Brasília, DF
1ª Edição 2013
246 p.

Apresentação

O homem que morreu cinco vezes é um livro de contos surreais. Aliás, surreal é uma das características da obra literária de Astrogildo Miag, capaz de criar e dissecar temas tão estranhos e inimagináveis como ressuscitar o lendário Lampião e elegê-lo governador de Brasília. Ou criar uma cidade-purgatório onde amigos e inimigos reencontram-se após a morte para depurar os pecados. Ou virar pelo avesso a morte, o velório e a herança material deixