado, meu pai, por tudo… (pausa) Obrigado, aos senhores, por ouvir este desabafo. É momento de muita emoção…

Segunda parte do discurso de posse. Panegírico a Eudoro de Souza:

Eudoro de Souza, patrono da cadeira 27 da Academia Taguatinguense de Letras, que ora assumo, nasceu em Lisboa, Portugal, em 27 de dezembro de 1911. Cursou a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Especializou-se em Filologia Clássica e História Antiga, na Universidade de Heidelberger, na Alemanha. Desenvolveu atividades docentes e de pesquisas na Europa, destacando-se seus trabalhos realizados em Portugal, França e Alemanha.

Em Portugal, iniciou a vida de escritor, que o transformaria num dos maiores expoentes da filosofia universal. Traduziu, direto do grego, a Poética de Aristóteles, publicado em Portugal, e que seria reeditado no Brasil, em 1966.             Em 1953 chega a São Paulo. Integra-se ao chamado “Grupo de São Paulo” — formado por intelectuais que vão se unir em torno da revista Diálogo e do Instituto Brasileiro de Filosofia. Exerce, ainda, atividades docentes na Universidade de São Paulo, na Pontifícia Universidade Católica, no Instituto Brasileiro de Filosofia e na Faculdade de Filosofia de Campinas.

Em 1955, muda-se para Santa Catarina, onde é um dos fundadores da Faculdade de Filosofia daquele Estado. Sete anos depois, por indicação de Agostinho da Silva, Darcy Ribeiro consegue trazer o mestre Eudoro de Souza para Brasília. Ou seja, em 1962, vem para a nova capital Federal, tornando-se um dos fundadores da Universidade de Brasília. Aqui, lecionou Língua e Literatura Clássica, História Antiga, Filosofia Antiga e Arqueologia Clássica, em cursos de graduação e pós-graduação. Sua especialidade em cultura clássica o transformou no estudioso helenista vivo mais citado do mundo. Contudo, mais do isso, sua formação universalista permitiu-lhe percorrer as vicissitudes do ser, desde o pensamento pré-socrático até as indagações da atualidade.

Em 1965 fundou  o Centro de Estudos Clássicos da UNB.            Publicou Dionísio em Creta e outros ensaios, em 1973.       Traduziu direto do grego As Bacantes de Eurípides, com introdução e comentários. Publicou em 1975 Horizontes e Complementaridade: Ensaios sobre a Relação entre Mito e Metafísica, nos Primeiros Filósofos Gregos. Um dos seus trabalhos mais conhecidos. Em 1978, publicou o livro Filosofia Grega. Em 1980, trouxe ao mundo acadêmico o livro Mitologia.

Já de algum tempo com a saúde debilitada, faleceu em setembro de 1987, aqui, em Brasília, deixando seu grande legado cultural ao Brasil.

Mas, como disse o próprio Eudoro de Souza: “Morre primeiro o homem humano, para renascer no desumano ou transumano e, depois, a morte deste desumano, para renascer no divino, no mito e na tradição, que é a sua subjetividade irredutível”. Ou seja, vai-se o homem, o elemento material; mas, permanece a sua subjetividade, o seu legado intelectual, a sua produção artística, filosófica e literária.

O próprio Eudoro de Souza informou-nos que o mito é a narrativa de um tempo, um fato ancestral exemplar ou paradigmático, que precisa ser lembrado e atualizado pelo rito. Os ritos são os lugares e tempos de reificação, de recriação de mitos. Exatamente o que realizamos neste momento. Esta solenidade é um rito que nos remete a um filósofo grandioso, para que seu exemplo de sabedoria e clarividência permaneça e frutifique entre nós. Frutos, refiro-me a algo que nascerá, crescerá e amadurecerá depois em novas gerações, através dos jovens sucessores da nossa sociedade. E estes reproduzirão, amanhã, parte do que agora realizamos para manutenção de tradições e realizações culturais daqueles a quem sucedemos. Ou seja, senhores e senhoras, a vida é um vai-vem ininterrupto de fatos, de experiências e de coisas boas e ruins. É o passar inelutável do tempo, deixando-nos com a sensação de vazio na mente ao descobrirmos que poderíamos ter feito, mas não o fizemos.

Ai de quem pensar que teremos nova chance para realizar o que não realizamos por medo, indecisão ou apego a coisas meramente materiais e do momento. A vida é um caminhar ininterrupto, cujo objetivo final é a partida eterna, o além. O homem quer viver mais; a criança, crescer, tornar-se adulto. Vivem, contabilizam com alegria o passar do tempo, festejam aniversários. Paradoxalmente, brindam a própria destruição — desculpem-me o mórbido pessimismo.

Então, senhoras e senhores, este é o perfil do escritor que nos serve de patrono e exemplo. O merecedor maior desta cadeira 27 da Academia Taguatinguense de Letras, porque a recebeu por merecimento mesmo depois da sua morte. Assumo, com a responsabilidade de honrá-lo no exercício do mister de Acadêmico. E um dia, também, com a minha partida (pois todos iremos um dia), será assumida, quem sabe, por algum desses jovens aqui presentes. Que reviverá feitos culturais dos ancestrais, como estímulo para prosseguir no ônus de dedicar-se à atividade cultural, num país em que os olhares públicos são pragmáticos e só se voltam para a concretude dos lucros e da geração de saldo positivo no balanço de pagamentos do país. Mas haverá, sempre, o reduto dos obstinados portadores da chama da leitura, da cultura e das artes, como meio de levar à compreensão da sociedade sua condição de vilipendiada pelas classes políticas descompromissadas, cujo objetivo maior tem sido se locupletarem das riquezas do próprio Estado; riquezas que construímos com trabalho e muito sofrimento. Se não, como nos referimos a um ex-ministro do Estado Federal, que, fora do comando do executivo e cassado pelo Legislativo, continua desfilando pelos gabinetes públicos ou a bordo de jatinhos particulares, oferecendo mundo afora as benesses do Brasil, como se nada tivesse ocorrido e permanecesse o mesmo Ministro de Estado?

Mas, senhoras e senhores, voltemos ao nosso patrono.

Eudoro de Souza foi muito mais que essa biografia lida no início da exposição, embora rica e vasta por si mesma. Conhecendo, de perto e ao vivo, o berço do pensamento clássico da Grécia antiga, tornou-se o maior helenista, ou seja, o maior conhecedor da cultura clássica grega em todo o mundo!

Entretanto, no que pese a dedicação aos estudos de uma sociedade do passado, nosso patrono sempre teve compreensão precisa do seu tempo. Sua interpretação da realidade sócio-cultural, empreendida na segunda metade do século passado, permanece nítida, e com validade estendida ao nosso século 21. Assim, dizia o patrono desta cadeira 27:

“Vivemos uma situação kafkiana, na qual somos possuídos pelos objetos que julgamos possuir. É o objeto que possui o sujeito e não o contrário!”. (Vejam, senhores, o que nos dizia Eudoro de Souza). “Estamos possessos das coisas que possuímos. As pessoas querem cada vez mais ter coisas. E cada vez, as coisas mais os têm. Nós somos muito mais possuídos que possessores ou possuidores das coisas que possuímos. Basta que ponham à venda um novo produto de consumo para que este se torne necessário, e nós fiquemos presos a ele. É o objeto que possui o sujeito, e não o contrário. Assim, nós estamos possessos das coisas que possuímos”.

É uma afirmação atualíssima, capaz de demonstrar a submissão do homem às coisas materiais, momento vivido pela sociedade, onde o ter suplanta o ser. Infelizmente e com tristeza, afirmo, mas não defendo, o homem vale pelo que tem e não pelo que é. Esta é a ótica predominante. Mas, se aceitarmos que o ter suplanta o ser a sociedade estará irremediavelmente condenada à coisificação, ao embrutecimento, à luta incessante pela busca de bens e objetos suntuosos. Simplesmente, porque o paradigma maior será o ter! A consequência danosa e irreversível (que inclusive estamos a ver) será o sepultamento da ética e das boas práticas morais. Será a mistura do privado com o público, com boa parte dos administradores públicos achando-se no direito, e até no dever, de apossar-se das riquezas da sociedade, acobertados na impunidade que nos acompanha desde tempos imemoriais.

Senhoras e senhores, prezados acadêmicos, as sábias palavras de Eudoro de Souza permanecem no nosso cotidiano.  Extrapolam a realidade da época e permanecem atuais. Ele próprio nos dizia, em outra passagem do seu legado filosófico, que não se corrigia um erro com outro erro; mas, com reflexão, porque só tendo conhecimento da realidade é que poderíamos extirpar o que existe de negativo. Só podemos negar, conhecendo a realidade.

Este é o desafio que se apresenta para a sociedade brasileira. O desafio de buscar a educação como meio de libertação. A educação como instrumento da realidade e formação para a vida. Educação, como elemento de libertação das amarras de um sistema econômico e social ultrajante, onde poucos se assoberbam da maior parte das riquezas. O Brasil, nação rica, admirada como depositária das maiores riquezas naturais da humanidade, tem um povo miserável, faminto; e forte ao mesmo tempo, por conseguir sobreviver em situações inóspitas, auferindo renda inconcebível para manutenção da própria vida humana.

Senhoras e senhores, presenciamos um momento ímpar na América Latina, e no Brasil, com o ressurgimento do populismo. Que escraviza politicamente as classes menos esclarecidas em troca de uma sensação, puramente psicológica, de que tudo está bem e melhorará ainda, com fé em Deus! Enquanto isso, servem, inocente e ingenuamente, a projetos individualistas e inescrupulosos dos controladores do poder.

Um dia, perguntaram a Eudoro de Souza para que servia a filosofia. E Ele respondeu: “Não serve para nada. Ela é que é servida! A filosofia não é qualquer coisa que se transmita do professor ao aluno, como os demais conhecimentos. Um professor de filosofia, continuou Eudoro, não ensina ao aluno; faz com que ele aprenda. E alertava: É preciso abrir os olhos para a verdadeira cultura e ela se expressa na palavra”.

Em relação à realidade humana, Eudoro de Souza afirmava que os tempos atuais eram diabólicos. E explicou: “Chamo diabólico dentro do significado da palavra em grego, que quer dizer separar. O que separa é o diabólico, o que une é o simbólico. E nós estamos vivendo uma época diabólica, onde tudo está separado de tudo. Ninguém está unido a nada. É uma época de atomização. Cada um vive cheio de si, o que significa um oco completo”. E continuou o mestre: “No cotidiano se vê uma vontade muito maior de separar, de dividir que de unir. A maior parte das pessoas não sabe o que diz ou diz o que não sabe. Conhecer muitas coisas não significa saber”. (Pausa). Deixo estas palavras para reflexão dos senhores.

Caros confrades, senhoras e senhores, uma questão sempre abordada pelos filósofos é acerca do conhecimento, em si, e da extensão deste conhecimento para além do seu detentor. Para nosso patrono, educar é trazer para fora. E nas suas palavras, disse-nos o seguinte: “Nós vemos tudo como construção e não como criação. Quando uma pessoa julga estar dizendo algo novo não faz mais que um novo arranjo dos produtos da destruição de uma coisa que já existia. Para mim, a única solução para a Universidade em geral, é que ela não dê o diploma; porque os alunos querem é o diploma; tendo o diploma eles estarão satisfeitos. Quando houver universidade que não tenha diplomas, aí eu acreditarei que seja uma universidade séria. Por que a esta altura, quem for às aulas é por interesse em ser e não em ter”.

Apresentamos uma síntese do pensamento e da vida de Eudoro de Souza, um dos filósofos mais cultuados e versados na cultura grega; mas, com incursões no estudo geral da condição humana, como sujeito do seu destino, numa sociedade pragmática e movida pelo ter, pelo isolamento dos indivíduos que a compõem, e que não interpreta a educação como uma forma de libertação, mas, ao contrário, como forma de controle do homem em prol de interesses dos detentores do poder político. À primeira vista, parece-nos referir-se diretamente ao Brasil, mas esta é a grande capacidade da filosofia: ser universal e total em suas elucubrações.

Encerro estas palavras; ínfimas, considerando o teor da importante obra do patrono da cadeira 27 desta Academia de Letras, que ora assumo. Que o legado do professor Eudoro de Souza seja o farol na minha escuridão intelectual. Que esta assunção como acadêmico se concretize como uma forma de contribuir com a sociedade do Distrito Federal e do Brasil.

Peço permissão para externar duas passagens dos livros, Memórias de um Coroinha, e do próximo, Era uma vez um Comunista,  ambos de nossa autoria:

Nada na vida é o porto final. Ao ser alcançado, passará a se constituir em porto intermediário, passagem para outro porto que será, transitoriamente, o final. A insatisfação natural do homem só termina com a morte. Lute pelos seus sonhos!

– Na minha pobre percepção, Felicidade é o viver. É beber água, a substância mais simples do universo. Não tem cheiro, cor nem sabor, mas imprescindível ao ser vivo. A felicidade pode vir das coisas simples. Pode estar aos olhos e diante das mãos, mas nem sempre percebemos. Quantos já confessaram que eram felizes e não sabiam?

Neste momento, caros acadêmicos, querida esposa e filho, prezados amigos, senhores e senhores, neste momento, para mim, Felicidade é a posse na cadeira 27 da Academia Taguatinguense de Letras!

Muito obrigado a todos.

 

         Saudação do escritor Ronaldo Mousinho a Astrogildo Miag:

Senhor Presidente da ATL Escritor J. Simões , distinto público. Tive a honrosa incumbência de recepcionar o novel-acadêmico Astrogildo Miag neste ato de investidura, o que farei de bom grado. A Constituição Federal determina em seu título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Cap. I, Art. 5º, incisos IV – é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato, e, IX – é livre a expressão e atividade intelectual, artística, cientifica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Caros confrades e confreiras, prezado público: O que é ser um intelectual, um acadêmico? Numa singela concepção, é estar em sintonia com a realidade sócio-político-cultural do seu tempo, com ela interagindo criticamente e buscando o crescimento humano, pessoal e coletivo. A cultura, que se iguala ao saber, é, segundo o Pe. espanhol Felipe Afonso Barcina ; “freqüentemente apontada como a mais elevada aspiração humana…única fonte de todo o bem e a raiz imortal de toda perfeição e felicidade”. É por meio do saber, sem dúvida, que o homem se identifica como ser cognitivo em relação aos demais viventes. Contudo, essa hierarquia não subsistirá se o manancial de conhecimento não for exercitado com ternura humanista e fraterna, sob pena de a natureza humana embrutecer-se e perder o elã divinal.

Onde podemos encontrar nossa natureza humana? Na filosofia, nas ciências e na arte, especialmente na arte poética, que são, para Tasso da Silveira “perfeitas antropofanias, desdobrando no tempo e no espaço todas as secretas dimensões interiores… por isto mesmo, a obra de arte diz muito mais que quis dizer o artista, é para ele revelação perpetuada nas formas de beleza o mistério último”. O homem é um ser filosófico por excelência, pois toda a sua vida está no aqui e agora, numa sublime perspectiva, disse Eudoro de Sousa, patrono do neo-acadêmico.

Vivemos um tempo de efervescentes descobertas, avanços em todos os setores do fazer humano e na revelação de ministérios. Tabus são questionados ou quebrados, dogmas são revistos, como, por exemplo, a recente publicação do achado científico-filológico, denominado o Evangelho de Judas; a cosmogênese e a antropogênese estão se desnudando, expondo surpresas e angústias milenares.

Diante de tudo isto, acadêmicos e intelectuais, não podemos ser apenas expectadores descomprometidos com nosso contexto histórico-cultural, mas partícipes ativos desse momento extraordinário. Requer-se ousadia e contínua inquietude. Não podemos, caros acadêmicos, nos alhearmos diante desta realidade instigadora, reduzindo nosso fazer literário a puro lirismo e mero sentimentalismo, ou ainda a manifestações personalistas e mornas, para não desagradar ou ferir brios.

O cidadão Astrogildo Miag:

Conheci Astrogildo Miag, epíteto literário de Astrogildo Regis Barbosa, em 2002, na grande Feira do Livro de Brasília. Naquele primeiro contato, já pude antever as virtudes do cidadão e intelectual no semblante sereno, mas, firme e confiante, e, com o desenrolar da amizade que as letras nos têm oportunizado, só tenho constatado o homem cooperativo, discreto e leal e de dignidade incomum que é Astrogildo Miag.

Natural da pequena e bucólica Remanso, na Bahia, Astrogildo Miag nasceu em novembro de 1955, filho de Raul Barbosa  de Adnólia Regis Barbosa , in memorian. Ele, ex-cabeleireiro e comerciante, e ela, das prendas do lar. Família humilde, desprovida de posses materiais, mas rica de honestidade e muita determinação para vencer os desafios que a dura vida lhes pôs à prova, fibra essa que souberam transmitir ao filho ora apresentado.

O jovem Astrogildo enfrentou muito cedo os desafios peculiares que a existência põe aos nordestinos. Foi alfabetizado e cursou o antigo Ciclo Ginasial em sua cidade natal, com destacada atuação e surpreendente disciplina em busca do conhecimento. Desejoso de prosseguir os estudos que a sua cidade não oferecia, Astrogildo arribou para Petrolina-PE, onde viveu na casa da tia Ana e do seu esposo Sebastião Alves, que muito bem o acolheram. Ali, iniciou o antigo Científico, e, dois anos após, sempre instigado pela determinação de crescer e vencer, segue para Salvador, onde concluiu o 2º grau. Submete-se ao vestibular para Ciências Econômicas, é aprovado e gradua-se em 1979 pela Universidade Federal da Bahia.

Por dez anos, como funcionário da antiga EMATER, prestou assistência ao produtor rural e suas famílias no sertão baiano. Àquela altura, o jovem cidadão Astrogildo Miag, com pouco mais de vinte anos, forjava sua vida nos duros embates com realidades muitas vezes miseráveis, o que o instrumentalizou para enfrentar os sucessivos desafios e galgar rápida ascensão profissional: Gerente Estadual do Programa de Desenvolvimento Rural Integrado ; Coordenador do Núcleo de Programação e Orçamento ; Assessor da presidência da EMATER e Assessor Técnico da Secretaria de Estado da Agricultura da Bahia, no governo Waldir Pires.

Com a mudança de governo, Astrogildo Miag retorna à empresa de origem, e, em 1990, decepcionado com a concepção retrógrada do serviço público, demitiu-se para atuar na iniciativa privada como produtor rural e comerciante. Frustrado em tal experiência, nove anos depois inicia o curso de Direito, ainda na Bahia. Em 2000, concorre ao concurso público na área fiscal-tributária, e hoje é Auditor Fiscal da Receita de Brasília. É casado com Célia Maria Ferreira Barbosa , com quem teve dois filhos: Ciro Ferreira Barbosa e Larissa Ferreira Barbosa , alunos do 3º grau, aqui presentes.

O Intelectual e Escritor Astrogildo Miag:

Astrogildo Miag assume neste momento a cadeira nº 27, cujo patrono é o luso-brasileiro Eudoro de Sousa, que chegou ao Brasil em 1953, fundou, com Darci Ribeiro, a convite deste, a Universidade Federal de Brasília, onde lecionou até 1986, quando faleceu. É tido como dos mais iluminados intelectuais pesquisador da cultura helenista no Brasil. Foi discípulo de Martin Heideger, filósofo metafísico que se debruçou sobre o sentido e a verdade do Ser. O empossando já é Membro Correspondente desta agremiação que hoje o recebe como Acadêmico titular, e cuja obra o credencia plenamente ao pleito.

Caro empossando, você ingressa nesse sodalício para servi-lo com sua inteligência, e consciente de que a luta pela cultura não deve ser jamais um devaneio elitista, mas uma ação de salvaguarda da dignificação da vida, como muito apropriadamente disse o confrade Guido Mondim, em solenidade como esta no HIGDF.

O intelectual e escritor Astrogildo Miag revelou-se ainda em sua juventude, quando cursando o 2º Grau em Petrolina-PE, sobressaía-se nos certames literários, e foi naquela oportunidade que o jovem estudante despontou como poeta. Foi como se naqueles primeiros passos já vislumbrasse a conquista da cadeira acadêmica que hora ocupa. Contudo, foi aqui em Brasília que Astrogildo Miag formalmente estreou na literatura. Ouçamos agora a leitura de dois poemas do poeta adolescente, do seu livro ainda inédito Nem só de pão vive o homem, pela aluna de Letras da Universidade Católica e estagiária da A.T.L Ester Chaves e pelo acadêmico e professor José Teixeira Pacheco…

 

Poesia

De Astrogildo Miag, em 1972

A poesia me pegou numa manhã triste

quando eu ainda não tinha nem tomado café.

Pediu-me e levantei-me.

A poesia pegou do lápis

do papel amarelo de jornal

pegou do povo

da rua

da sua história

e fez-se imagem.

Aí virei poeta.

Solidão

Por Astrogildo Miag, em 1973

A casa está vazia

todos se foram a divertir.

A casa está vazia

e eu cada vez mais triste.

Deitado

ouço a respiração

o compasso tênue

de um coração doente.

A casa está vazia

ouço apenas um silêncio enternecedor

que não me deixa ouvir nada.

A casa está vazia e sou triste.

É como se tudo me levassem

e me deixassem também vazio.

Três fatos marcaram a vida do escritor Miag, incentivando-lhe o agudo sentimento de rememória e o forte engajamento de sua obra: a origem pobre de um nordestino que venceu, a submersão de sua cidade natal,  Remanso, nas águas do Rio São Francisco, em consequência da construção da Hidrelétrica de Sobradinho, e a injusta prisão de seu pai durante a ditadura militar .

Tendo em vista nossa forte identidade existencial, seja em relação ao desaparecimento de nossas cidades originais por conta da construção de hidroelétrica, seja na dura caminhada em busca de nova identidade, permita-me, caro Miag, compartilhar com você, por meio de duas estrofes poéticas do poema Ode a Guadalupe, de minha autoria, o sentimento de perda que nos foi comum.

 

[…] Mas o progresso compulsório preludia,

A pretexto de construir uma hidrelétrica,

Devagarinho, inexorável te espreita,

Violentando tua vida ribeirinha

Como outra hecatombe diluviana,

Arrastando casas, templos, campos-santos,

Alagando sítios, fazendas, tudo enfim.

[…]

Adeus! Praças, largo, catedral,

Becos, ruas, avenidas,

Rio Parnaíba, Riacho da Pinguela,

Recantos de deleites.

Adeus! Fazendas, sítios, roçados.

Caminhos, veredas, picadas,

Quintais, jardins, mangais,

Últimas imagens guardadas

Na mente, alma e olhos pranteados.

                                                                                        A obra do escritor Astrogildo Miag (até 2006)

É romancista, contista e poeta. Sua ficção é memorialista e costumeira, enfocada no real e no fantástico. A poesia do empossando é engajada, telúrica e lírico-amorosa. O painel de uma época é revivido com extraordinária fidelidade em sua obra ficcional, expondo com inteligência aguda e realismo surpreendente o cotidiano do Brasil.

Miag é escritor que circunscreve sua obra no telurismo de sua urbe natal – Remanso e adjacências – e frequentemente projeta seu conteúdo em análise psicológica de seus personagens, aliada à comicidade e ironia, que muito lembra a Machado de Assis.

Outra particularidade surpreendente do ficcionista é a de criar tantos personagens cujos perfis são autênticas matrizes humanas, com toda a força dramática e vida própria que a trama exige. A mensagem social presente em toda sua obra também foi trasladada do cotidiano real para o ficcional. Avesso à erudição árida, prima pela clareza de estilo e vocabulário acessível ao leitor.

A estreia do escritor Astrogildo Miag deu-se em 2003, com o romance A Santa do Pau Oco, pela Guará Editora. É obra focada na realidade aguda do Brasil interior, expondo o cenário deplorável das administrações municipais clientelistas e corruptas. Tem por matéria-prima a terra, o povo e os costumes, onde a trama se desenvolve gostosamente célere, estimulada por intrigas em torno da tríade o padre, o delegado e o prefeito, capciosamente caricaturados. Tradições e lendas desenrolam-se em estilo pitoresco e anedotário, na pena criativa deste remansense que pereniza em sua obra a cultura de sua cidade e de seu Estado.

Em O Purgatório de Eduardo, romance, publicado em 2003, também pela Guará Editora, o autor incursiona pelo real fantástico, cujo palco é o purgatório, onde as almas hibernam em estágio purificador evolutivo. A “comédia humana” nordestina é exposta com pleno vigor, muita lucidez e humor, por quem a vivenciou e dela foi testemunha ocular. É resultado de relatos históricos emocionantes e inusitados de vida e morte cantadas nas calçadas das cidades do interior baiano.

Memórias de um Coroinha, romance, 2005, chancelado pelo FAC é obra memorialista de vivências marcantes da adolescência do autor, repercutindo vivamente em seu subconsciente adulto. O tempo da narrativa se volta a alguns meses que antecedem à inundação de quatro cidades baianas, incluída Remanso, por conta da represa da Hidroelétrica de Sobradinho. E o autor, mais uma vez, e de forma mais emotiva, alinhava o seu enredo em torno dos episódios: desaparecimento da Santa Padroeira de Remanso, por ocasião dos festejos e da despedida da cidade; desapropriação das terras alagadas; a pomposa e particular festa dos políticos; a doida Januária que se suicida no Rio São Francisco, doando sua vida pelo reaparecimento da imagem da padroeira; a inundação da cidade; o penoso processo de mudança da população; a vida dos personagens 30 anos depois; o reencontro do autor com dona Carlotinha, que não o reconhece; depressão do autor e o epílogo do romance ante a impossibilidade de reviver o tempo.

Memórias de um Coroinha é um contundente painel costumeiro, resgatado quatro décadas após, pela memória prodigiosa do escritor Astrogildo Miag, em estilo agradabilíssimo. Está na orelha do livro uma reflexão filosófico-existencial do autor sobre a Felicidade: A felicidade é beber água, a substância mais simples do universo. Não tem cheiro, cor, nem sabor, mas é imprescindível ao ser vivo. A felicidade pode vir das coisas simples. Pode estar aos olhos e diante das mãos, mas nem sempre percebemos e paradoxalmente, por vezes, brindamos a própria destruição.

Tem inéditas as obras: Nem só de pão vive o homem , poesia, Era uma vez um Comunista, romance, Felizes os convidados, contos, A revolução em minha casa, romance, e O Legado da loucura, romance. E asseguro às senhoras e aos senhores que a obra do empossando tem sido alvo de elogiosas críticas, aqui em Brasília, na Bahia e em outros Estados onde tem sido apresentada.

Finalizando, respeitosa mesa, caros acadêmicos e dileto público, permitam-me dizer uma breve prosa, muito adequada a altura de nossa digressão, para abrandar o ar formal:

“Creio estar molestando a assistência, mas não tenho relógio!

E um estudante irreverente gritou ao fundo:

– Mas nós aqui temos calendário!”.

Taguatinga, junho de 2006. Ronaldo Alves Mousinho, Cadeira nº15 da ATL/DF.


É baiano da velha Remanso, que desapareceu em decorrência da Barragem de Sobradinho. Na Escola Dom Bosco, professora Florinda Castelo Branco, consolidou o apego aos estudos; dali, ao Ginásio Rui Barbosa, de onde, como o povo diz, arribou em busca da formação educacional não possível em sua terra. Passou pelo Colégio Estadual Antonio Alves Filho/CEMAAF, em Petrolina, PE, e fixou-se em Salvador, BA, onde se diplomou em Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Bahia. Em 2001, mudou-se para Brasília, onde concluiu o curso de Direito pela Universidade Católica de Brasília. É Servidor Público e ocupa a Cadeira 27 da Academia Taguatinguense de Letras.

Iniciou na Poesia aos dezesseis anos. Escreveu contos e crônicas até abraçar o gênero literário Romance.

Publicou em 2003 A Santa do Pau Oco, que, segundo o jornalista Nilo Vaz, “é obra que a mão escreveu e a emoção ditou. O autor usa uma doçura persuasiva para atrair o leitor, lançando-o, vez ou outra, na condição de personagem, também. O autor mostra que sabe trabalhar com a ferramenta principal de sua obra: a palavra. Saber usá-las é um desafio. Nesta obra o autor não vem como promessa, mas pleno e realizado”.

Em 2004, veio O Purgatório de Eduardo, que, nas palavras do escritor Achel Tinoco, “é um passeio pelas calçadas das cidades interioranas brasileiras, onde, em noites enluaradas e calorentas, os vizinhos reúnem-se para contar e ouvir as mais emocionantes, estranhas e bonitas histórias de vida e de morte. Mais uma vez, o escritor leva-nos à cidade do fundo de sua alma e dá-nos de presente este lindo romance”.

Em 2005 entregou aos leitores Memórias de um Coroinha, relato da infância nos meses que antecedem a conclusão das obras da barragem de Sobradinho, que inundou quatro cidades, inclusive a sua própria. A intenção era fotografar a problemática da comunidade sob a sua ótica. O enredo baseia-se no desaparecimento da imagem da Padroeira e na desapropriação das terras que seriam inundadas pela barragem. Nas vésperas da grande festa de despedida da cidade, a imagem da Santa, ao retornar de serviços de restauração, é extraviada ao Estado de Mato Grosso. A partir daí, desenrola-se todo o enredo. O final surpreende.

Em 2007, edita seu quarto romance, Era uma vez um Comunista, ambientado em Salvador, onde o escritor residiu por mais de vinte anos. Aborda as mazelas que agridem o morador comum das grandes cidades. Mesmo relatando sofrimentos e dificuldades, o autor impregna a história de lirismo e humor, sua marca maior. Tendo como referenciais fatos do cotidiano brasileiro recente, o livro aborda questões de saúde pública, educação, segurança, habitação popular e preservação ambiental, direitos garantidos pela Constituição Federal e negados pelo cotidiano de um país, segundo o Escritor, vilipendiado pela corrupção, irresponsabilidade política e desapego da maioria das lideranças políticas com os interesses da sociedade.

Em 2008 apresentou aos leitores O Legado da Loucura, romance ambientado em Taguatinga, Distrito Federal. É uma história concretizada em um país irreal chamado Brasil. Mostra a hipocrisia humana e as mazelas dela decorrentes, através do relato da vida de um doente mental, personagem principal da história. Por se desenrolar em plena capital federal, à sombra de políticos capazes de tudo para obtenção e garantia do poder, é uma pérola de momentos e situações surrealistas. A vida do personagem principal passaria despercebida se o destino não lhe criasse situações tão inusitadas. Foi o que aconteceu com José de Arimatéia Gusmão, o Zé Besta, personagem principal, um demente na capital federal. De repente, com a morte, transformou-se em centro de uma comédia, que é a disputa por sua “herança”, flagrante da miséria e da hipocrisia.

Lampião, Governador de Brasília, editado em 2009, é o sexto romance de Astrogildo Miag. A imaginação do escritor não tem limites. Envereda agora pelo sertão nordestino, encontra o capitão Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, conduz até Brasília e o elege governador da capital. A marcha triunfal da Chapada Diamantina, na Bahia, até Brasília, é uma das mais irreais narrativas literárias, impregnada com a marca maior do escritor: humor e poesia. Segundo José Ferreira Simões, Professor, PHD em Educação e Escritor, “eu lírico, narrador, na simulação de um sonho, faz ressurgir Lampião, na Chapada Diamantina, com destino a Brasília, para combater o MST, implantar o Estado do Planalto Central e, secundariamente, impedir a transposição do Rio São Francisco. O romance entabula fatos picarescos numa sátira ao comportamento humano, especialmente no que tangue à mediocridade em relação à fama, fortuna e subserviência ao poder econômico e social. Lampião reaparece, sem mulheres no bando, mas detentor da fama de mito, o anti-herói que se torna herói. Como se não tivesse morrido, o cangaceiro se depara com o Brasil atual – situação em que ele está desatualizado, mas em nada mudou quanto às mazelas humanas: o puxa-saquismo, a corrupção, o machismo, a violência, a ambição/ganância, o levar vantagem, principalmente a financeira e a eleitoral. Acerca-se de assessores, seguidores e admiradores. Arrasta multidões. Por onde passa, provoca exasperações cômicas e ridículas, sempre se reportando ao que a História registra e ao que o folclore cultiva. Pelo que foi, em vida, ele ressurge em outra dimensão, mas com as mesmas caricaturas de cangaceiro e mal-feitor bem-feitor. Expõe o que há de pior na política, mas se rende a ela, elegendo-se governador de Brasília, numa constatação de que nem mesmo o “Rei do Cangaço” resistiu ao assédio do poder político. Tudo lhe é facilitado pela fama histórica que o tornou mito. Não deixando de ser o que era, causa medo, pavor, mas fica numa versão politicamente correta, faz um governo popular e honesto, mas resolve voltar à origem. É morto, nas mesmas circunstâncias históricas, segundo os relatos, e o sonho acaba”.

 

Em 2013, Astrogildo Miag apresenta o livro de contos O Homem que Morreu Cinco Vezes, onde reafirma a característica da sua obra: o irreal e o inconsciente apresentados com lirismo e humor, não raramente destituídos da razão e da lógica triviais. Neste livro, aborda a quimera e impotência do homem, a exemplo do beato Vivaldo de Jesus, que obra milagres a partir do equilíbrio e da preservação da natureza. Traz a crítica social em A guerra, disputa entre Brasil e Canadá pela hegemonia no mercado de pequenas aeronaves. E Os primeiros contatos com os macacos falantes, na Foz do Rio São Manuel, que só existem na mente do Escritor? O cavalo selado mostra que nem as pequenas comunidades salvam-se da violência; menos ainda as grandes cidades, a exemplo da não tão irreal História do carro vermelho. Sempre a bordo de histórias hilariantes, em O terremoto mostra o abalo sísmico do Haiti, cotejando-o com o abalo político ocorrido na capital federal, quando o governador teve o mandato cassado. Amarildo e Índio da Amazônia registra a história de artista mambembe, cuja atração principal era um jacaré com mais de cinco metros de cumprimento, que devorou o próprio artista em plena apresentação. E a paranoia de alguém só dormir sentado em vaso sanitário, de preferência nas casas alheias? Pois, O homem do sanitário é um dos personagens irreais de Astrogildo Miag, assim como Genésio, o come rato e outros. Relata até o nascimento do MST: “O batalhão de trabalhadores sem terra munidos de picaretas, enxadas e facões, bandeiras vermelhas simbolizando o sangue derramado, entra silenciosamente nas cidades à procura dos culpados pela mortandade de seus antepassados. Enquanto não os encontram, como tática de guerra, vão plantando acampamentos aqui, ali e acolá até o dia do juízo final”. Quem seriam os culpados e qual seria a mortandade? A resposta encontra-se em Os primórdios do Movimento dos Trabalhadores sem Terra. A interrogação acerca do título é inevitável e eis a resposta: cinco dos contos têm como conteúdo e tema principal a quimera de supostas mortes do escritor, distribuídas ao longo do livro. Daí, O Homem que Morreu Cinco Vezes.


Brasília, DF
1ª Edição 2013
246 p.

Apresentação

O homem que morreu cinco vezes é um livro de contos surreais. Aliás, surreal é uma das características da obra literária de Astrogildo Miag, capaz de criar e dissecar temas tão estranhos e inimagináveis como ressuscitar o lendário Lampião e elegê-lo governador de Brasília. Ou criar uma cidade-purgatório onde amigos e inimigos reencontram-se após a morte para depurar os pecados. Ou virar pelo avesso a morte, o velório e a herança material deixada por um deficiente mental, cuja riqueza transportava em enorme saco pelas ruas da cidade. Assim é a literatura de Astrogildo Miag: o abstrato, o irreal e o inconsciente apresentados com lirismo e humor, não raramente destituídos da razão e da lógica triviais.

Neste livro aborda a quimera e impotência do homem, a exemplo do beato Vivaldo de Jesus, que obra milagres a partir do equilíbrio e da preservação da natureza. Traz a crítica social em A guerra, disputa entre Brasil e Canadá pela hegemonia do mercado de pequenas aeronaves. E os primeiros contatos com os macacos falantes, na foz do Rio São Manuel, que só existem na mente do escritor? O cavalo selado mostra que nem as pequenas comunidades salvam-se da violência; menos ainda as grandes cidades, a exemplo da não tão irreal A história do carro vermelho.

margemSempre a bordo de histórias hilariantes, em O terremoto mostra o abalo sísmico do Haiti, cotejando-o com o abalo político ocorrido na capital federal, quando o governador teve o mandato cassado. Amarildo e o Índio da Amazônia registra a história de artista mambembe, cuja atração principal era um jacaré com mais de cinco metros de cumprimento, que devorou o próprio artista em plena apresentação.

E a paranoia de alguém só dormir sentado em vaso sanitário, de preferência nas casas alheias? Pois, O homem do sanitário é um dos personagens irreais de Astrogildo Miag, assim como Genésio, o come rato e outros.

Relata até o nascimento do MST: “O batalhão de trabalhadores sem terra munidos de picaretas, enxadas e facões, bandeiras vermelhas simbolizando o sangue derramado, entra silenciosamente nas cidades à procura dos culpados pela mortandade de seus antepassados. Enquanto não os encontram, como tática de guerra, vão plantando acampamentos aqui, ali e acolá até o dia do juízo final”. Quem seriam os culpados e qual seria a mortandade? A resposta encontra-se em Os primórdios do movimento dos trabalhadores sem terra.

Este é o retrato 3×4 de O homem que morreu cinco vezes. O retrato de corpo inteiro virá com a leitura do livro.

margemA interrogação acerca do título é inevitável e eis a resposta: cinco dos contos que compõem o livro têm como conteúdo e tema principal a quimera de supostas mortes do escritor, distribuídas ao longo do livro. Daí, O Homem que morreu cinco vezes, mistura de ficção e realidade de forma cômica e hilária do primeiro ao último conto.

  Pequena amostra dos contos que compõem o livro:

Ressurreição,

A guerra

O cavalo selado

Amarildo e Índio da Amazônia

Eis-me aqui, Brasília

Para onde vai a mais-valia

Chegada das chuvas

O homem do sanitário

Caso verdade

O homem que não…

Corcel II

Cotidiano

Silêncio

A injeção

A comunhão

A seca

Terremoto

Ode aos cinquenta e um

MST, os primórdios

O retorno

A história do carro vermelho

Passar uma tarde em Itapuã

O juiz e o delegado

A hemorragia

Primeiros contatos com os macacos falantes

O duelo

O legado

Os milagres do beato Vivaldo de Jesus

A chegada de Lampião em Ibotirama

  ***

Ressurreição

 

                 Primeira morte 

Não sei o que me leva a inventar histórias inusitadas, a exemplo de afirmar que já morri muitas vezes. Minha primeira morte aconteceu em um dia chuvoso, sol encoberto por densas nuvens. Cheguei do trabalho cansado, cabeça pesada frente a tantos problemas. Taciturno, almocei. Pedi à mulher que me acordasse às 14:30h. E fui cochilar, como sempre faço após o almoço. Acomodei-me bem; tempo frio, logo adormeci. Bem mais tarde, acordei e não gostei. A mulher não me chamara e, certamente, já me atrasara para compromisso importante. Insatisfeito, como estava, só de cuecas, levantei-me e desci as escadas ao térreo da casa, onde a mulher cuidava de afazeres domésticos. De costas, enquanto cantarolava conhecida música, passava amaciante e ferro quente em algumas peças de roupa. De longe mesmo,, falei-lhe: Não me chamou, não foi? Não respondeu; continuou os afazeres como se nada ouvisse. Repeti a pergunta, que permaneceu sem resposta. Aproximei-me. Por trás, taquei-lhe um beijo no cangote, ou seja, no pescoço. Não reagiu; permaneceu como se não a tivesse beijado. De repente, assustou-se e disse:

— Esqueci de acordar Nildo!

Aquela afirmação causou-me estertor e choque. Que acontecera comigo? Por que a chamei e não me ouviu? Beijei-a e não me sentiu? Um calafrio desceu-me o corpo. Meu Deus, será que eu…

A esposa subia as escadas; eu a segui. Entrou no quarto após abrir a porta bem devagar. Acompanhei todos os seus atos. Devagar, sussurrando, dirigiu-se ao meu corpo inerte sobre a cama…

— Já está na hora, olha a preguiça… Acorda. Não está na hora, não?

Repetiu o chamado. Não resisti; senti as forças desfalecerem, arriei ao chão. Apaguei-me completamente. Sabe quando despertei? Quando ela pegou meu corpo, na cama, sacudiu e sacudiu com força…

— Que sono pesado é esse? Acorda!

A insistência foi tanta que o espírito flutuante retornou, reencontrando o próprio corpo. O tênue sopro da vida que expirara em meu ser estressado, retornou. Fui tomado de alegria desmedida. Abracei e beijei aquela mulher que tanto amava, agora com mais certeza. Feliz, sem entender, perguntou-me as razões para tanta alegria. Respondi ter ela me ressuscitado, trazido de novo à vida. Além de não acreditar, achou que zombava da sua pessoa, cerrou a expressão e desceu aos afazeres. Ainda pedi que voltasse, explicaria melhor, mas, em vão…

Até hoje não lhe falei ter sido minha primeira morte, súbita, nem eu sei em decorrência de quê. Depois, morri mais quatro vezes. A depender do desenrolar dos fatos, até o final deste livro posso relatar algumas das outras mortes. Mas, só se faltar assunto para concluí-lo, entendeu bem?

 ***

 2.º Conto:

A Guerra

 

O Jornal da madrugada noticiou com estardalhaço a guerra comercial. O brasileiro sonolento, mais de uma hora da manhã, recolheu-se assustado. A mulher acordou do sono de justo e ele, o marido, falou-lhe:

— Parece que vai ter guerra.

A companheira não entendeu. Ajeitou a touca na cabeça, virou de lado. O homem insistiu:

— Parece que vai ter guerra.

— Você está doido ou sonhando?

— Nem dormi ainda. É guerra mesmo.

— No mundo de hoje não precisa ter guerra. Basta apertar um botão e morre todo mundo.

— Vai ter guerra, sim. Vai ser o Brasil e o Canadá.

— Se fosse pelo menos com a Argentina. Nunca ouvi falar na seleção do Canadá.

O homem não gostou da observação:

— Agora quem está sonhando é você. Não falei de futebol. Falei de guerra!

— Me deixe, quero dormir. Assisti à novela e não vi nada dessa guerra.

— Novela não tem nada a ver com guerra. Guerra sai é no noticiário.

— Na novela pode sair em edição extraordinária, sim.

— O Canadá já vai mandar um avião de guerra chamado Bombardier, diz que custa uma fortuna e voa até debaixo d’água.

— Então não é avião, é navio!

— É avião de guerra, voa no escuro. Levanta vôo em cinco metros de pista.

— Esse avião vem fazer o quê, aqui?

— Não disse que era guerra? O Brasil vai mandar um avião que a Embraer está vendendo até para os Estados Unidos. O repórter disse que era mais veloz, menor e mais econômico que o do Canadá.

— Então é guerra mesmo.

— O Canadá já suspendeu até a compra de carne do Brasil.

— O Brasil vendia carne ao Canadá?

— E muita! Ia de navio, congelada. Só de filé mignon tem não sei quantas toneladas no porto de Santos. Como eles não vão comprar, quero ver o que vai ser feito dessa carne.

— Dá aos pobres.

— Filé mignon de graça pra pobre?

— Melhor que jogar fora.

— É mais fácil fazer ração pra bicho que dar aos pobres. Até eu queria experimentar filé.

— Com esse negócio de guerra pode estar envenenado.

— Justamente isso! A guerra é por causa de uma vaca louca. Nunca vi vaca louca. Mas foi ela.

— Agora foi que deu…

— A guerra é por causa dessa vaca. O Canadá disse que o Brasil mandou uma vaca louca pra lá. E essa vaca está fazendo um estrago.

— Será que vaca louca é igual a cachorro doido? Se cachorro sai mordendo, vaca vai sair dando chifrada.

— A vaca fica tonta como se estivesse bêbada. E o pior, pega raiva em tudo que é bicho vivo, até no homem. O Canadá vai querer dinheiro pra cobrir o prejuízo.

— E vai ter guerra mesmo?

— Se for do jeito que a televisão falou, já começou!

— Quem falou foi Galvão?

— Foi não.

— Então não vai ter guerra nenhuma. Só confio no Galvão.

A mulher virou-se de lado para dormir. O filho ainda não chegara da rua. Se tivesse guerra ele seria chamado? Pediu a Deus que não deixasse. O marido espirrou forte. Assustou a mulher:

— Me sujou toda…

O homem soou o nariz. Levantou-se, foi à janela. O som da barraca de bebidas tocava música eletrônica a todo volume. O homem pensou: “Vai ter guerra e o povo bebendo e satisfeito desse jeito?”. Retornou, foi ao banheiro. A campainha tocou, era o filho. Abriu a porta, o rapaz entrou. O pai perguntou:

— E a guerra?

— Ficou lá. Disse que vem mais tarde.

O pai não entendeu. Perguntou novamente:

— E a guerra?

— Já disse. Vem mais tarde. Ficou com Tetê e Fafá.

— Quem?

— Larissa, pai; quem poderia?

— Eu perguntei pela guerra!

— Que guerra?

O pai não respondeu. Alguma coisa estava errada. Resolveu deitar-se. Pediu a Deus que no outro dia já tivesse acabado a guerra. Admirou-se: — Guerra num tempo desses?

Apagou a luz do corredor e foi dormir.

 ***

 4.º conto:

Amarildo e Índio da Amazônia

            Um dia, chegou à Taguatinga, Brasília, Distrito Federal, um artista mambembe cuja maior atração era um jacaré-açu. Comandado pelo domador, nordestino amorenado, que usava peruca de longos cabelos pretos e se apresentava como “O Índio da Amazônia”, capaz de falar com qualquer espécie de bicho, até com um jacaré da Amazônia. Acabava de estacionar o velho carro açodado pelo tempo e pelo poeirão do centro-oeste. Atrás, reboque mal conservado transportava o grande animal de inteligência invulgar, dizia, coberto unicamente por um toldo de lona. Logo, os curiosos acercaram-se do veículo exatamente como queria Índio da Amazônia. Que jacaré!, exclamavam. Não é Jacaré, respondia outro; parece uma ariranha, lembrava um terceiro. Ariranha deste tamanho e com esses dentões?

E juntando gente…

Até quem detestava artista de rua, e presumindo ser um daqueles que corriam o “chapéu” em troca de mágicas mentirosas, aproximou-se para ver do que se tratava.

— Um bicho da Amazônia?

E engrossava o público do bicho encantado, que, àquela altura, ninguém tinha certeza do que fosse. Até o marreteiro que desafiava quem se habilitasse a derrubar dois maços de cigarros com uma só bolada para ganhar dez reais por um de aposta, perdeu a clientela. Que bicho é esse, perguntou um balconista. Dizem que veio da Amazônia, respondeu o vendedor de CD pirata enquanto guardava seu estoque ilícito, preparando-se para também prestigiar a novidade.

Alguém teve a iniciativa, talvez um concorrente prejudicado, de ir ao módulo policial, ali mesmo na chamada Praça do Relógio. Até um atirador de facas — lançava lâminas em jovem morena, sapatos altos, que passavam a centímetros do rosto — prejudicado com a chegava do tal bicho, pediu aos policiais que averiguassem o que ocorria adiante. Como argumento disse ter ouvido boato que um criminoso foragido da Amazônia trazia um peixe-boi para apresentações públicas. E peixe-boi, em vias de extinção e protegido pelo governo, não podia submeter-se à exploração pelo homem! Um dos policiais foi mesmo averiguar, e lá ficou. Um segundo foi saber notícias daquele, e não voltou. Logo, o Posto Policial estava vazio, todos no trabalho de averiguação da ocorrência.

 

Finalmente, Índio da Amazônia descobriu o grande animal que trazia no reboque. O povo se assustou. Meu Deus, o que é isso! Deve ter vindo da Austrália, com certeza é um crocodilo de água salgada! Mas ele diz que é do Amazonas!

Índio e seu ajudante conduziram o reboque até o centro da praça. Centenas de pessoas que iam e vinham no calçadão do outro lado da avenida, submetendo-se ao perigo de atropelamento, atravessavam a pista só para ver a novidade. O grande animal foi mostrado à população. Era mesmo um jacaré-açu, gigantesco, dentes saindo pelos cantos da bocarra, olhos miúdos no meio da cabeça. Grande rabo musculoso, tronco mais grosso que de um halterofilista. O couro do animal confundia tom esverdeado e cinza, impressão de sujeira, couro mesmo de jacaré. Que diabo é isso, perguntavam.

— É um monstro das águas, o maior anfíbio da face da terra. Capaz de torar um homem de uma bocada só! Todo mundo viu na China quando um jacaré arrancou o braço de uma pessoa só com um movimento da cabeça. E ainda ficou com o braço na boca, exibindo como troféu! Todo mundo viu o Jornal Nacional mostrando a foto do bicho com o braço na boca. E só foi morto porque o Exército foi chamado e deu um tiro de canhão no pobre animal!…

[…]

 

O povo chegando. Índio da Amazônia falando do animal. O ajudante descobrindo o bicho, que não despertava do torpor da espreita. Expunha o animal aos olhares. Índio, sabido, aguçava a curiosidade…

— Este, meus amigos, é o maior animal de todos os tempos nascido no rio Amazonas! Vocês já ouviram falar do rio Amazonas? Pois, o Amazonas nasce lá no Peru, corta vários países e termina no Brasil. Aqui, no Brasil, é onde apresenta as maiores profundidades. É água que não acaba mais! De tão profundas, navio sai do mar e desemboca diretamente no rio trazendo de tudo da Europa e da América do Norte, principalmente turistas que se encantam com as belezas, com os animais e com as índias, que ninguém é de ferro. Pois, nessas águas do rio Amazonas é onde mora este gigante. É um jacaré-açu, tem quase cinco metros de comprimentos e quinhentos quilos de peso!

O povo admirou. Quinhentos quilos?

— Quinhentos quilos, sim! Se não fosse proibido matar este animal, uma vez morto, daria para alimentar uma família de quatro pessoas durante toda vida!

É mentira! — expressou alguém do povo, protegido pelo anonimato. — Mentira não, eu provo. Chegue aqui perto…

O incauto não se habilitou a chegar, doido não era. E o homem continuou no relato antecedente à apresentação do grande jacaré-açu…

— Este animal, senhoras e senhores, veio do leito do maior rio do mundo, com um volume de água que vocês nem imaginam. Comparando o rio Amazonas, este lago Paranoá, que vocês tanto amam, não passa de uma poça de água de chuva. O Amazonas é tão profundo que cobre dez torres de TV, o lugar mais alto de Brasília! Foi nesse grande rio que aprendi a nadar quando era menino e onde nasceu esta pequena amostra do grande jacaré-açu, que me acompanha desde que nasceu.

— É mentiroso mesmo! — manifesta-se a mesma voz.

— Mentira? Quem sou eu para negar as minhas origens? Nasci nas matas do Amazonas. Já fui picado e quase engolido duas vezes pela grande cobra sucuri, conhecida também como anaconda. Lutei para não morrer. Como última alternativa, enfiei meu canivete suíço, que ganhei de um turista, sabe aonde, no cu da grande cobra, pois não conseguia furar o couro da danada. Ela nem sentiu cócegas! Deus me deu mais um pouquinho de forças, e tive a felicidade de acertar o olho da bicha! E foi aí que afrouxou o aperto e recolheu a bocarra que já se preparava pra me engolir. As marcas estão aqui… — e mostrou um rasgo na barriga, que alguém, da platéia, afirmou ter sido furada de faca. Índio da Amazônia aproveitou o ensejo e continuou o discurso preparatório…

— Faca não penetra no couro de bicho grande e velho da Amazônia. Só mata se entrar no olho. Aliás, nem matar mata; mas, a dor é tão grande que o animal se apavora, larga a presa e foge para a floresta. Se amofina com a dor e com a cegueira até morrer. E essa cobra que recebeu minha canivetada no olho foi encontrada, quatro dias depois, enrolada na margem de um córrego, já morta. Sabe quantos metros media? Quantos metros? Alguém quer arriscar? Pois vou dizer: a bicha media quinze metros de comprimentos! E podem acreditar, não era a maior que morava naquele rio. Na mesma semana, outra sucuri engoliu de um só bote um cavalo que bebia água no córrego. O coitado lutou, mas acabou dominado e engolido pela bicha, conforme relato do vizinho do meu primo, também índio, lá no Amazonas. Então, quero dizer a vocês que tudo lá é grande, assim como esse jacaré que deve ter mais de cinco metros…

O ajudante já abria a grade do reboque que transportava o animal. O povo afastou-se amedrontado. O animal abriu os olhos pequenos no meio da grande cabeça. Que feio! Parece um animal pré-histórico, pensou alto uma balconista atraída pela curiosidade. Índio aproveitou o gancho…

— E é mesmo um animal pré-histórico! A família desse bicho é do tempo dos dinossauros. Não morreram com a grande explosão do meteoro sobre a terra, há milhões de anos, porque boa parte da espécie estava debaixo d’água e resistiu ao grande impacto. Depois, com a mortandade dos dinossauros, sobrando comida, conseguiram sobreviver.

Finalmente, o ajudante abriu a primeira porta e o animal despertou do torpor. Era realmente majestoso. Cabeça grande, tronco poderoso, dentes à mostra e um rabo imenso, pés desproporcionais ao corpo. Deu os primeiros passos, sambando, dançando… E o povo correu; quem era doido de ficar? Índio pediu calma…

— Este animal, apesar de grandioso, não representa perigo. Cresceu praticamente comigo e me obedece até a morte!

O povo não acreditou; permaneceu afastado. Era o momento mais difícil da apresentação. Índio foi incisivo.

— Vocês sabem qual a razão de estar aqui, eu, meu ajudante e este animal cujo nome é Amarildo? Saímos de longe, da fronteira da Venezuela e da Guiana Francesa para esta querida Brasília, capital do meu Brasil, para apresentar a arte animal na pessoa de Amarildo, jacaré-açu que meu pai capturou ainda filhote no grande rio Amazonas, e me doou de presente. Toma, meu filho, ensina ele a falar. Só não consegui, meu pai, ensinar este animal a falar; mas o ensinei a fazer coisas que muitos de vocês não sabem fazer ainda, mas podem aprender com Amarildo.

Assumindo ar solene, reverenciou o público…

— Com vocês, Amarildo, o maior jacaré-açu ainda vivo, diretamente do Rio Amazonas para vocês de Taguatinga, de Brasília e do Distrito Federal! Antes, porém, da apresentação, um pequeno intervalo para nossos comerciais.

Imediatamente, o ajudante pegou uma cesta de vime e caminhou ao povo pedindo ajuda para manutenção de Amarildo, que pesava quase quinhentos e comia, todo santo dia, com chuva ou com sol, trinta quilos de peixe sem cabeça, e ainda bebia, no lugar de água, dez litros de leite integral. O gaiato do meio do povo reclamou.

— Eu sabia que isso ia acontecer!

Índio da Amazônia fez não ouvir. O ajudante coletava de moedas a notas de cinco reais. Amarildo voltou ao torpor, ainda na jaula, apenas a cabeça à mostra. Minutos depois, recolhidos várias cestas de dinheiro, Índio convocou Amarildo para as apresentações:

— Com vocês, diretamente da Amazônia, Amarildo, o maior jacaré-açu de todos os tempos!

O ajudante levantou a última grade e o animal ultrapassou as fronteiras do reboque. O povo se afastou. Índio pediu que não tivessem medo, Amarildo era educado e o obedecia até a morte. O animal caminhou faceiro sobre o calçadão e parou no meio do espaço, esperando as ordens do domador que, imediatamente, lhe enfiou uma sardinha congelada na boca. Depois, convocou Amarildo ao primeiro número, demonstração da grande força da mandíbula do majestoso animal. Retirou do veículo tora de madeira, dez centímetros de diâmetros, mostrou à plateia a madeira de lei, bateu no chão…

— Os senhores verão agora, inédito em todo o mundo, Amarildo quebrar este mourão de aroeira, a mais dura madeira de lei, utilizada na feitura de curral para boi. E vai quebrar de uma bocada só! — Girou a madeira, mostrou a todos… — É agora, Amarildo, ou não ganha o peixe!

Lançou o mourão, Amarildo abocanhou e partiu em duas partes. O povo exclamou admiração! Que força! É do Amazonas mesmo. Viva Amarildo! Bateram palmas. Índio animou-se ante a possibilidade de ganho alto. Debruçou-se na frente de Amarildo e enfiou a cabeça entre os dentes do animal! OOhhh!… Exclamou a platéia, agora mais solícita. O ajudante correu a cesta e catou mais donativos, Índio sempre lembrando ser a manutenção de Amarildo caríssima! Não poderia passar fome, pois comeria tudo que encontrasse pelo caminho. Lembrou já ter Amarildo mastigado uma espingarda calibre doze pensando ser um peixe, devido ao formato da espingarda! O povo gargalhou e o ajudante passeou recolhendo mais donativos. Inesperadamente, Índio retira da cumbuca um objeto envolto em couraça escura. Sabem o que é isso? — perguntou. O povo nunca vira o tal objeto e o domador de jacaré prosseguiu.

— Vocês estão vendo uma pedra de granito, um dos minerais mais duros que se conhece — e mostrou o granito. Imaginem o esforço para um homem quebrar este granito com picareta, marreta ou outro instrumento de força! Aliás, dois homens gastam um dia inteiro para dividir em dois pedaços, só em dois, este bloco de granito. Com Amarildo, este majestoso jacaré do Amazonas, é diferente. É capaz de quebrar esta grande pedra, forjada pela natureza há milhões de anos, em questão de segundos. Querem ver? Estão duvidando porque não conhecem o poderio deste animal, o maior e mais forte que já nasceu no rio Amazonas. Mas, tem um porém… Esta pedra é granito. Granito é muito caro! Sou um pobre índio que nada tem nem se preocupa em juntar dinheiro. Meu objetivo na vida é apenas angariar o suficiente para alimentar Amarildo. Então, não posso, de maneira alguma, demonstrar pra vocês que Amarildo é capaz de quebrar este bloco de granito em um segundo apenas, a não ser… Vejam bem, não estou exigindo; mas, se quiserem, de boa vontade, repor o valor desse granito, aí sou capaz de pedir a Amarildo que estraçalhe esta pedra magistral em dois segundos! E quem colaborar viverá o grande espetáculo da terra agora!

Logo o ajudante correu a cesta e recolheu o restinho de dinheiro que cada um reservara para almoçar ou pagar o transporte de volta para casa. Queriam mesmo era ver Amarildo estraçalhar a pedra nos dentes. Dinheiro recolhido, Índio agradeceu solenemente…

— Meus amigos e minhas amigas, agradeço a piedade e a boa vontade. Não queria falar para que não ficassem com medo nem suspeitassem, jamais, de estar pilheriando; mas, Amarildo, este majestoso animal, tem uma doença congênita. Já levei a todos os veterinários, pais de santos da floresta e até mesmo a médicos de gente, e não descobriram a causa do grande mal de Amarildo: Seus dentes crescem quase um centímetro por dia! Por dia, estou repetindo. E a única forma de impedir esse crescimento sem limites, meus amigos, é fazer Amarildo mastigar concreto todo dia! Como não temos concreto, pois não somos donos de concreteira, a forma mais viável de fazer Amarildo mastigar uma pedra dura todo dia é oferecer granito, que pode ser comprado nas casas especializadas, embora custe uma pequena fortuna. Então, muito obrigado a quem colaborou para mais um dia de saúde deste animal. Obrigado mesmo! Se entre os senhores alguém que tenha chegado depois quiser colaborar, meu ajudante passará novamente com a cesta para receber seu donativo.

O ajudante voltava com a cesta cheia de moedas. Eram os últimos tostões que Índio arrancava do povo, já impaciente para ver  o grande animal, o maior jacaré do mundo em ação!

— Então, queridos amigos de Brasília, reunidos nesta bonita cidade de Taguatinga. Neste momento, entrego a um de vocês este bloco de granito para que ofereça a Amarildo. Quem se habilita? — Ninguém se habilitou, óbvio. Depois de alguma insistência, concluiu… — Sendo assim, em decorrência do grande respeito e do amor de vocês a este gigante do Amazonas, eu mesmo, Índio da Amazônia, comandarei o espetáculo inesquecível de Amarildo esmagar a grande pedra de granito nos dentes!

O povo esperou o momento mais solene, cada um querendo ver de melhor ângulo. O ajudante pegou de um lado, Índio sempre à frente, conduziram a pedra até Amarildo. O animal parecia não querer participar do espetáculo e arreganhou a boca para atacar o homem que, imediatamente, colocou a pedra no chão e retirou do bolso do avental um peixe congelado e lançou para deleite do jacaré.

— Vejam o sofrimento de Amarildo. Certamente os dentes já cresceram tanto que ele é obrigado a ficar com a bocarra aberta. Obrigado pela colaboração de todos. Após mastigar aquela pequena sardinha, Amarildo vai estraçalhar o grande bloco de granito, mais duro que concreto!

Como se entendesse a preleção, o animal retornou ao bom humor. Boca aberta, esperou Índio depositar o peso sobre sua cabeça — do jacaré. Imediatamente, girou, aparou o granito no ar e fez crac, dividindo-o em duas partes, uma para cada lado da boca! O povo vibrou. Bateu palmas e deu vivas ao grande animal!

Imediatamente, Índio levou a mão à algibeira em busca de peixe congelado. O jacaré esperava a retribuição entendendo ter cumprido a tarefa. Olhou Índio. Esperou a contrapartida. Índio remexia nos bolsos da calça, no bolso do colete, procurou a capanga… Perguntou ao ajudante onde estava a capanga. O ajudante respondeu não ter pegado a capanga.

— Cadê a capanga, lástima? Cadê a capanga?

Amarildo olhava firme esperando a retribuição, pois estava com fome, quase vinte e quatro horas sem comer gororoba consistente. E nada de lhe ser oferecida a sardinha. Índio procurando a tal capanga onde costumava guardar as sardinhas. Não encontrava a capanga nem as sardinhas. Diabo dessa capanga! E a sardinha, ajudante? O ajudante informou não ter visto; procurara nos lugares próximos e não encontrou nenhuma sardinha. De duas, uma: ou se perdera na viagem ou acabara mesmo!

Amarildo impaciente, olhar fixo no Índio. O povo torcendo para que encontrasse logo as sardinhas, e nada. Índio amarelou. Quis correr, o povo correu primeiro. Mesmo já se afastando, muitos ainda viram quando o portentoso animal, quinhentos quilos, dentes enormes, mais de cinco metros de cumprimento, partir resoluto em busca da sardinha a que tinha direito. Como Índio não ofereceu o peixe, Amarildo abriu a boca, suspendeu o domador e, crac, dividiu o corpo em dois pedaços!…

Quando a polícia atendeu ao chamado só encontrou a parte das pernas de Índio da Amazônia. Após o banquete, Amarildo, devagarzinho e cauteloso como todo jacaré, sentiu cheiro de água, encontrou um bueiro sem tampa, passou a cabeça, passou o rabo, e, pelas galerias pluviais, ganhou as águas do Lago Paranoá. Os jornais do Brasil estamparam manchetes com o acidente, que aconteceu no final do século passado. O governo do Distrito Federal, depois de muita insistência da população proibiu apresentação de animais em circos e parques de diversão, sob pena de prisão e ação penal por maus tratos aos animais. Esqueceram, entretanto, de proibir a submissão do próprio ser humano ao perigo, como ainda acontece nas praças públicas, a exemplo dos atiradores de facas que arrancam das bochechas de mulheres cigarros e mais cigarros. Não morrem por um triz.

Amarildo nunca mais foi visto. De vez em quando, age no Paranoá quando algum banhista afoito desaparece nas águas profundas do lago sem deixar vestígios. Nem o cadáver é encontrado. Certamente proeza de Amarildo, o maior jacaré que já se viu. Como dizia Índio, mais de cinco metros, quinhentos quilos, capaz de torar um bloco de granito com uma dentada…

Engolir um bicho homem, então, foi até fácil…

 ***

O homem do sanitário

            Segunda morte

 

Vivia pelas ruas, de porta em porta; bate e espera. Se não aparecer alguém e estando aberta a porta, entra sem permissão, não sabendo estar cometendo crime de violação de domicílio, tipificado no Código Penal. Quando alguém o atende e pergunta-lhe o que quer, a resposta é automática: “Um dinheiro pra comprar pão, pois estou com fome e não comi nada hoje”. Ante a negativa, declina o verdadeiro objetivo da abordagem:

— Então deixa eu usar o sanitário.

Muitos o deixavam entrar, com pena. Afinal, apertado, na rua, sem lugar adequado, pedir para usar o sanitário (a privada ou a sentina, nomes antigos) é como implorar um copo d’água. Quem haveria de negar água, ainda mais a um senhor de certa idade?  Pois, a pessoa de boa fé que fizesse a caridade sofreria as consequências. O dito cujo se trancava no banheiro e não se propunha sair durante todo o dia. Após tentativas infrutíferas, geralmente deliberavam arrombar a porta do reservado e grande era a surpresa: o homem dormia sentado no vaso sanitário. Dormir sentado no vaso era um transtorno obsessivo. Como era pobre e naquele tempo pobre não tinha direito a sanitário privativo em casa, a chamada privada, o homem saía em peregrinação por um momento de descanso.

Ficou conhecido. Quando apontava na rua, gritavam: “Lá vem o homem do sanitário. Fecha a porta!”. Logo, a voz suplicante anunciava… Ô de casa! Uma caridade por amor de Deus… Quem é, perguntavam. Um pobre largado da vida, e com três filhos pra criar, lamuriava-se. A dona de casa abre a porta. Pois não, senhor…

— Uma caridade. Nem que seja um pedaço de pão.

— Acabou.

— …de beiju.

— Acabou também.

— Um ovo.

— A galinha não pôs ainda.

— Então me dê um copo de água.

Como negar o copo com água? A mulher entrou em busca da água; o homem escorregou pelo corredor lateral direto ao sanitário. Entrou e fechou a porta. Ao sentar, murmurou… “Meu Deus, já estava cansado. Dois dias sem dormir…”.

A mulher retornou com a água, desculpando-se…

— Não está muito fria, não. Enchi o pote agora. — Olhou em volta. — Onde esse homem se meteu? Parece que arribou no mundo? Ei, tome a água!

Nem sinal do sedento e tudo volta ao normal. Volta ao trabalho, precisava terminar a costura de uma camisa. O tempo passa. Quase meio dia. A filha retorna da escola. Depois de toda a manhã no colégio, banheiros de uso coletivo e nem sempre em boas condições de higiene, precisava ir ao sanitário. Encontra a porta fechada. Empurra. Fechada mesmo. Volta. Muda a roupa, recolhe a farda ao guarda-roupa. Volta ao sanitário, empurra a porta. Continua fechada. Pergunta…

— Mãe, tem alguém no sanitário?

— Ninguém.

— A porta está trancada por dentro.

— Deve ter sido o vento; empurre com força.

— Mais força, só se derrubar. Por dentro fecha com ferrolho? Vento nenhum sabe trancar ferrolho. Não entrou ninguém aqui?

A mãe para, mira o telhado para se lembrar…

— Por aquela porta não entrou ninguém. Só um homem me pediu água. Vim buscar a água, mas não o encontrei mais.

A filha arregalou os olhos: — Mãe, era ele! O homem!

— Era homem mesmo, ora.

— Era o homem do sanitário!

— Não é possível!

Correram ao sanitário e bateram na porta: — Tem gente aí? — Sem resposta. O homem certamente dormia o segundo sono. Gritaram por socorro. A vizinhança atendeu: O que foi? O homem do sanitário! Se trancou aqui em casa.

— Vou chamar alguém pra arrombar a porta.

— Não vou deixar ninguém arrombar minha porta!

O drama continuou por um bom tempo. Ninguém tirava a razão da dona da casa, fechadura naquele tempo custava os olhos da cara. Mesmo só o ferrolho ainda sairia caro, pois, de tão careiro, o marceneiro quase metia a mão no bolso dos clientes.

O delegado é chamado a intervir. Visivelmente contrariado, desceu do veículo, armado e paramentado, acompanhado pelos dois soldados do destacamento policial.

— Só faltava essa! Com tanto bandido matando e assaltando a força policial foi chamada para arrombar porta de sanitário! Que lugar mais atrasado!

Com raiva, meteu o pé na porta, continuadamente, prestes a dilacerar a madeira. A dona da casa pedia calma:

— Devagar, delegado. Não precisa quebrar a porta toda, basta no lugar do ferrolho.

O delegado disse não admitir que paisano se intrometesse nas atividades policiais. Buscou adjutório dos dois soldados e colocaram a porta abaixo. Porta no chão, o mesmo espetáculo: o homem, sentado, traseiro tomando todo o assento do vaso, dormia e roncava indiferente ao barulho e aos passos destemidos da tropa militar.

— Levanta daí! Sanitário não é lugar pra dormir! Ainda mais na casa dos outros! Vai preso agora!

O coitado despertou do torpor. Abriu os olhos devagar… Assustou-se! Levantou-se agitado, já com as roupas nas mãos.

— Valei meu pai eterno! Que lugar é esse que não se consegue nem cochilar? Desse jeito vou morrer. Quem pode viver sem dormir? Já perdi a conta dos dias que não durmo! Agora que consegui um pouquinho vem esse povo todo como se eu fosse um criminoso!

— Você vai é preso! — tornava o delegado.

— Preso posso até ir, mas só depois que terminar meu cochilo. Agora, de jeito nenhum. Prefiro morrer!

O delegado enrijeceu os beiços, mordeu a língua de tanta raiva…

— Se estivesse sozinho você ia de qualquer jeito. Imagine estando com a força policial!

O homem não aceitava ordem nem ponderação. Só iria depois de saciar o sono. Os policiais nervosos. A dona da casa sem saber se livrava a casa do indesejado ou rogava pela vida do coitado. A filha, só de anágua e sutiã, aos berros, correu à rua afirmando não voltar para sentar no mesmo vaso usado pelo homem do sanitário. Fora, frente da casa, o povo aguardava o desfecho da agonia.

— Pega! Tira! Mata!

Os gritos determinaram o libelo. O delegado ordenou que segurassem os braços e as pernas do coitado. Seria retirado à força, sob pena de desmoralizar a polícia. Arrastaram no rumo da porta sob protesto de “não vou, não vou”. Vai, vai! — delirava a autoridade enquanto arrastavam o homem. De repente, no meio da contenda, um barulho seco, fogo de artifício ou de bala. Na rua, as pessoas esperaram a confirmação da suspeita. O corpo do homem amoleceu, perdeu as forças. O delegado viu a arma do soldado Araújo fora do coldre, no chão…

— Você matou o homem! Você matou o homem!

Araújo defendeu-se: — Eu não, delegado! Juro que não fui eu! Ele pegou a arma na minha cintura e puxou o gatilho. Juro que não fui eu!

— Foi você, sim! A responsabilidade é sua, não teve o devido cuidado com a arma que o Estado passou para as suas mãos.

— Mas não tive intenção, delegado! Não fui eu que puxei o gatilho!

— Vai ter que provar, todo mundo está vendo que a arma é sua! O tiro pegou bem na testa e a arma é sua!

— Mas, delegado…

— Nem mais nem menos. Em nome da segurança pública, em nome do Estado, está preso!

Ao soldado não restou alternativa senão oferecer os pulsos às algemas. Logo, saíam os dois policiais arrastando o corpo pelos braços, acompanhados pelo cabisbaixo Araújo, que enfrentaria a temida justiça militar em plena ditadura. Acabou. Ouve-se um plim-plim e a televisão anuncia a nova programação. Assusto-me. Uma voz chama:

— Nildo, Nildo… Está melhor? Foi ao banheiro? Conseguiu fazer?

Desnorteado, confuso, não entendi… Como? Como? E o homem do sanitário?

— Homem do sanitário? Você está sonhando? Quem deve ir ao sanitário é você mesmo, há três dias sem conseguir botar pra fora!…

Envergonhado, bati a mão espalmada no ventre ainda fofo, constipação intestinal que me acomete quando me excedo na bebida e na comida. Certamente, adormeci. Não fui ao banheiro nem terminei de assistir ao filme policial da programação da televisão, onde a polícia, no final, capturava e matava alguém — na minha percepção inconsciente, o homem do sanitário. Pior é que este homem era eu mesmo, precisando ir ao banheiro e morto de sono em decorrência da agonia intestinal.

Foi minha segunda morte. É sonhar demais…

 ***

 16º conto:

Genésio, o come rato

 

Mora, sozinho, nos escombros da casa abandonada. Sem água ou luz, vale-se de candeeiro improvisado em garrafa de cachaça que ele mesmo esvaziara. A água para consumo vem da chuva, quando a bica derrama o líquido em caixa de amianto sobre armação de madeira. Dali retira o líquido para todas as necessidades, inclusive lavação das fuças quando desperta sóbrio. Banho mesmo, só quando ganha roupa de presente. A última foi há mais de mês. Ao passar, as pessoas repugnam, mãos nas narinas…

— Que catinga mais horrível!

Nem parece ser com ele. Genésio segue sua caminhada à procura de nada. À noite, faminto e encharcado de álcool, retorna ao cubículo. Os meninos se escondem…

— Corre que lá vem o Genésio!

— Genésio é a mãe! Eu sou é Jesus!

Realmente estava bêbado; a prova era trocar Genésio por Jesus. Em casa, esparrama-se no chão. A barriga ronca, pede comida. Ratos passeiam ao lado. Alguns, mais afoitos, lambem-lhe as pontas dos pés e até as mãos, querendo arrancar a pele carcomida e grosseira. Um deles é agarrado. O animal chia e usa os dentes em busca da liberdade, sem êxito. As mãos impiedosas de Genésio apertam o ventre até as vísceras saírem pelo ânus, quando, então, solta o grito da vitória:

— Morre, filho de uma água!

De tão bêbado, em vez de filho de uma égua, feminino de cavalo, diz filho de uma água, que era, de fato, no que pensava…

— Cadê a água?

Uma voz responde da escuridão do seu cérebro:

— Pra que água?

— Pra botar no fogo e esquentar.

— Vai beber água quente?

— Não! Vou cozinhar o safado desse preá.

— Que preá? Onde está o preá?

— Aqui, preso na minha mãe!

— Você está maluco, Genésio? Que preá está preso na sua mãe?

— Mentira! Falei que estava preso na minha mão!

— Genésio, isso é um rato!

— Rato é rabudo; esse não tem rabo. É preá ou sariguê.

— Sariguê não é preto.

— Se tem gente preta e branca também deve ter sariguê, ora mais! Cadê a água?

A consciência não trouxe a água e o animal foi moqueado, vivo ainda, na chama do velho candeeiro. O cheiro de cabelos queimando escapuliu pela fresta da porta, preocupando o vizinho mais próximo. O instinto de sobrevivência o fez aproximar-se no momento em que o cheiro de carne queimada ganhava a rua. Gritou com todas as forças:

— Socorro! A casa do Genésio está pegando fogo!

O abrir de portas mostrava a solidariedade dos moradores, que já saíam com latas cheias de água.

— Vamos apagar o fogo do Genésio que deve estar bêbado, sem força até para correr! Vamos!

Arrombaram a porta com facilidade — aliás, apenas encostada. Primeira vez que acessavam as entranhas da casa de Genésio, estarreceram ante a visão surreal: o homem rasgava as carnes do animal com os dentes. O sangue escorria pelo corpo e atraia roedores que disputavam as migalhas. Chamaram por Deus:

— Valei meu pai eterno! O homem é bicho mesmo, fala e come com os ratos!

— Não disse que era o cão em pessoa?! Não tem explicação esse homem não colocar uma panela no fogo para cozinhar comida. É o cão mesmo!

— Não pode morar em uma rua de gente direita e temente a Deus. É o cão, sim!

Logo, a ponta da rua estava cheia de pessoas que atenderam ao chamado. Não acreditavam no que viam. Os animais, acostumados com Genésio, não reagiam à presença humana; e animavam-se no banquete regado a sangue e vísceras. Genésio, embriagado e fora de si, falava como se dirigisse aos vizinhos:

— O preá é grande, dá pra todos. Podem vir… — O povo, vomitando, embaralhava a mente doentia do homem — Se quiserem mais eu pego outro preá, é fácil; só apertar a mão. E o fogo está bom, bem quente. Podem vir todos…

Aí o vizinho da direita clamou pela justiça divina…

— Meus amigos, todos estão de prova. Suportei esse senhor como se fosse meu irmão em Cristo. Muitas vezes matei sua fome, saciei sua sede achando que fosse um ser igual a nós. Me enganei. É o diabo em pessoa e ainda tenta levar a gente a este banquete do horror!

A multidão se encorpava com a chegada de mais pessoas. O vizinho inflamou-se mais ainda quando viu, no canto, o prato com restos da comida apodrecida que oferecera há dois dias…

— Esse homem é o cão mesmo! Vejam com seus próprios olhos: o prato com o feijão, arroz e a carne que tirei da boca dos meus filhos para lhe dar, ele deixou apodrecer no canto da casa. Prefere comer rato cru, apenas sapecado pela fumaça desse candeeiro! Pior, os ratos que moram com ele devem ser também criaturas do cão, pois preferem comer aquilo em vez da comida que eu dei!

Dos buracos das paredes e do chão afloravam ratos e mais ratos. Uma ratazana abandonou uma mala velha jogada ao canto, deixando para trás mais de dez filhotes famintos. A multidão enojada enfureceu-se. Com paus e pedras avançou sobre os animais, matando-os às dezenas.

Genésio gemia, pedia para não acabar com os preás, comida dele, atiçando mais ainda o instinto de sobrevivência e preservação humana. Alguém ordenou que calasse a boca ou morria. Genésio disse já estar morto. Aí foi demais; o vizinho piedoso que lhe matava a fome convenceu-se ser o diabo mesmo…

— Vocês ouviram? Ele mesmo disse que é o cão! É o cão que se apossou do corpo de homem. De duas uma: acabar o bicho agora mesmo ou deixar que se aposse também da alma do coitado. Pra mim só tem uma saída: acabar com o demo! O Genésio, o vizinho, já morreu há muito tempo!

Inflamou a multidão. O nojo virou fúria e a raiva violência. Juntaram todas as porcarias encontradas pela casa, inclusive os animais mortos, amontoaram sobre o colchão velho onde Genésio se prostrava e deliberaram tocar fogo. As mulheres pediram por Deus que não fizessem aquilo, era um ser humano, deveria ser salvo e não morto como bicho. Que se buscasse então o padre ou um rezador para expulsar o demo do corpo do homem!

O padre não se encontrava na cidade. O rezador até compareceu, mas, disse não dar jeito em um bicho daqueles. Já estava morto e em estado pior que todos os ratos, tal o peso dos pecados. Garantiu, certeza mais que absoluta, que para aquele não tinha jeito. O descanso eterno seria o melhor para o corpo e para a alma, só restando rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria. E assim foi feito.

Após a reza, o próprio pai de santo despejou o querosene do candeeiro no colchão e riscou um palito de fósforo. O fogaréu consumiu tudo, inclusive o restinho do corpo de Genésio, o come rato.

Quando a polícia chegou, tarde da noite, só encontrou ratos mortos e queimados. Os restos mortais desapareceram misteriosamente, deixando uma grande interrogação: existiu mesmo na rua uma pessoa chamada Genésio?

Ao que parece ninguém foi ao enterro, aliás, não se sabe nem aonde foi enterrado. A mudez tomou conta de todos. Não se ouviu referências aos fatos, e já não se pode investigar. O vizinho da direita faleceu precisamente sete dias após o incêndio que aniquilou todos os ratos. O da esquerda, com medo de maldição, arribou para São Paulo.

Permanece a interrogação: existiu mesmo esse Genésio, o come rato?

 ***

30.º conto:

 Os milagres do beato Vivaldo de Jesus

 

            Quinta morte

 

A notícia se espalhou por Brasília, Distrito Federal. As emissoras de televisão entrevistam moradores de Taguatinga, onde ocorriam supostos milagres obrados por um beato, que, para tanto, utiliza unicamente a água de uma fonte natural. Com intenção de provocar comoção o apresentador de programa popular, após entrevistar o Administrador da cidade, torce para que os milagres sejam verdadeiros, estendam-se por todo o Distrito Federal e traga zelo aos responsáveis pelo trato da coisa pública. Depois, bate a mão espalmada sobre a bancada…

— Olha, minha gente, sabe o que quero mesmo? Que esse milagreiro aja sobre a consciência dos políticos, principalmente de Brasília. Para que respeitem os interesses do povo, e apliquem os recursos públicos em benefício da comunidade. — Arregala os olhos… — Tem justificativa uma cidade rica mostrar ao país pessoas morrendo nas filas de postos de saúde, no chão, por não ter nem maca onde possam aguardar atendimento? É deplorável! Faltam medicamentos e até seringas. Onde está o Secretário de Saúde da capital do Brasil, que prometeu resolveu essa vergonha há três meses e até agora nada? É lastimável! Vamos ao intervalo.

Os jornais estampam em manchetes os últimos acontecimentos. Jornal Brasileiro: Milagre acontece em Taguatinga. Correio de Brasília mostra a foto do milagreiro na primeira página. Até os tablóides, dedicados à divulgação de sangue e violência, dão espaço aos acontecimentos: Milagre pode transformar Taguatinga em lugar de romaria!

Nas ruas só se fala nos milagres. Nas repartições públicas servidores comentam os fatos. Francimar Peixoto, servidora pública, natural do Maranhão, discute com Sebastião Motora, que não acredita mesmo:

— Vocês estão brincando com fogo! Milagre só Cristo opera! Como evangélico não posso acreditar que um pecador seja investido de poderes de Deus. Quem é ele? Faz o quê? Um joão ninguém que veio da Bahia, uma mão na frente e outra atrás, que nem orar sabe. Ir à igreja não quer dizer que mereça as bênçãos do Pai, muito menos a capacidade para operar milagre. Com certeza, é mais um farsante.

A repentina fama do beato atraiu pessoas, inclusive quem ia só interessado em vantagens pessoais, a exemplo de Zé Bittencourt, residente no Núcleo Bandeirante. Vestindo roupas brancas e sandálias da mesma cor, após abesuntar a rala cabeleira castanha, Bittencourt apresentou-se ao beato Vivaldo de Jesus:

— Meu santo beato, permita beijar sua mão. Tenho andado por todo esse Brasil; confesso nunca ter presenciado poderes tão fortes como os da sua pessoa, capazes de curar cego e levantar defunto.

O beato pediu calma ao visitante…

— Meu senhor, pelo amor de Deus! Quem sou eu para operar milagres? Quem manda no mundo e na vontade das pessoas é Deus! Eu apenas faço uma oração, que encoraja quem está doente ou sofrendo a buscar forças no Pai Eterno e se livrar dos males. Não sou milagreiro.

 

O telejornal do meio dia apresentou reportagem especial sobre os fatos. “E atenção, a cidade de Taguatinga pode se transformar em uma Meca religiosa, capaz de atrair romeiros de todo o Brasil, com o aparecimento do milagreiro de nome Vivaldo de Jesus. Veja a reportagem ao vivo, direto da igreja Bom Pastor, na QNL”. As imagens mostram a igreja cheia de pessoas cantando e rezando. À frente, sobre um tablado, o beato Vivaldo de Jesus, roupão branco, cabeça coberta por pano igualmente branco…

— Caríssimos irmãos, o Pai Eterno habita sobre nós. Conhece as dificuldades e mazelas de cada um. Sabe do que mais precisamos. Conhece as dores que solapam nossos corpos e nossas mentes. Portanto, não carece nem pedir, pois Ele nos conhece demais. Podemos até não receber as graças; se isso acontecer, é porque não merecemos receber. É momento, então, de rezar; pedir perdão pelos pecados que habitam nossas vidas, para que mereçamos a bondade suprema. Neste momento, quando os corações se voltam a Deus, vamos, do fundo da alma, fazer uma oração fervorosa para que o Pai atenda aos pedidos que faremos agora…

Todos se ajoelham e oram. Acenam, olham o céu, fecham os olhos… O ritmo das orações é quebrado pelo barulho de um corpo caindo. Comoção. Todos olham a tempo de ver um senhor, ainda jovem, estatelado no chão. Após alguns minutos, levanta-se trôpego…

— Bendito seja o Beato Vivaldo de Jesus! Essa foi a última vez que a epilepsia me pegou. Estou curado! O Beato Vivaldo de Jesus me curou desse mal que me acompanha desde que me entendo por gente. Obrigado, Beato! Obrigado, Pai nosso que está no céu, por não ter esquecido esse filho insignificante! Estou curado, minha gente!

A televisão mostra, ao vivo, o testemunho do senhor que merecera a cura da epilepsia; tão confiante, que arrancou dos bolsos um punhado de remédios e lançou adiante:

— Estou curado pela graça de Deus e pelos poderes passados ao Beato Vivaldo de Jesus. Não preciso mais de remédios. Bendito seja o seu nome!

O merecedor da graça foi Zé Bittencourt, o mesmo que se apresentara efusivamente ao Beato. Quem o conhecia até hoje duvida da cura da epilepsia, e até se este mal o molestava mesmo ou fora invenção em prol de proveitos futuros. O Beato ainda teve a vaga impressão de já conhecer o curado; como não se lembrava de onde nem quando, tomou o curado como um desconhecido. Logo após, em entrevista à Televisão, Bittencourt informou ter nascido com um desvio no cérebro, trazendo, como consequência, a epilepsia. Agradeceu tanto a cura pelos poderes do Beato que se transformou, a partir dali, em seu obreiro. Prometeu dedicar o resto da vida a ajudar o Beato a curar e salvar pessoas. E sempre se fazia presente às sessões de orações das quartas e sextas feiras, bem como aos domingos.

Ao transmitir a sessão da cura, a Televisão levou o culto aos lares brasilienses. Transmitido em cadeia nacional, o Beato tornou-se conhecido em todo o Brasil, e até no exterior. Em decorrência, caravanas de romeiros chegavam para ouvir as palavra e arriscar merecer a graça de Deus, como bem dizia o próprio Beato:

— Queridos irmãos, não esqueçam o que sempre afirmo. Se algum de vocês se sentir curado de um mal maior ou menor, lembre-se que a cura veio diretamente do Pai Eterno; e se veio, veio porque você foi merecedor. Nada tenho, nada sou e nada quero de cada um de vocês. Só lhes peço, encarecidamente, que zelem pela natureza. Meu único compromisso neste mundo, a esta altura da vida, é trabalhar pelo equilíbrio da natureza. Pois, em equilíbrio a natureza também estará necessariamente em equilíbrio o espírito. E espírito desequilibrado, todos sabem, principalmente os doutores da medicina e da igreja, é porta de entrada para todos os males do mundo.

O povo não entendia de onde o Beato, pessoa rústica e sem estudos, retirava tanta sabedoria…

— É o Pai Eterno que me dá forças para orar durante tanto tempo, o suficiente para atender a todos que procuram a cura dos males do corpo através do equilíbrio espiritual, que obtemos com oração e fé. Porém, peço encarecidamente — sempre repetia — que se pautem com respeito à natureza, aqui representada pela fonte do Parque Onoyama, que derrama a água mais pura, coletada por mim e pelas pessoas que me auxiliam. — Coincidentemente, o irmão José Bittencourt passava adiante com bacia esmaltada repleta de água, vindo da fonte.

A partir daquele momento, a fonte transformou-se em referência para todos que buscavam as orações e a bondade do Beato. A cidade registrou mudança no seu cotidiano. O Brasil todo, e ainda o estrangeiro, derramava pessoas para ouvir o Beato. Mais ainda quando conhecido cantor foi, pessoalmente, pedir orações para melhoria da saúde de sua mãe. A televisão transmitiu, ao vivo, o abraço emocionado do cantor, lágrimas abundantes, enquanto pedia pela saúde da genitora. Vivaldo de Jesus chorou junto, informando depois ser tão sensível que chorava a dor das pessoas.

Como nas cidades satélite não existe Prefeito, mas, Administrador Regional, este cuidou de reformar a igreja do Bom Pastor para melhor adequá-la aos cultos. Enfrentou a resistência do pároco, padre Moacir, que interpretava como charlatanismo as sessões de cura. O padre não aceitava a interferência do poder público. Dizia que a paróquia sempre sobrevivera sem o apoio oficial; e não era agora que se rebaixaria aceitando esmolas da mesquinharia e de interesses que nem ele, padre, sabia quais eram.

Criou-se uma cisão entre os poderes eclesiástico e político obrigando a interferência do Bispo, atendendo solicitação do Administrador da cidade, que não entendia as razões que levavam o padre a rejeitar ajuda e dinheiro.

— Comportando-se assim, vai de encontro aos interesses da comunidade. O senhor já viu, Bispo, a quantidade de pessoas que participam dos cultos? Milhares! Deixar aquele povo sem as mínimas condições de higiene é porta de entrada para doenças e moléstias.

Tentaram convencer o pároco que as evidências levavam a crer que as orações e os procedimentos eram verdadeiros, sem charlatanismo. Padre Moacir não aceitou as ponderações; preferiu arribar para outra diocese, e passou ministrar o evangelho no vizinho estado de Goiás. As portas agora estavam escancaradas ao projeto do governo, e até da diocese, de transformar Taguatinga em Meca nacional da fé e da romaria.

Com a saída de padre Moacir a igreja mantém as portas abertas até altas horas da noite, sempre com urnas de coleta de donativos em cada entrada. Cuidaram de ampliar a capacidade física construindo um galpão anexo, capaz de acomodar cinco mil pessoas sentadas. Mesmo contra a vontade do Beato, o Administrador da cidade investiu bom dinheiro para canalizar a água da fonte, agora mais miraculosa ainda, colocando várias torneiras em bonito chafariz cromado e dourado, construído com pedras sob medida, ao lado do galpão. Obra pronta, hora de inaugurar.

A administração pública, através de anúncios na televisão, convidou o povo para inauguração da fonte, apresentada como realização de governo. O fato trouxe insatisfação de outras religiões, que alegaram o preceito constitucional que vedava à administração pública vincular-se a credo ou religião, considerando ser o Estado brasileiro laico. Impetraram Mandado de Segurança; mesmo assim, foram mantidas as solenidade de inauguração da fonte miraculosa.

A reportagem escolheu os melhores ângulos, repórteres por toda a extensão da área. Ainda cedo, o povo chegava, após caminhar quilômetros, para participar do evento. Empresas do transporte público criaram linhas especiais até o largo da QNL, ao lado do galpão. Ônibus interurbanos descarregavam centenas de pessoas ávidas para ouvir a palavra do Beato e purificarem-se com a água santa que livrava dos males. Até grupos ambientalistas deslocaram-se de longe para conhecer a pregação do religioso que se preocupava com a natureza, aliás, colocava a natureza como razão do equilíbrio físico e mental das pessoas. De São Paulo partiram caravanas de ambientalistas do Gramprix, organização não governamental recém criada em decorrência de dissidência de conhecida entidade internacional. A Bahia fez-se presente com a chegada do grupo ambientalista Gamba. Embora sede de muitas entidades internacionais, de Brasília não se apresentou nenhum grupo ambientalista por discordância aos métodos de administração pública utilizados pelo governo local.

Assim, próximo ao horário marcado já não existiam lugares. A multidão foi se alargando de tal forma que a área ocupada já era superior a quatro quilômetros quadrados, na compreensão da polícia local, que nem sempre merecia crédito pela megalomania dos cálculos, imputando mais pessoas que o número real.

No horário marcado, dez da manhã, ouviu-se longe o ronco do helicóptero, único meio de transporte do governador, que se aproximava veloz. As forças policiais abriram clareira humana no centro da praça, e a aeronave fincou o chão com barulheira e ventania. O governador foi aclamado, seguindo, juntamente com o Administrador, ao palanque central, onde os aguardavam Beato Vivaldo de Jesus e obreiros.

A televisão transmitia ao vivo a inauguração da fonte miraculosa capaz de ressuscitar mortos e curar doentes, como se viu nos últimos meses — e mostrava no telão algumas imagens, inclusive a cura da epilepsia do obreiro Bittencourt.

No palanque, primeiro falou o Administrador. Elogiou a grande capacidade de operar milagres do Beato. Vindo da Bahia, bairro de Pau da Lima, Salvador, origem humilde e sem estudos, transformou-se na maior referência, nacional e até mundial, na cura dos males do corpo e da alma. E o mais importante…

— …Vejam vocês, mesmo sem saber, o Beato Vivaldo de Jesus coloca a preservação da natureza como razão de equilíbrio para as próprias pessoas, exatamente o maior objetivo da nossa administração: preservação ambiental. A maior prova desse propósito foi resgatar esta fonte de água natural, encanando-a e trazendo até este local para que todos possam usufruir da sua pureza, e daí, com a interferência do Beato, conseguir, também, a cura dos males do corpo e da alma. Sei que a missão do Beato não é deste mundo; mas, nesse momento, quero convidar o cidadão Vivaldo de Jesus para ocupar uma das cadeiras de deputado na Câmara Legislativa, para lutar, também na esfera leiga, pela defesa e preservação ambiental, e pelos direitos do povo pobre que busca os milagres das suas mãos santas!

O Beato, assustado, gesticulou não aceitar o convite. O administrador percebeu e corrigiu imediatamente…

— Tinha certeza que não aceitaria, prezado Beato. A sua ação não é deste mundo. Nasceu e veio ao Distrito Federal para cuidar dos pobres e curar os espíritos sofredores que o procuram. Porém, quando o convidei, não coloquei sua figura material para compor a câmara legislativa. Quis dizer que o senhor, Beato Vivaldo de Jesus, indique uma pessoa da sua estrita confiança para assumir um mandato na câmara legislativa; tenho certeza que essa multidão calorosa o elegerá com fartura de votos! — O povo bateu palmas, animou mais ainda o orador. — Pessoas e nomes capazes de representar esta religião e este culto não faltam. Lanço, neste momento, o nome do irmão José Bittencourt para a câmara legislativa, pelo fato, inclusive, de já ter merecido a graça maior da cura, quando, pelas mãos miraculosas do Beato, viu-se livre de uma epilepsia que o acometia desde menino. Então, senhores, para deputado distrital, neste momento solene, lanço o nome do irmão José Bittencourt, com o apoio do Beato Vivaldo de Jesus e de todos vocês!

O obreiro Bittencourt tremeu por dentro. Nunca pensara na possibilidade de virar político, nem mesmo vereador na sua terra, interior de Goiás; deputado em Brasília seria mesmo milagre. Timidamente, acenou ao povo, recebendo palmas e mais palmas. Enquanto isso, os ambientalistas visitantes expressavam a compreensão de viagem perdida. Acreditaram demais na seriedade pelo fato de o aceno vir da capital federal; decepcionaram-se. Não se pode misturar nobreza com tanta baixaria, expressou um deles. Um dos ônibus interestaduais manobrou adiante, tomou o rumo da estrada, de volta para casa, erro na compreensão do evento.

Vivaldo de Jesus permanecia quieto, pasmo até, com tanta  falação. Afeito a pouca conversa, introjetava-se mais ainda com o discurso do administrador. Depois, foi a vez de o governador dirigir-se ao povo. Saudou o Administrador da cidade, Beato Vivaldo, Bittencourt e o povo, informando ter abdicado de compromissos importantes para marcar presença naquele evento de inauguração da fonte da água mais pura e mais miraculosa do mundo, presente de Deus ao Distrito Federal, que mandou ainda este santo homem, o Beato Vivaldo de Jesus. E que nome! De Jesus!… E dirigiu-se diretamente a Vivaldo…

— Meu querido Beato, não tenho palavras à altura da sua pessoa, continuador de Cristo nessa faina de curar e salvar o homem. Sua presença em Brasília tem significado especial; por ser centro irradiador para todo o país, sua mensagem de paz chegará a todos os lares brasileiros. Depois, querido Beato, você chegou no momento em que mais precisamos. Vivendo uma campanha de combate à dengue, sua mensagem em prol da natureza limpa e equilibrada certamente terá como efeito a erradicação desse mosquito maldito que já acometeu da enfermidade mais de três mil brasilenses! Obrigado e muito obrigado. Seu trabalho de curar os males do corpo e da alma é reconhecido em todo o Brasil, e a maior prova são as centenas de ônibus interestaduais que testemunham este evento. Não estamos inaugurando uma simples praça, uma escola, uma quadra de esportes. Inauguramos uma fonte de vida, de água pura, reflexo da natureza pujante. Enaltecemos, acima de tudo, a vida humana com seu trabalho de salvar vidas, curar doentes e ressuscitar mortos, como mostraram as reportagens da Televisão. Assim, é com muita honra que inauguro esta fonte de vida. Mais do que isso, reconheço concretamente o belo trabalho de Vivaldo de Jesus de duas formas: decretando esta fonte miraculosa como de utilidade pública, e oferecendo ao seu criador o título de cidadão brasiliense, conforme decreto legislativo já aprovado pela câmara legislativa — duas jovens trazem os documentos ao palco. O governador convida o Beato… — Neste momento feliz para todos nós, convido o Beato Vivaldo de Jesus para receber as honras!

O Beato mal caminha. Devagar e contrita, a figura branca rompe ao palco. Recebe a comenda sem levantar as vistas. O povo aplaude e aplaude…

Depois de muita insistência para falar, a coordenação do evento permite que um homem, posicionado junto ao palanque, leia uma mensagem. É conduzido ao palanque…

— Meu governador, administrador da cidade, meu querido Beato Vivaldo de Jesus. É com satisfação que subo ao palanque para testemunhar a verdade dos seus poderes, que me trouxe novamente o sopro da vida. Sim, senhores, eu estava morto; morto e desenganado por todos os médicos da minha terra, no estado da Bahia. Vi pela televisão que a água pura e milagrosa do Beato Vivaldo de Jesus ressuscitava até pessoas já enterradas. Pedi a minha mulher, que aqui se encontra, que me trouxesse de qualquer forma. E vim; como já tinha gasto toda a minha fortuna, eu era um homem rico, com médicos e remédios, só pude vir em uma maca improvisada no lombo de um burro, único animal resistente o suficiente para me trazer aqui, aonde cheguei praticamente moribundo. Já na chegada, quando me ofereceram o líquido e soube ser a água milagrosa, senti meu corpo sacudido pela fé e pela força do milagre. No outro dia, já estava quase bom. E no terceiro dia, já podia montar o animal e voltar para casa completamente curado!

A comoção foi geral. Um senhor se projetou da multidão e disse, aos brados, estar vendo no palanque o pai dele, que já morrera há mais de vinte anos! Rumou ao palanque, guiado pelo apresentador, que pedia, encarecidamente, que dessem passagem para a fé daquele senhor. Chegando ao palanque, antes de abraçar o Beato e beber a água santa que Bittencourt oferecia, o homem retesou-se todo e caiu trêmulo, para logo aquietar-se. Um dos seguranças foi ao corpo…

— Está morto! Está morto! Está morto!…

A multidão grita pelo Beato de Jesus:

— Ressuscita! Ressuscita!

Vivaldo de Jesus glorifica a Deus, eleva as mãos aos céus, o povo delira. Ressuscita! Ressuscita! Confusão. Alguém pergunta quem está morto. Que está acontecendo? Passos rápidos nas escadas de aceso ao palanque…

— Nildo! Nildo! Que está acontecendo? Quem está morto?

— Meu pai, está sentindo alguma coisa?

— De novo, Nildo! Você precisa ir ao médico. Dorme o tempo todo. Pior não é nem dormir, é dormir e sonhar alto! Você sonha demais!

 

Encerro timidamente este escrito. Palavras já não são necessárias; foi a quinta morte. Desta vez, confesso, gostaria de conhecer o final da água miraculosa e dos poderes do Beato Vivaldo de Jesus. Acordaram-me no exato momento em que o morto, eu mesmo, seria ressuscitado. Sim, pois, depois de tanta demonstração de poder e de fé, Vivaldo de Jesus certamente ressuscitaria o homem que viera da Bahia para materializar seu poder sobre a vida. Com certeza, o Beato era Jesus. Até pelo nome…

 

[…]

 

Foi uma pequena amostra de O Homem que morreu cinco vezes.

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RESENHA CRÍTICA

 

BARBOSA, Astrogildo Régis (Astrogildo Miag). Lampião, governador de Brasília. Editora do Autor, Brasília – DF, 2009, 252pp.

 

Astrogildo Miag é baiano de Remanso, de onde veio à busca de vida melhor, mais digna. Passou pelos percalços dos migrantes, sem muita instrução escolar, sem profissão e sem em quê se apegar. Estudou, formou-se, venceu. Hoje é Advogado e servidor público do GDF, em função de alta responsabilidade. Escritor prosador, também é poeta.

O “eu” lírico, narrador, na simulação de um sonho, faz ressurgir Lampião, na Chapada Diamantina, com destino a Brasília, para combater o MST, implantar o Estado do Planalto Central e, secundariamente, impedir a transposição do Rio São Francisco. O romance entabula fatos picarescos numa sátira ao comportamento humano, especialmente no que tangue à mediocridade em relação à fama, à fortuna e à subserviência ao poder econômico e social. Lampião reaparece, sem mulheres no bando, mas detentor da fama de mito, o anti-herói que se torna herói. Como se não tivesse morrido, o cangaceiro se depara com o Brasil atual – situação em que ele está desatualizado, mas em nada mudou quanto às mazelas humanas: o puxa saco, a corrupção, o machismo, a violência, a ambição/ganância, o levar vantagem, principalmente a financeira e a eleitoral. Acerca-se de assessores, seguidores e admiradores. Arrasta multidões. Por onde passa, provoca exasperações cômicas e ridículas, sempre se reportando ao que a História registra e ao que o folclore cultiva. Pelo que foi, em vida, ele ressurge em outra dimensão, mas com as mesmas caricaturas de cangaceiro e mal-feitor bem-feitor. Expõe o que há de pior na política, mas se rende a ela, elegendo-se Governador de Brasília, numa constatação de que nem mesmo o “Rei do Cangaço” resistiu ao assédio do poder político. Tudo lhe é facilitado pela fama histórica que o tornou mito. Não deixando de ser o que era, causa medo, pavor, mas fica numa versão politicamente correta, faz um governo popular e honesto, mas resolve voltar à origem. É morto, nas mesmas circunstâncias históricas, segundo os relatos, e o sonho acaba.

Os objetivos da trama não se realizam, talvez para provar que a tese da honestidade, da firmeza de propósito e da defesa dos interesses do povo é inviável, porque a humanidade é corrupta e sem escrúpulos.

É um livro para leitura recreativa, em linguagem simples, coloquial, com alguns regionalismos nordestinos. A trama é linear, num encadeamento de fatos picarescos que engendram crítica social e muito humor sarcástico.

Não há contra-indicações, exceto para o mau-humor e para quem queira fazer dessa literatura despretensiosa um documentário ou um compêndio filosófico. Aqui não há tese ou ponto de vista: não se quer provar ou reprovar fatos ou idéias, apenas se expõem narrativas para que o leitor extraia o que lhe for peculiar.

José Ferreira Simões – J. Simões

Professor, PHD em Educação, Escritor.

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 Resposta à Resenha “Relembrando Lampião”, da Escritora Nadir Andrade:

Olá, Nadir;

Mais uma vez, peço-lhe desculpas pela demora em escrever-lhe acerca de uma das manifestações mais atenciosas que recebi: sua resenha sobre Lampião, governador de Brasília. Como já lhe adiantei, foi muito gratificante. A começar pela pronta interpretação do livro em si, como mídia concreta, quando se referiu aos caracteres da capa do mesmo. Pois, acertou em cheio. A capa foi criada com objetivo de refletir mesmo a sanguinolência e o caráter fúnebre que caracterizam hoje o capitão Virgulino, “o homem mais valente que o Brasil já teve”.

Gostei quando se referiu ao início do livro, “O autor e a ficção”. De fato, como Escritora você sabe, é difícil iniciar livro de ficção; pior, quando o personagem que gerou tantas histórias está morto desde o século passado e precisa “voltar” para protagonizar mais uma, agora sem pé e sem cabeça, surreal, que nasce de ficcionista visionário. Pois, com sinceridade, a parte mais difícil foi o início do livro. Pensei em muitas formas de ressuscitar o capitão Virgulino, inclusive utilizando da moderna ciência de reprodução, quando um simples fio de cabelo “pode” gerar um ser igual ao extinto possuidor. Por conta disso, pensei na possibilidade de alguém roubar um pedacinho dos restos mortais do Capitão, que por muitos anos ficaram macabramente expostos à visitação pública. Mas, aí veio a dificuldade: como ressuscitar os 37 cangaceiros se apenas uma parte deles tinha os despojos expostos no IML Nina Rodrigues?

Não restou alternativa senão recriar mentalmente, de uma só vez, na ficção. A maior dificuldade era descobrir a maneira de fazê-lo. O local da ressurreição foi a Chapada Diamantina por uma questão bem particular: o fascínio que a região e suas formações rochosas exercem sobre meu espírito e minha mente. Na sofreguidão de trazer Lampião á vida, vi-o perambulando no Morrão, na formação do Camelo, no Pai Inácio. Porém, foi na Serra da Mangabeira que o vi de forma plena. Então, parabéns pela sensibilidade capaz de visualizar o que só foi dito poeticamente, como a descrição do azul imenso da curva da Serra da Mangabeira.

No transcorrer da história procuramos misturar o real com o irreal, oportunidade única para referências às mazelas dos dias atuais. Daí criar personagens que representavam pessoas com atuação destacada em defesa de interesses coletivos, a exemplo do Bispo da Barra, dom “Capri”, referindo-me ao Bispo mesmo do Prelado da Barra, cidade que admiro e onde tenho grandes amigos. O Engº Manoel Bomfim(sic), que há pouco deixou nosso convício, um dos maiores estudiosos da questão das águas, também deu seu depoimento. O assaltante Paulo Animal, que tentou jogar o avião contra os cangaceiros, veio com objetivo de mostrar não ser Lampião um malfeitor comum. Entendo importante mesclar ficção com a realidade, de forma crítica, como sempre exercito nos meus livros.

As construções de linguagens que considerou “belíssimas e poéticas”, como a noite engoliu a beleza da Chapada, refletem a compreensão que tenho da região, um dos mais lindos recônditos da natureza, que, por tudo, precisa ser preservada. A Chapada Diamantina exerce verdadeiro fascínio sobre a minha pessoa. Concebo-a como manifestação suprema de seres de grande espiritualidade. Aliás, ainda quero ter a felicidade de escrever uma história surreal tendo como referencial este lugar maravilhoso.

Quanto aos personagens, Joana “tabaco furado”, conterrânea de Remanso, adequou-se a um dos momentos da história. A maioria dos nomes dos cangaceiros foi retirada dos relatos históricos do cangaço, floreados com características que identifiquei em pessoas que atualmente fazem parte do meu cotidiano, a exemplo de Beija-flor, Feião etc, porém, sem me afastar muito do histórico. A exceção foi o cangaceiro Enfezado, que não existiu no bando de Lampião. Criei-o em viagem com dois confrades da Academia de Letras de Taguatinga à Bienal do Livro de Salvador, homenagem a um deles por conta de acontecimentos inusitados no transcorrer da viagem.

A caracterização física dos homens do Capitão foi feita livremente pelo escritor, de acordo com sua percepção artística. A participação do padre Turíbio, de Bom Jesus da Lapa, do aleijado sem braços, vitima da Talidomida, de um catingueiro oferecendo um bode, da banda de pífanos, foi uma forma de denotar realismo ao relato.

Por fim, você criou o suspense e eu gostaria de saber, em sua opinião, qual seria o clímax do romance. Foram ótimas as suas referências. Pretendo, sim, realizar um périplo de lançamentos de Lampião nas cidades do percurso de Itaberaba até despontar em Brasília, na campanha vitoriosa do Capitão Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.

Abração do Astrogildo Miag.

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Caro, Astrogildo ou, “Cabra da Peste”, bom dia!

 Parabéns, parabéns e, parabéns. Adorei o livro LAMPIÃO GOVERNADOR DE BRASÍLIA, a sua imaginação foi estupenda, a riqueza de detalhes impressionante, e os personagens? o locutor de Xique-Xique Edilson Braga, os jornalista da Radio Zabelê de Remanso, Joana “tabaco furado”, José Alecrim, Jota Moriz, Pedro Olavo e tantos outros, que imaginação hein, meu irmão?

Ah! Esqueci de me apresentar, meu nome é Orlando Ferreira, você esteve em minha casa quando da estada de Carlos Santos “Carlito” em Brasília, e fui presenteado por um exemplar de “LAMPIÃO GOVERNADOR DE BRASÍLIA”, coincidentemente, na ocasião eu vestia uma camisa que fazia referência a Lampião, lembra-se?

Atenciosamente.

Orlando Ferreira.

 Apresentação

 

Brasília, capital do país, transmite a impressão de cidade polêmica por guardar em suas fronteiras as chefias dos poderes políticos do país. O simples anúncio do nome da capital é motivo para se torcer o nariz, com  a compreensão — errada — de que tudo que se refere a Brasília é ruim, perdulário ou ignoto.

A reação é injusta. Brasília, morada de mais de dois milhões de brasileiros, não deve ser confundida com a “Brasília, sede do Congresso Nacional”. Naquela, pululam (o trocadilho não foi proposital) pessoas trabalhadoras e cumpridoras dos seus ofícios, lado a lado com políticos de todo o país e portadores de muitas mazelas — embora  nem todos os políticos sejam portadores de mazelas. Não obstante, os políticos de Brasília cometem também seus pecados, a exemplo de arroubos de demagogia e desrespeito às práticas recomendáveis no trato da coisa pública.

Lampião, governador de Brasília reeditará epopeias triunfais do bandoleiro sobre cidades nordestinas, mandando, desmando e criando na imaginação um novo estado, o Estado do sertão, onde seria governador absoluto, independente e acima das leis da nação? Chegaria Lampião com a decisão resoluta de criar o estado do planalto central, como almeja boa parte dos políticos da capital, embora nenhum ostente publicamente?

Veremos a seguir, quando o capitão Virgulino Ferreira da Silva,  o Lampião, adentrar as terras do oeste do Brasil para uma visita à capital, levado por objetivos que nem mesmo o escritor sabe de antemão. Mas, certamente, gerará muitas confusões pelo caráter inusitado, fantasmagórico e mítico de Lampião e, também, pela ilusão que a capital federal ainda cria no brasileiro em geral.

Para começar, eis uma foto do bando de cangaceiros. Lampião monta o cavalo branco maior.

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 O escritor e a ficção

 Iniciar livro de ficção é um tormento. Difícil justificar histórias sem pé e sem cabeça que brotam da imaginação. Sem querer, geralmente nas madrugadas modorrentas, quando o reflexo do sol expulsa  lentamente a escuridão da noite, sonhos estranhos me tomam a consciência e trazem histórias malucas. Para ilustrar, mês passado chegou-me ao subconsciente a história de alguém que já morrera vinte vezes e ainda continuava vivo. Pulei da cama! Como pode morrer vinte vezes e continuar vivo? Recusei-me ouvir a história passada pelo próprio morto-ressussitado, e corri ao banheiro para um banho frio.

Por último, apareceu-me o capitão Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, maior cangaceiro do Brasil. Cochichou sua história no meu ouvido. Respondi: Capitão, todos já conhecem sua vida, nada mais a falar. Deixe-me dormir. Pura verdade. Todos conhecem a história de Lampião, rasgando o chão de sete estados nordestinos carregando com mais de cinco quilos de ouro na bagagem.

A vida de Lampião povoou minha infância. O relato de que obrigara um subordinado comer um quilo de sal só porque dissera que a comida que recebiam de uma velhinha estava salgada, perturba-me até hoje a imaginação. E quando amarrou um soldado a um mandacaru para que confessasse, sob tortura, o roteiro das tropas policiais que perseguiam o cangaceiro? E a batalha em Paripiranga, na Bahia, presenciada pelo mascate Zé Antonio, que, daquela cidade, fugira  desorientado ao ver a valentia  e malvadeza dos cangaceiros?

Fui impelido a escrever sobre o cangaço, tema — embora palpitante — antigo e demais abordado na literatura, cinema e televisão. Porém, a força dos argumentos obrigaram-me a contar a história mirabolante da marcha triunfal de Lampião sobre  Brasília, em pleno século XXI. Alguém poderia indagar: Lampião não morreu em 1938, quando Brasília ainda nem existia?

 

Pura verdade. Sempre soube que o passado não se encontra com o futuro — entre ambos milita o presente, que será passado e “apresenta-se” sob a perspectiva de futuro. Mas, para a mente engenhosa do artista, tudo acontece mesmo, a depender do poder e força convincente dos personagens. Mas, convenhamos, Lampião ainda vive na memória do pobre que acalenta encontrar um cangaceiro que os livre da realidade capitaneada por governantes e políticos descompromissados com os interesses legítimos de um povo.

O nordeste brasileiro varado pelas forças do cangaço, carregado de injustiça social capaz de justificar o injustificável, já não existe. A questão climática deixou de ser variável impeditiva absoluta frente à evolução tecnológica. O antigo polo de miséria continua em grande extensão; mas, parte dele já se transforma em farturas alvissareiras. Porém, o mito “Lampião” permanece intocável no espírito nordestino e brasileiro. A intenção é abordá-lo, agora, sob a perspectiva do século XXI. Convido-o a esta viagem.

O Cangaço

Cangaceiros eram bandos armados que atuaram nos grotões de pobreza do nordeste brasileiro, no inicio do século XX, promovendo variadas manifestações de banditismo. Atacavam mascates, pequenos negociantes, invadiam povoados, vilas e até cidades em busca de mantimentos, dinheiro ou ouro. Sequestravam fazendeiros em troca de resgates, quando não extorquiam quantias certas em dinheiro através de simples bilhetes endereçados a quem as possuía.

Aos abastados restavam duas opções: respeitar e acatar os bandoleiros do cangaço, ou não  respeitá-los, o que trazia, de imediato, humilhação e sujeição às investidas violentas. Os submissos ganhavam “proteção”, certeza da não importunação pelo bando. Não raro, eram até “ajudados”, fazendo correr a fama que não eram maus e só atacavam ricos e soberbos. Ao adentrarem em uma localidade cantando “mulher rendeira”, que identificava o grupo, buscavam a simpatia dos moradores atirando-lhes moedas de pequeno valor.

A população vivia entre a cruz e a espada. Apoiasse o cangaceiro, submetia-se à perseguição das “volantes” policiais — caçavam os cangaceiros e, em maior medida, as riquezas que estes transportavam. Afirmava-se que Lampião não andava com menos de cinco quilos de ouro e milhares de contos de réis, hoje uma média fortuna.

 

O cangaceiro Lampião

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Virgulino Ferreira da Silva nasceu em junho de 1898 na antiga Vila Bela, hoje Serra Talhada, Pernambuco. Com a alcunha de Lampião ou Capitão Virgulino foi o mais famoso cangaceiro durante mais de duas décadas. Desmoralizou grandes operações militares organizadas para capturá-lo, bem como não valeram altas recompensas oferecidas pelo governo a quem o eliminasse. Ao contrário, a ineficiência das ações aumentava a aura de invencível, convertendo-o em herói, com espaço até na mídia internacional.

Mulato, esguio, forte, um metro e setenta, Lampião era capaz de atos de crueldade. Não raras vezes, sangrou inimigo enfiando longo punhal na veia jugular, como se fazia com um bode. Cortou língua de gente, decepou orelha e furou olhos. Certa vez, castrou um homem sob a alegação de que o mesmo precisava engordar. A crueldade lhe valeu a alcunha de “rei do cangaço”.

Contraditoriamente, era temente a Deus. Portava um rosário e uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, sua madrinha. Carregava livros de orações e pregava fotos do Padre Cícero na roupa. Rezava ao levantar-se, acompanhado por todo o bando. Não por acaso, no dia da sua morte, ao raiar do dia, acabava de rezar o santo ofício. Em algumas localidades invadidas ia à igreja, onde costumava deixar donativos fartos, menos para São Benedito: era racista e dizia “onde já se viu negro ser santo?”. Supersticioso, andava com amuletos espalhados pela roupa e acreditava  ter o corpo fechado. De encontro ao machismo do nordestino, os cangaceiros enfeitavam-se com anéis, colares e lenços estampados de seda inglesa ou tafetá francês.

Apesar de bandido e perseguido pela polícia, Lampião e seu bando foram convocados para combater a Coluna Prestes, marcha comunista que cruzou o Brasil na década de 1920, comandada por Luiz Carlos Prestes. Recebeu a patente de capitão das mãos do Padre Cícero, em 1926; seus cangaceiros ganharam fardas e armas de última geração. Ainda se cruzaram com os comunistas de Prestes, mas a convocação não foi reconhecida oficialmente pelo governo federal, que continuou perseguindo-os, o que os fez retornar às atividades cangaceiras, agora bem armados.

 

Em 1929, conheceu Maria Déa, a Maria Bonita, mulher do sapateiro José Neném, de Jeremoabo, na Bahia. Com dezenove anos e apaixonada, pediu para acompanhá-lo. Lampião concordou.

 A morte do cangaço

            Lampião morreu em 28 de julho de 1938, na Fazenda Angico, Sergipe, emboscado por cerca de cinquenta policiais de Alagoas, comandados pelo tenente João Bezerra. O combate durou pouco, ante a vantagem de Bezerra dispor de quatro metralhadoras. Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram mortos e degolados. Após, salgaram as cabeças e colocaram em latas “de querosene” contendo aguardente e cal. Os corpos mutilados e abandonados viraram  comida de urubus. As cabeças foram expostas nas escadarias da igreja de Santana do Ipanema; de lá, foram conduzidas a Maceió e Salvador, onde, insepultas, no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, ficaram expostas ao público até 1969.

Na ocasião, Lampião transportava mais de cinco quilos de ouro e quantia em dinheiro equivalente hoje a 600 mil reais. Só no chapéu de couro o cangaceiro ostentava setenta  pelas de ouro puro.

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As próximas páginas mostrarão a marcha de Lampião desde seu aparecimento na Chapada Diamantina, Bahia, até  Brasília, capital federal, para  combater o MST e fundar o estado do planalto central em terras do oeste do país.

Não realizou nenhum dos objetivos, mas transformou-se no maior fenômeno político e eleitoral que se tem notícias no Brasil, até hoje venerado pela memória dos moradores da capital federal.

 

 

 


Um, leitor escreveu sobre o Livro:

 

Caríssimo amigo,

Acabo de ler, em duas sentadas, o seu livro O Legado da Loucura, e, duas coisas me chamaram a atenção: uma, acredito que o sonho de todo escritor é criar um estilo e ser reconhecido por ele. Posso afirmar que você chegou lá, somado aos dois primeiros que já li “A Santa do Pau-Oco” e “O Purgatório de Eduardo” é fácil reconhecer seu estilo, caracterizado principalmente por personagens à beira de um ataque de nervos. Todos estão prontos para a briga e respondem armados a qualquer palavra mal entendida, não importando a classe social, o credo ou a profissão que exerçam. Tanto faz se na cidade interiorana do primeiro livro, num delírio dantesco do segundo ou num inusitado velório deste último, todos estão por um fio. O que me faz pensar duas vezes antes de visitar Remanso.

Se o estilo vem sendo apurado, o que me agrada muito são as interpretações, entre os personagens, das falas alheias, criando um disse-me-disse que nos faz lembrar de uma brincadeira de infância chamada telefone sem fio, onde um dito ia sendo modificado à medida que passava de um ouvido a outro.

A segunda coisa que me chamou a atenção foi o enredo em si, a confusão em torno de um velório, já que, curiosamente, semana passada, numa mesa de bar, fazia um comentário sobre como achava interessante participar de qualquer evento social, seja ele um velório, aniversário, procissão, carnaval, festa de família, comício, passeata, etc. (imagina como esta opinião deu pano pra manga).

Enquanto lia, lembrei-me de um poema de Mário Quintana que nos remete a outro velório que agora transcrevo:

Tableau! Nunca se deve deixar um defunto sozinho. Ou, se o fizermos, é recomendável tossir discretamente antes de entrar de novo na sala. Uma noite em que eu estava a sós com uma dessas desconcertantes criaturas, acabei aborrecendo-me (pudera!) e fui beber qualquer coisa no bar mais próximo. Pois nem queira saber… Quando voltei, quando entrei inopinadamente na sala, estava ele sentado no caixão, comendo sofregamente uma das quatro velas que o ladeavam! E só Deus sabe o constrangimento em que nos vimos os dois, os nossos míseros gestos de desculpa e os sorrisos amarelos que trocamos…

Por fim, lembro também agora, de um outro poema passado neste ambiente mas, do João Cabral de Melo Neto, chamado “Funeral na Inglaterra”. Como vê, anda muito bem acompanhado.

Felicito pelo novo livro desejando futuras inspirações.

Grande abraço!

          O Legado da Loucura mostra a hipocrisia humana através do relato da vida de um demente, personagem principal da história, que, de repente, com sua morte, transforma-se no centro de uma comédia, que é a disputa por sua inusitada herança, flagrante da miséria e da hipocrisia. É uma história concretizada num país irreal chamado Brasil, onde mais vale um quinhão do poder que a serenidade para enfrentar o julgamento da posteridade.

Por se desenrolar em plena capital federal é uma pérola em situações surrealistas. Se não, onde um presidente de república, etilicamente perturbado, exigiria que seu avião, de última geração, aterrissasse e viesse buscá-lo diretamente no salão de festas de um edifício residencial, coincidentemente chamado Juscelino Kubistchek? A cena da chegada do mandatário maior, habilmente descrita por Astrogildo Miag, mostra o humor diluído em todo o livro:

“Finalmente, o presidente pisa o solo sagrado do salão de festas. Usa um boné combinando com a jaqueta safári na cor bege. É ovacionado intensamente. A emoção toma conta dos aduladores. De imediato, a autoridade é conduzida ao local reservado ao pronunciamento, que começa em tom bem emocionante. Apresenta-se como o protetor dos pobres, o único presidente que nasceu pobre e carregou água nas costas para não morrer de sede e de fome. E confessa: ‘Sim, minha gente, pela primeira vez, vou falar uma coisa que marcou a minha infância: eu também carregava água para vender e encher os banheiros e as privadas das casas dos ricos, pois naquele tempo não existia água encanada. Não existia nem luz! Eu é que estou iluminando e colocando água encanada nas casas de todos os pobres desta nação. É por isso que estão me caluniando, me chamando de corrupto!’”.

Como o Brasil é país do surreal, o fantástico do fantástico, onde tudo é possível, retrataria O Legado da Loucura uma história real? A melhor forma de averiguar é ler o livro.

       Palavras do autor

           O Brasil é um compêndio da história universal. Um pouco do que existe no mundo. O fantástico do fantástico, a exuberância da natureza avançando agressiva em busca da própria sobrevivência. — Como resistir a tanta violência se não através da violência? — O Homem agride; em represália, sofre as conseqüências da sua agressão. A natureza escarrando dengue nas metrópoles nacionais. A febre amarela rural invadindo as cidades. A tuberculose sorrateira, às escondidas, respondendo ao descaso com a saúde do povo, mata anualmente mais de cinco mil brasileiros. O bolo econômico crescendo, mas diminuindo a participação do trabalhador, conseqüência da degeneração educacional. Ganha mal e o futuro não lhe oferece perspectivas.

O Legado da Loucura é uma história concretizada num país irreal chamado Brasil, onde mais vale um quinhão do poder que a serenidade para enfrentar o julgamento da posteridade. A vida do personagem principal passaria despercebida se o destino não lhe criasse situações inusitadas pelo surrealismo. O poder não tem face e a tudo aproveita, até a desgraça de outrem. Poder não é apenas a força moral, econômica ou política que obriga à obediência; é associar o destino das pessoas à vida e ao destino do poderoso.

Foi o que aconteceu com José de Arimatéia Gusmão, o Zé Besta, personagem principal da história, um demente na capital federal ou em qualquer outra grande cidade do país. De repente, com a morte, transforma-se no centro de uma comédia, que é a disputa por sua inusitada herança, flagrante da miséria e da hipocrisia.

Embora prefira escrever sobre fatos, não sei se essa é uma histórica verídica. Como disse, o Brasil é o país do surreal, o fantástico do fantástico, onde tudo é possível. Até mesmo a existência desse legado, o da loucura.

  Prólogo

O Legado no Direito das Sucessões

           No Direito Civil brasileiro legado é disposição de última vontade, através de testamento, quando o testador, com o advento da sua morte, deixa para alguém uma ou mais coisas da sua herança. Não incide sobre um percentual ou sobre tantas partes dos bens do falecido; mas, sobre bens determinados, especificados e individualizados ainda em vida. Precisamente, é a disposição e a vontade do testador de deixar coisa certa e determinada,  benefício ou vantagem econômica para alguém, que pode até não ser herdeiro legal.

Pressupõe necessariamente duas pessoas: o legante ou autor da herança transmitida; e o legatário, pessoa que a recebe. Todas as coisas que possam ser negociadas e proveitosas ao legatário são possíveis de legação, como dinheiro, imóveis, títulos, ações, veículos, animais, etc. Como ninguém pode dispor e doar o que não tem, é essencial que os bens legados constituam patrimônio do legante por ocasião da sua morte.

O caso específico deste livro foge aos padrões. Não existe propriamente um testamento determinando legação. Sem contar que a loucura torna a pessoa incapaz para exercício de qualquer ato civil, inclusive fazer testamento e legar, a herança do falecido existe apenas na imaginação do escritor e dos personagens que dela querem tirar proveito.

  Início da história

           Abre a gaveta, revira papéis à procura do pente de cabelo. Mãos aos bolsos. Espia o chão, o canto, ao lado do tapete. Teria caído no cesto do lixo? Quero ver quem vai pagar, pensa alto. Alguém responde “quem vai pagar sou eu”. Assusta-se. É um homem jovem, moreno. A melhor postura é levantar a cabeça e empinar o nariz; nunca demonstrar medo. E assim faz: Pois não, que deseja? A resposta vem imediata: Estou procurando o 401. Falar com quem? Com o 401. O nome da pessoa? Já disse: com o 401! Sinto muito, não pode; o senhor não é morador. Mas vou subir, quero o 401. O senhor não é morador; para subir tem que avisar. Então avise! Como, se o senhor não sabe nem com quem vai falar? Sei, sim: vou para o 401. É o número do apartamento! Tem que falar o nome da pessoa. Amigo, vou para o 401; o nome é esse. Desculpe, mas, não pode subir. Vou subir, sim! Vou chamar o segurança. Segurança, aqui sou eu, besta. Besta é o senhor; tenha respeito! O senhor está em propriedade particular. É minha também, besta. Aqui o senhor não tem nada. Tenho mais que você, besta. Besta é o senhor! Vou mandar o segurança prender o senhor. Fugi agora, agora, besta.

O porteiro assusta-se. Fugiu de onde? De lá, besta. Por que tanto besta? Porque sou besta. E deixe de ser besta. Estou me zangando com o senhor; vou chamar a policia. A polícia, não, besta. Por que a polícia não? Estou armado, besta.

Seria assalto?

O porteiro pergunta, ao homem, o que quer. Novamente, besta? Quero falar com o 401. Diga o nome. Pelo amor de Deus, diga seu nome! Zé Besta, filho de Zilda. Filho de quem? Dona Zilda é sua mãe?

O porteiro comunica-se:

— Diz que é filho da senhora.

— Só tenho um filho e está longe, no exterior!

— Pois, está aqui um rapaz dizendo ser seu filho. Quer subir de qualquer jeito! E só me chama de besta. — O porteiro percebe a reação nervosa da mulher… — Dona Zilda, está se sentindo mal?

— Não, senhor, tudo bem. Como é o nome dele?

— Diz que se chama Zé Besta.

— Seu Beto porteiro não deixe esse homem subir! É maluco. Estava internado no HPAP.

— É seu filho, dona Zilda? Não disse que ele estava no exterior?

— Só Deus sabe por que falei isso. Pelo amor de Deus não deixe subir. Quando a loucura ataca, foge do hospital. Não deixe subir!  A última vez incendiou meu carro. O senhor lembra?

— O carro que pegou fogo? Mas, não foi o ladrão?

— Não ia dizer que fora meu filho. Por tudo na vida, não deixe subir!

Desligou o interfone.

O visitante impacienta-se. — Falou? Falou com o 401? Não está? Deve ter ligado errado. Quero subir.

— Não pode. Não tem ninguém em casa.

— Melhor, porque fico sozinho.

— Não pode subir. — Mas vou. — Não vai. — Vou. — Não vai. — Vou. — Não vai…

O diálogo continuou por longos minutos até que Zé Besta afastou-se, repetindo vou subir, vou subir, sim, vou subir…

Não subiu. Nunca subiu; mas, ficou morando naquele condomínio do edifício Juscelino Kubistchek, em Taguatinga, cidade satélite de Brasília, capital federal, trezentos mil habitantes, com feições comuns a qualquer edifício residencial de uma cidade grande. Também não voltou ao hospital. A loucura o encerrava em si mesmo, seu corpo era sua própria casa. Dormia na área térrea comum do edifício, ao lado das garagens, sobre papelões que lhe serviam de cama. Manhã cedo recolhia os pertences num surrão de náilon; ou seja, num saco de náilon, capacidade para sessenta quilos, desses de guardar e transportar feijão, arroz ou farinha. Transpassado ao ombro, o acompanhava a lugares só por ele conhecidos.

Quando a chuva resolvia perturbar-lhe o sono, acomodava-se numa tábua estendida sobre velho pneu automotivo; suspenso, livrava-se da água que ensopava o chão. Se o frio da noite brasiliense ultrapassasse o suportável, acomodava-se no primeiro veículo com porta não trancada — embora fechada. Manhã cedo, constatava-se a contravenção.

— Zé Besta entrou no meu carro! Não vi, mas sei pelo cheiro. Bote a cabeça aqui…

Era o cheiro nauseabundo de Zé Besta, coitado. Dias e dias sem banho e vestindo a mesma roupa. O corpo só sentia água quando o dono ganhava roupa nova. Sorrateiramente, sacola na mão, em algum lugar banhava-se e barbeava-se. Retornava renovado para mais algumas semanas na escuridão e na sujeira da loucura.

Às vezes, causava atrito entre moradores. Agostinho Maranhão, servidor concursado da Receita de Brasília, detestava Zé.

— Esse maluco não pode ficar aqui, em hipótese nenhuma! O pior doido é o doido manso. Quando a loucura ataca mete a faca em qualquer um.

— Calma, seu Agostinho. Doido também é filho de Deus.

— Estou me referindo ao doido. Entendeu? Ao doido! E não me peça calma, pois não estou nervoso. Não me peça calma! Da próxima vez vou descer o braço! Sabia que já estive internado? Vai me pedir calma novamente? Não me peça calma!

— De jeito nenhum! O senhor não está nervoso.

— Não estou mesmo não! Vou repetir: esse maluco ainda vai fazer uma besteira nesse prédio.

O interlocutor escapuliu sorrateiro para a rua, amedrontado ante a presença forte de Agostinho Maranhão.

Zé Besta tinha a quem recorrer. A mãe não o deixava passar fome. Cedo ainda, mandava-lhe café com pão; comia prazerosamente. Às vezes, quando atacado, lançava a vasilha do café ao pátio: “Não sou cachorro! Quero subir. Quero subir…”.

Não realizou sonho tão pequeno: subir ao apartamento da mãe, egressa da região cacaueira da Bahia. De família de posses, que viveu a época áurea da cultura, quando cinqüenta hectares da lavoura proporcionavam vida fausta e passeio anual pela Europa. Depois veio a vassoura de bruxa, dizimou os cacaueiros e trouxe aos agricultores dificuldades — para muitos, a miséria.

Zé Besta não tinha noção do tempo; dias, semanas ou meses na rotina. Levantava-se do papelão, ia à torneira externa, completava com água pequena lata, à guisa de caneco; e, atrás dos veículos, procedia a higiene matinal. Ninguém testemunhava tal higiene. Após, a irmã o chamava. “Zé! Tome o café!”. Não reagia. Silenciosamente, recebia a comida sem olhar o rosto da irmã. Se esta trouxesse alguma peça de roupa, oferecia: “Tome essa roupa limpa”. Recebia sem agradecer. Não falava se vestiria ou não; se resolvesse, apareceria tomado banho e vestindo a roupa nova. Talvez, na madrugada cerrada de Brasília — quando o frio afugenta os homens, veículos recolhem-se e até as almas dormem — mergulhasse em algum córrego cristalino entre as cidades satélites de Taguatinga, Samambaia e Ceilândia, para livrar o corpo da sujeira.

Uma vez ao ano perdia a noção das coisas. Acordava já urinando, ao lado mesmo da cama improvisada. Decidia tomar banho, nu, naquela torneira externa. Era um vexame.

— Zé Besta está tomando banho pelado na vista das mulheres! Vou embora desse prédio. — Queixava-se Agostinho Maranhão, o primeiro a levantar-se para levar o filho Júlio à escola e, dali, ao expediente no Plano Piloto[1].

— Ainda vou enxotar esse maluco! Se minha mulher o ver nu, vou dar uma surra. Não quero nem saber se é doido. Vou dar uma surra! Vou embora desse prédio a qualquer hora.

Um dia, Zé jogou o grande surrão de náilon nas costas e saiu — quem sabe, até para o banho quinzenal. Alheio ao mundo e aos veículos que subiam e desciam velozes foi atropelado em frente ao condomínio, na perigosa Avenida Samdu Norte, ao lado da Faculdade Projeção, quase no centro de Taguatinga.

Ouviu-se um frear brusco e uma pancada abafada. Nem um gemido. O porteiro Humberto dos Santos, conhecido como Beto porteiro, indagou ao zelador Carlomar, baiano de Santa Maria da Vitória, que batida fora aquela. Foi aqui perto, respondeu Carlomar. Os dois saíram. Quem ficaria na portaria, lembrou Beto; o zelador retornou e assumiu o posto. Beto atravessou o pátio, abriu o portão, rompeu a distância que o separava da Avenida Samdu Norte e deparou-se com a cena.

— Foi atropelamento! Parece que morreu!

O atropelador fugiu sem prestar socorro. Oliveira, piauiense de Oeiras, barraqueiro, há mais de dez anos vendendo doces, salgados, refrigerantes e outras bebidas ao lado do edifício, gritou…

— Vai embora sem dar socorro? Já anotei a placa, seu irresponsável!

O motorista nem ouviu. Engatou a primeira marcha, jogou direto a terceira, atravessou a faixa de pedestres sem parar e quase atropelou um transeunte. Oliveira ainda pediu ajuda ao policial do batalhão escolar que tirava serviço em frente à Faculdade.

— Policial, pega esse carro aí! Acabou de atropelar uma pessoa! Está fugindo sem dar socorro!

Quando o militar terminou de ouvir a história o veículo já dobrava para a grande Avenida Comercial Norte, mais de seis quilômetros de extensão, de onde tomaria o Pistão Norte, uma das saídas de Taguatinga para a grande capital federal.

Todos correram para ver quem era a vítima.

— Quem é, Oliveira?

Oliveira levantou a cabeça do rapaz…

— Não queiram nem saber…

— É conhecido? É morador daqui?

— Como se fosse.

— Mora em que apartamento?

— Em apartamento nenhum.

— Então não é morador.

— É o morador mais conhecido.

— Oliveira, pelo amor de Deus! É gente do prédio? Carlomar, venha me ajudar! Não posso ver sangue. — confessou Beto porteiro — Vou desmaiar…

E desmaiou mesmo.

Paulo Ribeiro, piauiense do 406, escrivão de polícia, olhos com lentes de fundo de garrafa, perguntou o que acontecia. Um ladrão que queria roubar o condomínio, responderam. E roubou? Parece que sim; mas foi pego. Levaram pra onde? Lincharam. Aqui no condomínio? Isso é atitude de animal! A justiça não deve ser feita com as próprias mãos. De tanto apanhar parece que morreu, informaram. Quem foi o responsável? Alguém filmou? Se filmou guarde a fita porque vou denunciar!

Carlomar, o zelador, apareceu com a vassoura na mão. Pra que essa vassoura, idiota! — perguntaram. Pra segurar o atropelador se ele quiser fugir, respondeu o rapaz. Chegou tarde, já fugiu!

Carlomar, ainda com a vassoura, foi interpelado por Paulo Ribeiro.

— Você participou do linchamento, não foi? Negue se puder! Ainda está com a arma do crime!

— Eu mesmo não, seu Paulo. Eu não! Que arma?

— A vassoura usada para abater a vítima. Será arrolado como co-autor. Vai informar o nome de todos que participaram.

— O rapaz fugiu, seu Paulo!

— Foi um só?

— Parece que eram dois.

— Vai ter que dizer os nomes e onde moram. Vou mandar prender você. Aliás, eu mesmo prendo; qualquer cidadão pode prender em flagrante delito. Esteja preso!

Carlomar chorou.

— Não fui eu. Não fui eu…

— E quem foi?

— Não conheço.

— E essa vassoura?

— É de lavar roupa.

— Lavar o quê?

— Lavar roupa do prédio.

— Você trabalha no prédio?

— Trabalho, sim, senhor.

— É lavador de roupas? Nunca vi isso. E lava roupa com vassoura?

— Lavo, não, senhor.

— Não acabou de dizer que a vassoura era para lavar roupa?

— É não! Vassoura é pra varrer o chão. Estava varrendo o corredor. Nem terminei. O senhor vai me prender?

— Vou livrar o flagrante porque sei onde encontrar você.

Carlomar agradeceu. Jurou por Deus não ter sido ele. Ainda aos soluços, encontrou sargento Jânio, da Polícia Militar, morador do prédio; branco, forte, cabeça raspada com máquina zero, orgulhoso de ser militar.

— Sargento, me acuda! Mataram um homem, o delegado está dizendo que fui eu!

— Mataram onde, paisano?

— Aí no asfalto. Está lá estirado. O delegado disse que fui eu.

— E foi você? De onde é esse delegado? Então fuja! Se não foi você, fuja. Se pegarem, até se explicar e contratar advogado já apanhou muito.

— Vou fugir como?

— Entre no meu carro e se abaixe. Depois procure lugar seguro para se esconder.

— Vou embora pra Bahia. Vou voltar pra Santa Maria da Vitória.

Carlomar esquivou-se para entrar no Monza vermelho do Sargento Jânio, que perdeu a paciência.

— Anda logo, paisano! Ninguém pode ver. O que estou fazendo é crime. Eu sou militar e estou dando fuga a criminoso!

— Não fui eu, sargento. Juro!

— Já disse: até você se explicar…

Carlomar não conseguia entrar no veículo. Jânio gritou:        — Larga essa vassoura, paisano! Pra que essa vassoura?

— O delegado disse que foi a arma do crime; não vou deixar aqui, não.

— Você matou mesmo?

— Deus me livre! Mas tenho medo do delegado provar que fui eu.

O veículo saiu cuspindo fogo. O zelador abaixado atrás, vassoura sobre o banco. Alguém levantou a mão, pediu que parasse o veículo. O Monza gemeu, mas atendeu à ordem do dono: imprimiu velocidade e obrigou todos a dar passagem. Carlomar apavorou-se.

— O que foi, Sargento? É o delegado?

— Vou me complicar por sua causa. Posso estar cometendo um crime.

Alguém chamou a polícia. Ouviram-se as sirenas intermitentes e os hotlaines de cinco camionetas cabina-dupla, e a polícia compareceu com suas viaturas moderníssimas, de última geração, capacitadas para tráfego até em estradas rurais, acompanhadas por seis motocicletas igualmente equipadas. O povo se assustou.

— Meu Deus, pra que tudo isso? É guerra?

Os policiais desembarcaram como tropa de elite, como de fato eram. Com os cassetetes invertidos no braço, cutucavam o povo enquanto pediam passagem. Os policiais motociclistas avançaram sobre os curiosos e ordenaram:

— Ninguém encosta para não modificar o local do crime até a perícia chegar!

As viaturas recém-adquiridas, que na semana anterior desfilaram pelas ruas do Distrito Federal, provando ao povo a preocupação do Governador com a segurança pública, mostravam os hotlaines grandes e escandalosos, vermelhos, amarelos e azuis, visíveis a quilômetros de distância. Os maliciosos comentavam não saber o objetivo de tantas luzes coloridas: se mostrar a presença policial ou alertar infratores e bandidos para a fuga.

Beto porteiro cruzou a entrada principal do prédio aos soluços. Alguém o interpelou:

— Por que tanto choro, seu Beto? Era parente do ladrão?

— Não era ladrão, não, seu Lúcio. Era pessoa boa, não incomodava ninguém. Uma vez ou outra é que fazia aquilo…

— Ainda tem coragem de defender ladrão? Esse povo é viciado. Rouba uma vez, gosta; não pára nunca mais!

Hélio Idálio, na portaria do prédio, cercou Beto de perguntas. — Mataram mesmo? Sabe quem foi? Chamou a polícia? Foram quantos tiros?

Beto não teve nem tempo de responder. Deparou-se com a irmã de Zé Besta, caneco e pão de sal nas mãos. Ao vê-la, chorou copiosamente. Assustou a mulher, que reagiu:

— Sai de mim! Ando cheia de assombração. — Beto soluçou mais ainda… — Sinto muito; muito mesmo… — Vá caçar o que fazer! Nunca lhe dei ousadia. Comigo não, violão… — O porteiro apiedava-se da moça; aconselhava. — Pelo amor de Deus, tenha calma. O mundo não se acabou. — Se continuar com ousadia vou chamar meu namorado. Aí você se explica a ele. — respondeu a irmã. Beto porteiro estendeu a mão em pêsames; a reação foi enérgica. — Não me toque! Queria que esse meu irmão não fosse maluco. Ia aprender a respeitar mulher dos outros!

Maria do Carmo caminhou ao pátio com o café e o pão, à procura do irmão. — Zé!… O café! Toma seu café. Hoje tem ovo e o pão está com manteiga!

Zé não respondeu, nem poderia; já partira. Ficou o corpo sujo na véspera do banho quinzenal. A irmã ainda o procurou, olhou atrás dos veículos. Chamou várias vezes até desistir. — Não vem porque não está com fome. Agora só amanhã!

Retornou à portaria. Beto porteiro, debruçado sobre a mesa, olhos inchados. A mulher pediu informações…

— Viu Zé, meu irmão?

O porteiro assustou-se: Viu quem?!

— Zé, meu irmão.

— Era o que ia lhe dizer.

— Diga, então! O senhor estava era com ousadia.

— Dona Maria do Carmo, eu gostava muito de seu irmão, apesar de ser um doente.

— Não gosta mais por quê?

— Ele foi embora.

— Tão cedo assim, não tomou nem o café.

— Ele tinha quantos anos?

— Só minha mãe sabe. Foi pra onde?

— Ele morreu, dona Maria do Carmo! Está estirado lá no asfalto da Samdu.

— É uma infâmia! Quem está estirado é o ladrão e meu irmão nunca foi ladrão. Doido era, ladrão nunca!

Das escadas sai Oliveira da barraca amparando a mãe do infortunado. “Por aqui, dona Zilda, devagar”. A mulher, sisuda; Maria do Carmo pergunta-lhe se Zé era ladrão.

— Seu irmão era um santo! Nasceu pra sofrer. Quando tinha dez anos notei alguma coisa errada. Na seção espírita fiquei sabendo que a missão dele era sofrer até completar as obrigações de outra vida, quando foi padre. Descanse em paz, meu filho!

— Era ladrão ou não era? O povo está falando que um ladrão morreu; esse moço aí, o porteiro Beto, disse que foi Zé que morreu. Por isso estou perguntando. — Sem resposta às indagações, Maria do Carmo continuou a cantilena. — Quem começou o linchamento foi o zelador Carlomar que trabalha no prédio. Fugiu com o porrete usado para matar o ladrão…

O oficial militar comandante da operação dirige-se a Maria do Carmo, irmã do atropelado:

— A senhora não pode viajar; está à disposição do delegado responsável pelo inquérito policial. O rapaz foi linchado mesmo? — Oliveira intercedeu. — É mentira, tenente. O rapaz foi atropelado em frente da minha barraca. Era conhecido. Nunca foi ladrão!

— A informação era que ele ia com vários sacos de mercadoria.

— Os sacos eram a vida dele. O rapaz era maluco! No saco carregava todas as suas posses: pano, papelão e outras coisas. Essa é a irmã — vira-se a Maria do Carmo. — E a mãe do morto vem chegando aqui.

Zilda rompe a pequena multidão ao encontro do filho. As pessoas já cobriam o corpo do morto com folhas de jornal. Coincidentemente, utilizavam folhas de um tablóide sensacionalista dedicado só à cobertura da violência que tanto tem crescido no Distrito Federal. A primeira página estampava um corpo em chagas e coberto de sangue. Zilda assustou-se:

— É meu filho que está nesse jornal? Não é possível meu Deus!

Oliveira pediu calma. A fotografia não era do filho dela, pois ainda não dera tempo de sair no jornal. Mas, a senhora se prepare porque vai sair no jornal de amanhã, preveniu o barraqueiro enquanto completava o raciocínio: — Onde houver sangue esses jornais estão em cima. Parecem urubus. E são vários, cada um mais cheio de sangue que o outro. Se apertar, espirra sangue pra todo lado!

A mulher resignara-se. Limpou as lágrimas com uma camisa de malha branca como se lenço fosse. Pediu licença para aproximar-se do corpo. Ajoelhou-se…

— Meu filho, finalmente Deus lembrou de você. Trouxe-lhe o descanso eterno. Vá com Deus, meu filho…

As lágrimas brotaram abundantes dos olhos da mãe. Molham o rosto de Zé Besta, despertando-o. Abriu os olhos, olhou em volta. Oliveira levantou os braços e gritou com todas as forças.

— Milagre! Milagre! Chamem o padre Moacir Simões, pois aconteceu um milagre!

A mãe chora mais ainda. O barraqueiro, emocionado, faz coro com o chororô de Zilda. Beto porteiro, católico praticante, freqüentador fervoroso das pregações do padre Moacir Simões, contagiado pela alegria joga-se sobre o corpo de Zé Besta. Este o repele energicamente:

— Sai pra lá que não gosto de veado!

— Um milagre, minha gente! Zé Besta ressuscitou!

A mãe pedia, aos prantos, pedia…

— Zé, fale com sua mãe! Terá sido milagre, meu Cristo Redentor? Fale com sua mãe, meu filho! Fale com sua mãe!

O povo participava da emoção. Êxtase. Um clima sobrenatural circulou sobre a pequena multidão. Os policiais, também envolvidos na emoção do momento, ligaram as sirenas e os hotlaines das viaturas. O pisca-pisca vermelho-amarelo-azul decorou o ambiente e chamou a atenção de toda a área de influência das avenidas Comercial Norte e Samdu. Da QNL de cima, também chamada “L” norte, avistava-se o reflexo das luzes dos hotlaines. Os discentes[2] de cursos profissionalizantes que aguardavam o horário de abertura dos portões da escola do SESI, no início da ladeira da chácara Onoyama, perguntaram-se, admirados, a razão de tantas luzes coloridas. Muitos deliberaram verificar pessoalmente os acontecimentos. E fizeram fila rumo à Samdu Norte, origem do burburinho. A grande ladeira coloriu-se com os tops e roupas de ginásticas de pessoas que caminhavam nos calçadões em busca de saúde e de beleza. Uma Van do transporte alternativo, oportunista, parou no meio da ladeira; o cobrador, após falar todo o itinerário do veículo, perguntava…

— Quem quer subir a ladeira pagando apenas cinqüenta centavos?!

Logo o veículo estava lotado. Mesmo sem lugares, muita gente queria entrar e vencer a grande ladeira pagando apenas cinqüenta centavos. Um outro veículo do transporte alternativo parou incontinente, certamente com a intenção de também se beneficiar. E deu certo. Quando o terceiro veículo manobrou para encostar-se ao meio fio, ouviu-se uma pancada forte. Um velho caminhão sem freios, carregado de entulhos, chocou-se violentamente na traseira de uma das Vans e os dois rolavam pelo precipício lateral. Após, um clarão seguido de grande explosão. O sangue manchou de vermelho a vegetação. Acontecia grave acidente, talvez com vítimas fatais.

O grande estrondo foi ouvido na Avenida Samdu, inclusive no local onde a mãe de Zé Besta glorificava a Deus e agradecia o milagre da ressurreição. Emocionada, pedia ao filho que falasse algo que lhe trouxesse a certeza que tudo era real; não um sonho ou pesadelo.

— Meu filho, fale com sua mãe. Pelo amor de Deus, fale com sua mãe.

Zé Besta, atordoado, sem juízo para entender, abriu os olhos e respondeu com uma interrogação:

— Falar o quê?

— Que aflição, meu filho! Achava que Deus tinha lhe dado o descanso dessa vida.

O atropelado resmungou para si mesmo, como era bem do seu feitio…

— Tou cansado, não; tou é com uma dor nos peitos.

— Onde?

— Nas costas.

— Onde?

— Nos braços

— Onde está doendo? No peito, nas costas ou nos braços? — e concluiu preocupada como todas as mães — Vou levar você ao médico!

A reação de Besta foi imediata. Enrijeceu o rosto magro e falou seguro:

— Médico, não! Vai querer me internar.

— Está doendo onde mesmo, meu filho?

— O corpo todo. Parece que tomei surra de porrete.

— E a cabeça?

— Meio zonza com esse povo todo em cima.

— Vamos para casa.

— Não! A senhora vai me internar.

— Vamos tomar um banho.

— De jeito nenhum! A senhora quer me internar.

— Vamos tomar um copo de leite, pelo menos?

— A senhora quer que eu durma pra me internar. Prefiro morrer.

— Não fale em morte, você acaba de ressuscitar.

A notícia já corria a vizinhança. Até o expediente da agência CNB-12 do Banco do Brasil foi suspenso. O gerente não entendeu a razão dos clientes evadirem-se ao mesmo tempo do estabelecimento. Amedrontou-se. Pensou na possibilidade de um grande assalto, igual ao que a Televisão mostrara na noite anterior, quando mais de quinze ladrões invadiram pequena cidade de Goiás, próxima a Brasília, e assaltaram a agência do mesmo banco. A televisão mostrou a crueldade dos bandidos, armados com fuzis e metralhadoras.

Ainda com a imagem na mente, o gerente da agência deliberou encerrar o expediente externo. Imediatamente, telefonou à Central de Polícia e pediu reforços policiais no limite máximo, para enfrentar quinze ladrões armados até os dentes!

Após o encerramento, formou-se pequena confusão entre funcionários e clientes, principalmente os apressados em realizar depósitos para cobertura de cheques que entrariam pela compensação bancária, logo mais à noite.Todos discordavam do fechamento da agência antes do horário de lei. Neste sentido, Leonardo Pedron, concluinte de Direito na Universidade Católica de Brasília, socou a porta de vidro, exigiu que fosse aberta para acesso do mesmo à agência, sendo-lhe negado. O futuro advogado, dedo em riste, prometeu processar a Banco do Brasil.

— Vou processar esse banco! O horário de funcionamento tem de ser cumprido. Quem vai pagar os prejuízos que cada um incorrerá? Me digam: quem vai pagar meu prejuízo?

Alguém achou por bem perguntar qual o prejuízo do futuro advogado. Pedron, investindo-se na condição de aluno aplicado desde a escola primária, manifestou a razão do seu prejuízo.

— Vim pagar um boleto do concurso para Procurador da República. E hoje é o último dia! Não vou poder participar do concurso, que estou estudando pra caramba e ia passar! Sabe qual o salário de um Procurador? Mais de vinte mil reais! Esse será meu prejuízo. Vou entrar com uma ação de reparação de danos materiais, cujo valor será o salário mensal multiplicado pela quantidade de meses até a minha morte. E ainda vou requerer danos morais. Me aguarde, Banco do Brasil!

Aos presentes na porta da agência bancária só restou aplaudir a confiança do concluinte de Direito e ex-futuro Procurador da República. Que entrasse mesmo na justiça!

Como sempre acontece nessas ocasiões alguém achou por bem convocar a imprensa para flagrar possível agressão aos direitos da coletividade. Pelo celular, ligou para a emissora de televisão de maior audiência em Brasília, que não demonstrou interesse em razão da cobertura de um torcicolo que acometera dona Maria Silva, cidadã brasileira e italiana, esposa do presidente de uma república.

A emissora de segunda maior audiência não garantia enviar reportagem, por conta da chegada do Bispo Valdir Alfredo para inauguração dos novos transmissores, que colocariam a emissora em primeiro lugar na audiência dos brasilienses.

Ante tantas negativas e já com os créditos do celular se esvaindo, deliberou, então, solicitar mesmo a presença da emissora local, que desfrutava até certa aceitação na preferência popular. E tinha uma programação boazinha, principalmente o programa de Valdete Silva, coluna social eletrônica escancarada pelos lábios vermelhos e carnudos da apresentadora.

Aguardaram então a chegada da reportagem para flagrar o desrespeito ao público.

Na Avenida Samdu, local do acidente que vitimou Zé Besta, um veículo estaciona próximo à multidão. Era o padre Manoel Moacir Macedo Simões, mais conhecido como Moacir Simões, vigário da Paróquia Cristo Bom Pastor, com a estola sobre o pescoço e batina branca, que só vestia para ministrar um santo sacramento. Na mão esquerda, pequeno balde com água benta; importante, considerando que faria encomendação da alma do morto. Conduzido ao local onde prostrava o corpo de Zé Besta, o padre anunciou o motivo da presença.

— Vamos encomendar a alma do cristão que morreu!

A mãe arregalou os olhos. Estaria sonhando e seu filho teria morrido mesmo? O providencial Oliveira adiantou-se e fechou a passagem ao padre, enquanto falava em bom som…

— Morreu não, padre!

— Como não morreu? Fui chamado para dar a extrema-unção.

— Mas não morreu, não.

— Me disseram que o corpo estava estendido no asfalto. Foi linchado pela multidão.

— Foi atropelamento, não foi linchamento.

— Levaram pelo menos ao hospital?

Não houve tempo para resposta. Ao ouvir a palavra hospital, Zé Besta levantou-se num pinote! A mãe ainda tentou acalmá-lo.

— Meu filho, tenha calma! Ninguém vai levar ao hospital.

Era tarde. Zé virou-se, mostrou a grande chaga nas costas causada pelo atrito do corpo com o asfalto. Em carne viva! Tentou pegar o saco com suas coisas inválidas. Era pesado, teve dificuldades; deixou o surrão, e, correndo, rompeu a multidão. Atravessou a calçada, desembestou subindo em direção à Avenida Hélio Prates, que dá acesso à cidade de Ceilândia, a maior e mais populosa do Distrito Federal.

Corria sem olhar os lados. Invadiu um cruzamento perigoso, obrigou um automóvel a frear bruscamente para lhe dar passagem. Um ônibus vinha em alta velocidade, o motorista ainda tentou brecar, mas… Impossível! O veículo arrastou os pneus pelo asfalto no barulho característico da frenagem. Ouviu-se uma pancada seca, morta… De morte mesmo!

O povo acompanhava. A mãe desmaiou. Beto porteiro, sem ação, rezou o Pai Nosso. Padre Moacir Simões pediu clemência e louvor. — Tende piedade, tende Piedade, Senhor! Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

Oliveira da barraca viu o motorista do ônibus fugindo. Não tivera culpa; mas, era errado negar socorro. Repetiu a mesma frase: “Não vai dar socorro não, irresponsável?”. Beto porteiro, vendo Zé Besta caído, sentenciou:

— Agora morreu mesmo.

A mãe perdeu os sentidos. Foi amparada por Oliveira, que a conduziu às dependências do condomínio.

Padre Moacir Simões, sem ação, repetia para si mesmo não ter sido o culpado pelo atropelamento. Rezou baixinho o creio em Deus Pai.

Beto porteiro arriscou aproximar-se um pouco do corpo moribundo. Arrependeu-se ainda em tempo; não viu a grande poça de sangue manchando o asfalto, e livrou-se de mais um desmaio. Não acostumado a cenas tão fortes, escorregou direto ao banheiro e danou-se a vomitar.

O povo cercou o corpo estendido no asfalto.

Surgindo do nada, o veículo de um jornal sensacionalista, especializado em sangue, estacionou sobre a calçada lateral. Dois repórteres iniciaram a sessão de fotos já para a próxima edição, logo mais. Procurando melhor ângulo para mostrar o estrago da morte, tentaram até mudar a posição do corpo. Conseguiriam não fosse a posição firme de Oliveira, que impediu a movimentação do corpo, capaz de gerar perda do direito à indenização do seguro obrigatório.

O trânsito ficou lento desde o início da avenida, ainda no centro de Taguatinga. A curiosidade obrigava os motoristas estacionarem nas imediações do acidente, tornando mais lento a fruição do tráfego. Logo, prepostos da fiscalização de trânsito ameaçaram com multa e perda de pontos na carteira nacional de habilitação a quem insistisse parar nas imediações do acidente. Mesmo assim, não conteve a curiosidade de muitos motoristas.

Um veículo preto e luxuoso, do Senado Federal, chapa preta, cortou a multidão. Alguém gritou:

— Está maluco, ladrão! Corre assim porque o carro não é seu. Tira o jornal para a gente ver a cara!

Certamente não era um senador da República. Ou talvez fosse, tudo é possível quando se refere ao Brasil “do faz de conta”, que, infelizmente, é real.

Temendo represálias, o motorista, terno preto, acelerou e o veículo “comeu asfalto”. No banco traseiro, lado direito, indiferente ao murmurinho da morte, o passageiro continuou lendo o jornal. Afinal, precisava chegar ao plenário da casa bem informado.

O ônibus da viação Planan com destino a Águas Lindas, no Goiás, quase não consegue frear. Por pouco não atropela a multidão. Alguém grita filho da puta! O motorista pede desculpas, e segue para a cidade que mais cresce no Brasil. Em pouco mais de dez anos a população pulou de dez mil para cem mil habitantes, trazendo todas as mazelas de um crescimento urbano desordenado. Quem quiser posgraduar-se em urbanização deve fazer estágio em Águas Lindas. Sairá doutor em situações urbanísticas inusitadas.

Uma vendedora de mingau de milho assentou o tabuleiro próximo à multidão. Colocou o cartaz: “Promoção — ingau, só cinqüenta centavos”, esquecendo a primeira letra da palavra. Várias pessoas acorreram ao ingau de cinqüenta centavos. Alguns não sabiam nem o que era; indagavam: “O que é ingau, que a senhora está vendendo à cinqüenta centavos?”. Mingau, ora… — respondia a mulher. Está escrito ingau, informou a cliente. A do mingau pediu desculpas; culpa da neta que ainda não sabia escrever direito.

A senhora que vendia cuscuz-com-ovo ao pé de um canteiro de obras, cuja clientela era trabalhadores nordestinos apreciadores da iguaria, parou ao lado. Perguntou se podia também vender ali. O chão é público, minha filha, respondeu a do mingau. “Vou atrapalhar? Por que esse povo todo?”. A do mingau respondeu desinteressada…

— O que é, não sei; vi o povo e parei pra vender meu mingau. Hoje está ruim mesmo…

Aparece a irmã de Zé Besta, Maria do Carmo. Meu irmãozinho… Debruçou-se sobre o corpo duplamente atropelado. Como é grande a dor de perder um irmão querido, confessou.

Lúcio Vargas, residente no condomínio Juscelino Kubistchek, saia ao trabalho, cumpridor dos deveres de servidor público. Antes foi conferir a tragédia. Assustou-se ao saber ser a vítima Zé Besta, a quem conhecia e via passar diariamente com o grande saco de molambo nas costas.

— Um bom rapaz. Ninguém falava mal dele, fora o fato de tomar banho nu de vez em quando.

— Muito errado, seu Lúcio; cometia atentado ao pudor.

— Mesmo assim, só tomava banho nu de madrugada.

— Conheço gente que prometeu surra a ele.

— A vida já o maltratava demais. Veja aí o resultado… Se o governo de Brasília fosse outro, esse coitado não ficaria à toa na vida. Queria que o Presidente Lula tomasse conta também de Brasília. Com certeza criaria um bolsa família só para Brasília, que, afinal, é a capital federal. Pelo menos quinhentos reais por família para moradia, alimentação, saúde e escola. Esse coitado não seria um doutor; mas, pelo menos o nome assinaria. Estudar é terapia, não sabia? É a vida, seu moço. Esse já se foi. Quantos ainda morrerão pelos caminhos empedernidos da vida?

Lúcio Vargas despediu-se. Era petista doente, capaz de fechar os olhos às mazelas de um partido político que de vez em quando pisava na bola. E os outros partidos que pisaram na bola por mais de quinhentos anos? Defendia com unhas e dentes o direito do homem errar de vez em quando. E um partido político era como se fosse uma pessoa!

Quando Vargas iniciava a preleção política era momento dos ouvintes cuidarem de outras obrigações. Em pouco tempo o petista perdia a platéia, o que não o incomodava. Sabia que a insistência era virtude importante. Quer exemplo melhor que o próprio presidente da república, que não desistiu nunca de ser o mandatário do país, elegendo-se só depois de três derrotas? Não fosse a insistência e o Brasil ainda estaria sob o jugo imperialista. O Brasil ficou livre do FMI, minha gente!

Quem o ouvisse naquele dia o chamaria de doido. E era mesmo: doido pelo partido, pelo presidente, pelo Brasil! O dia em que o Brasil pagou o último “tostão” ao FMI foi um dia de glória para Lúcio Vargas. Manhã cedo, assim que ouviu o barulho das portas da igreja Cristo Bom Pastor abrindo-se, caminhou para a oração matinal; desta vez com muito mais afinco e satisfação porque agradecia a libertação do Brasil da maior praga do mundo: o famigerado FMI.

Uma vez lhe perguntaram o que achava de George Bush, presidente dos Estados Unidos da América. Vargas respondeu bem ao seu modo: “Não quer perguntar também o que eu acho do Chávez, da Venezuela, ou do Evo Morales, da Bolívia?”. Ante a estupefação do interlocutor, Vargas respondeu solene e forte: “Meu amigo, eu gosto é do Brasil, é do Lula!”. E encerrou a discussão. Pegou o guarda chuva, recolheu na pasta e partiu para o cumprimento das obrigações de servidor público federal.

O vento frio indicava passagem de uma nuvem carregada. A mãe implorou compaixão.

— Meu Deus, não deixe chover agora. Meu filho no asfalto quente, com essa chuva fria vai estuporar.

— Dona Zilda, Zé já descansou dessa vida, lembrou Oliveira da barraca.

— É uma injustiça, seu Oliveira. Meu filho tinha problema da cabeça, mas era muito jovem. Por que não me levou, que sou velha e só ando doente?

Uma sirene anunciava a chegada de algum carro oficial. Como a polícia militar já tomava conta do local, identificaram a chegada da polícia de trânsito. Do veículo desembarcam mais autoridades do trânsito com os talões de multa ostensivamente à mostra.

— Não estão vendo que o trânsito está obstruído?

— A culpa não é nossa; é de quem matou, responderam.

— E quem matou?

— O ônibus.

— O ônibus não tem culpa; culpado é o motorista. Onde está ele?  Vamos tirar o corpo do asfalto.

A reação foi imediata.

— Não pode, o morto vai perder a razão!

— Amigo, a autoridade de trânsito aqui sou eu.

— Autoridade de quê? É polícia? Autoridade só policial. Não mecha no corpo. A família do morto vai perder a razão — decidiu Oliveira da barraca, que concluiu o raciocínio — E dinheiro também!

— O senhor está enganado. Não há dinheiro em jogo, replicou o agente de trânsito.

— E o seguro? O seguro obrigatório vai indenizar a família e pagar os funerais. O advogado disse que não deixasse mexer no corpo antes da perícia. A mãe do morto, inclusive, até já assinou procuração em branco para ele correr atrás da indenização.

— Quem é o advogado?

— Ela não conhece; mas mostrou os documentos; é advogado mesmo. Assinou a procuração em branco. Ele disse que quando encaminhasse os papéis telefonaria.

Maria do Carmo aproxima-se chorosa.

— Que aconteceu, meu irmão? Foi embora tão novo! E nós, como ficaremos? Nunca mais vou levar seu café. Prometi que seu pão ia ser com manteiga todo dia. Muita manteiga mesmo, com requeijão cremoso, ovo…

Oliveira chama a atenção da irmã. Para que dizer essas coisas? Maria do Carmo responde que perdeu o irmão querido e quer desabafar. E diz mais:

— O senhor sabe quem cuidou dele quando era menino? Essa irmãzinha aqui! Fazia xixi no meu colo! Todo dia eu lavava fraldas. Era muito trabalho, mas fazia com satisfação. Teve uma diarréia, quando menino, que quase morre.

— Maria do Carmo, não diga essas coisas.

— Digo, sim! Falo mesmo, pra desabafar. O sarampo quase mata Zé. Ficou couro e osso, cagando sangue de dia e de noite. Pensei que fosse morrer. Obrava era sangue mesmo!

— Maria do Carmo, o que é isso?

— É pra desabafar. Minha avó curou a obradeira de sangue com chá de umburana de cheiro. O café dele era umburana. Meio dia, antes do almoço, umburana; de noite também umburana. Lembro que Zé pedia: “Deixe eu ficar cagando sangue mesmo; não quero mais tomar umburana. Já estou com a barriga toda furada por dentro de tanto tomar umburana”. Minha avó ordenava: “Vai tomar, é pra seu bem. Menino teimoso apanha de chicote”. Zé se encolhia e bebia o chá. Mais tivesse! A avó aparecia com o chicote de cavalo, perguntava se Zé não ia tomar o chá. Ele, amedrontado, respondia: “Tem mais, vinha? Traga logo; mas não me bata com esse chicote”. Coitado… Mirrava na frente do chicote. Ficava mais miúdo ainda.

A mãe intervém:

— Do Carmo, está me fazendo passar vergonha.

— Mãe, quero desabafar, me deixe falar. A senhora também tem culpa. Deixava minha avó tomar conta da casa, bater na gente. Meu irmão ficou doente da cabeça por causa dela. Uma vez, só porque chegou tarde para almoçar, tomou surra. Não agüentando a dor, pediu socorro. Eu já era mocinha; abri os braços para amparar aquela criança, mas foi tarde. Escorregou num cocô de galinha…

— Não foi numa casca de banana?

— Num cocô de galinha! Naquele tempo, banana era raridade e se comia até a casca. Escorregou no cocô daquela galinha preta de pescoço pelado.

As pessoas ouviam. Sargento Jânio, valente e sempre superior aos paisanos, sentia-se desencorajado para se manifestar. Beto porteiro usava pedaço de toalha velha como lenço; soava o nariz. Após uma forte soada, declamou:

— Está parecendo filme. Será que foi assim mesmo?

Falou tão baixo que ninguém ouviu.  Soou o nariz novamente. Carlomar, o zelador, informou-lhe que o síndico o chamava, pois a bomba d’água do edifício apresentara defeito. A resposta foi lacônica.

— Só vou quando o corpo de Zé sair do asfalto.

— Ele não era nem morador do prédio — argumentou o zelador.

— Morava lá, sim; dormia e comia lá, escovava os dente e tudo.

— Mas não morava em apartamento.

— Não adianta; pode dizer: só vou depois!

A irmã soluçou. Alguém sugeriu baixinho que fosse para casa, descansar. A reação foi pronta:

— Descanso, pra mim, agora, só o eterno. Quero me desabafar.

— Desabafe em casa. Vá dormir um pouco.

A irmã nem ouviu. Prosseguiu no relato fantástico:

— Meu irmão nasceu doente, não; era menino gordo, saudável. Inteligente. Brigão que só ele. Tinha coração bom. Dava o que tinha. Dividia comida e até os brinquedos. Era mais moço do que eu, mas não mijava na cama. Minha mãe dizia: “Não tem vergonha? Moça já, ainda mija na cama? Seu irmão menor não mija”. Minha avó saltava lá, bruta que nem ela: “Quer que eu tire essa mania dela, agora? Quer saber como?”. Eu não deixava minha mãe responder; gritava: Não deixe não, mãe! Ela quer me bater com chicote de cavalo. Antes de fechar a boca, a avó já empunhava o chicote: “É isso mesmo! Vai apanhar de chicote! É uma mijada e uma chicotada!”.

A mãe, em frente ao corpo, implora:

— Minha filha, pelo amor de Deus, pare.

— Quero desabafar. Não agüento ficar com isso no juízo. Meu irmão não nasceu doido; ficou doido! Acho que também vou ficar.

Beto porteiro, após retirar a toalha do nariz, arrisca um conselho:

— Maria do Carmo, gosto muito de você. Vou lhe pedir uma coisa.

— Deixe de ousadia, cachorro! Vai pedir o quê? Sou moça. Vivia pra dar comida a meu irmão.

— Não é isso. Eu queria…

— Queria nada. Se tivesse aqui o chicote de minha avó, você ia ver. Me respeite! Saia de perto de mim.

— Maria do Carmo, por favor…

— Não me peça nada, seu Oliveira. Quero desabafar. Me deixe desabafar.

Padre Moacir Simões aproxima-se com o missal na mão…

— Louvado seja Deus! Cada um tem seu momento. Deus faz o momento de cada um. Descanse em paz, à direita de Deus Pai. A senhora era o quê dele?

— Eu? Era mãe dele.

— E eu, irmã, padre.

— Aceitem as determinações de Deus.

A mãe resignou-se… “Assim seja, padre”. A irmã arrebitou o nariz.

— Não posso entender… Tanta gente ruim, e levou logo meu irmão que não fazia mal a ninguém. Tanto ladrão por aí, chamou logo meu irmão que era tão bom.

— Qual a idade dele? Trabalhava em quê?

— Em nada, padre. Vivia da ajuda de Deus.

— Era desempregado?

— Nunca trabalhou. A vida não deixou.

— Mas procurava emprego?

— Era fraco do juízo. A família o sustentava. Não tinha vício. Não fumava nem bebia — interferiu Oliveira.

— Louvado seja Deus.

Alguém respondeu com voz limpa para sempre seja louvado!

Um senhor alto, cabelos penteados, camisa social; perguntou como tudo acontecera.

— Agora há pouco. Foi um ônibus, mas o motorista não teve culpa. Quem é o senhor?

— Não está me reconhecendo? Você votou em mim — torna o distinto.

— Eu? Votei mesmo! Como é o nome do senhor?

— Sou o deputado…

— É o senhor? Como soube que votei no senhor?

— Quase todos os moradores de Taguatinga votaram em mim. Quero saber se precisam de alguma coisa. — Maria do Carmo solicita a volta do irmão. — Impossível! Só Cristo ressuscita. Seu irmão ressuscitará, sim; mas não agora.

— Quando então?

— No dia do juízo final. Diz a bíblia, ninguém morrerá eternamente. Pelo contrário, após a morte é que começa a vida eterna, a que nunca terá fim.

— Então ofereça o que pode dar.

— Temos carro para transportar o caixão, serviço de som para anunciar a morte e tocar músicas fúnebres.

— O senhor dá o caixão?

— Posso tentar junto à Administração Regional, mas, não garanto. Com essa nova lei de responsabilidade fiscal…

Chegaram outros moradores do prédio. Hélio Idálio não se conformava… — Bom menino, sim; morreu de graça.

— Chegou a hora dele, seu Hélio — retruca Beto porteiro.

— A hora quem faz é Deus, seu bestão. Quando Deus faz a hora ele mesmo leva. Atropelamento não é chamado de Deus. Sabe o que acho mesmo? Culpado foi o síndico. Se deixasse o rapaz subir ao apartamento da mãe, nada teria acontecido.

— Mas seu Hélio…

— Proibiu ou não proibiu?

— O síndico proibiu foi cachorro subir pelo elevador.

— Então me informaram errado.

A irmã desperta da latência…

— Como é a história? O senhor está chamando meu irmão de cachorro?

Beto porteiro conhecia a sanha de Maria do Carmo; cuidou de remediar.

— Deus me livre, dona Maria do Carmo! Eu chamar seu irmão, meu amigo, de cachorro?

— Acabou de dizer que o síndico proibiu cachorro subir de elevador, por isso meu irmão não ia até a casa dele. Pois se era da mãe dele, era dele também! Era doido, mas muito digno. Nunca quis subir porque não trabalhava. E achava que, sem trabalho e sem dinheiro, não tinha direito de morar em casa. Foi só por isso.

A mãe, Zilda, desilude-se.

— Do Carmo, por favor… Que sina, meu Deus! Foi um e ficou outro.

— A senhora quer me proibir de defender a memória de meu irmão? Ou quer que eu vá também? É fácil; quer?

— Pare com isso. Respeite seu irmão.

— A senhora é que não está respeitando. Ouve falar mal dele e nada diz. — Beto escapuliu feito cachorro medroso, esquivando-se de Maria do Carmo; esta não o perdoou. — Cachorro é você! E não venha com ousadia, nunca olhei pra você.

Da caminhoneta branco-suja do Instituto Médico Legal saem dois peritos.

— É o rabecão!

Deram passagem. Os homens, macacões cor cinza, traziam a morte no semblante.

— Dá licença!

O de bigode tomou a frente, descobriu o corpo. Virou o rosto para não ver…

— O negócio foi feio…

A mãe chora novamente.

— Que triste fim, meu filho. Criei com tanto mimo. Freqüentou as melhores escolas. Mal aprendeu a escrever o nome…

O chefe da equipe, registrando na prancheta, pergunta o nome; ninguém respondeu. Perguntou novamente. Carlomar, o zelador, não compreende…

— Nome de quem? Pergunte à mãe dele. Está sentada ao lado.

O perito preferiu localizar os documentos no bolso do defunto… — Ele deve ter documentos. — Enfiou a mão num dos bolsos traseiros; traz um pedaço de tecido…

— Que diabo é isso!

Retira a mão, amedrontado. A irmã reprova.

— Está metendo a mão no bolso do meu irmão? Ele não é um joão-ninguém. Tem mãe e irmã!

— Senhora, eu só queria os documentos dele.

— Por que não pediu?

— Pedir documentos a morto? Ele não daria. Os documentos devem estar no bolso. Posso procurar? Sou um funcionário honesto.

— Disso não sei, não o conheço.

— Aí fica difícil! Vou embora e o corpo fica aí. Então a senhora retire os documentos, por favor.

— Quer saber o quê?

— Nome.

— José de Arimatéia Gusmão. Era conhecido como Zé Besta.

— Nome da mãe.

— Zilda de Gusmão.

— Idade…

— De quem? Dele ou da mãe?

— Da mãe.

— Mãe, quantos anos a senhora tem?

A mãe levantou a vista…

— Se quiser a idade do meu filho morto, 46 anos. A minha, esqueci.

O legista contorna. — Deixe pra lá. Número da carteira de identidade.

— De minha mãe?

— Do defunto.

— Aí só com ele. Aliás, nem ele.

— Então, teremos mesmo que procurar no bolso.

O perito amarrou o lenço no nariz, como máscara. A irmã reprovou.

— Pra que esse lenço, moço? Meu irmão está fedendo?                   — Um pouquinho só; o uso da máscara é normal — respondeu o legista enquanto calçava as luvas. A mulher reagiu: — Não quer nem pegar? Está com nojo?

— Fazemos perícia em muitos cadáveres, inclusive portadores de doenças contagiosas.

— Quer dizer que meu irmão está tuberculoso?

— Não sei disso, não. AIDS é doença contagiosa; nem por isso afirmei que seu irmão está com AIDS.

Retira da caixa grande lâmina, amedrontando a irmã:

— Pra que essa facona? Vai acabar de matar.

 

Após alguns procedimentos o corpo foi engavetado e enfiado na caminhoneta. Portas fechadas, Zé Besta foi encerrado no compartimento escuro do rabecão. As pessoas acompanhavam atentas. Oliveira lacrou a barraca e foi prestar solidariedade cristã, a muitos surpreendendo. Poucos supunham tão intensa a amizade que o ligava a Zé Besta. Não era bem amizade, confessaria depois, era solidariedade cristã mesmo:

— Os ensinamentos de Cristo sempre mostram o caminho de ajudar ao próximo como a nós mesmos.

Beto porteiro acompanhou o trabalho dos peritos. A intenção era provar a si mesmo que podia ver sangue sem desmaiar. Que era capaz de ver um defunto, um cadáver, sem que, à noite, a insônia lhe tomasse a vontade de dormir.

Permaneceu sempre bem próximo ao cadáver. Então, observou que defunto é diferente de gente viva. — É mesmo, seu Hélio Idálio! — reafirmaria depois em conversa com o morador. — Mal a pessoa morre o corpo se transforma, fica cor de cera, sem vida. — Hélio Idálio achou engraçado, sorriu e perguntou se algum dia Beto já vira um cadáver com vida. Depois da pilhéria, concordou; de fato, processava-se grande mudança no corpo assim que se esvaía o último suspiro de vida. Beto perguntou por que isso acontecia. A Hélio Idálio restou justificativa bem concreta para a percepção semi-analfabeta de Beto:

— O sangue pára de correr, coalha nas veias. Sangue é a vida, Beto!

E lembrar que ele, Beto, não podia ver a vida, aliás, ver sangue, que é vida, pois desmaia. Prometeu ficar bom, curar-se desse mal. Para demonstrar que evoluíra permaneceu ao lado do cadáver até os últimos momentos.

A irmã Maria do Carmo continuou a cantilena do desabafo. E desabafou mesmo, relatando a vida familiar antes do domicílio na capital federal. Quem diria que José de Arimatéia Gusmão, o Zé Besta, fosse neto de fazendeiro de gado, dono de roças de cacau, de carnaúba e de mamona? Morar na capital do país foi um acidente. O avô vendera duas fazendas e comprara um apartamento em Brasília por ser eleitor e defensor ardoroso e perpétuo de Juscelino Kubistchek, o maior presidente que o Brasil já teve!

A finalidade do apartamento era alojar Zilda na capital para que pudesse tratar a doença de Zé Besta. A loucura o acometera menino ainda, no interior da Bahia, onde morava. A vinda a Brasília tinha como objetivo a cura do desequilíbrio mental.

O efeito foi contrario; o tiro saiu pela culatra, como dizia o avô nas poucas visitas aos netos, na capital federal. A grande bruaca[3] de couro cru, abarrotada de beijus, rapaduras, doces e mel de abelha, trazia a fartura do sertão chuvoso para o Distrito Federal. O velho, cujo nome era João Gusmão, não saia do apartamento nem para a igreja, que ficava a duas quadras. Era o medo de morrer atropelado, não acostumado com tantos veículos indo e vindo sem bater um no outro nem subir nas calçadas. Gastava o tempo assistindo televisão. Dormia sentado, à frente do aparelho; depois acordava, assistia; depois dormia; depois acordava… A quem lhe dissesse que dormira, negava sempre. Nunca dormia durante o dia, pois o dia dele era para o trabalho!

Quando menino, no interior da Bahia, Zé de Arimatéia gostava da companhia do avô. Ás vezes, inventava doenças para não ir à escola e gozar a presença de João Gusmão. À troco de surras a mãe não o deixava faltar sequer a um dia de aula. — Já viu filho de pobre não querer estudar? Vai virar carroceiro! — e tome-lhe chicote!

Com a morte do velho pai, Zilda concordou vender as propriedades rurais e mais alguns terrenos urbanos. Apurada sua parte no espólio, mudou-se definitivamente para Brasília, arranchando-se em Taguatinga, uma cidade alvissareira. O dinheiro da herança permitiu-lhe comprar três apartamentos, inclusive esse, onde mora. A manutenção familiar provém dos aluguéis; embora defasados, permitem sobrevivência digna.

Anos depois, a filha Maria do Carmo enfrentou concurso público e assumiu vaga de atendente na administração pública distrital, quando a concorrência pelo emprego público ainda não era tão absurda. Bastava submeter-se ao concurso e esperar ser chamada, nem que fossem dez anos depois. A Constituição Federal de 1988 é que criou esse negócio de validade de concurso público.

A filha colabora nas despesas domésticas com o pagamento das contas de luz e do condomínio residencial.

Do Carmo não resistiu quando o corpo do irmão foi recolhido pelo IML. Acometeu-lhe grave crise nervosa. Pedia que não o levassem. Gritava, uivava, arrancava os cabelos! Não levem meu irmão! Oliveira tentou confortá-la, foi repelido. Beto porteiro nem pensou aconselhar ante o estado da mulher. Padre Moacir Simões, ainda presente, orou em voz alta, pedindo a Deus que confortasse a família aqui na terra. Mas não houve meios de acalmar o histerismo da irmã.  Cada vez mais descontrolada, arrancava os cabelos e azunhava o rosto. Por fim, levantou o vestido e mostrou as roupas íntimas em ritual histérico nunca visto. A mãe determinou:

— Pare, do Carmo!

A resposta veio imediata:

— Até isso, minha mãe? Nem chorar a morte do meu irmão eu posso?

— Você não está chorando a morte do irmão; está levantando a roupa. Não tem vergonha? Baixe essa roupa!

Maria do Carmo assustou-se e foi chorar nos ombros da amicíssima e colega de trabalho, Maria dos Anjos. As más línguas afirmavam que dos Anjos tinha caso com ela, Maria do Carmo.

[…]

Essa é apenas uma amostra de O Legado da Loucura. Uma leitura célere em busca do final da trama.

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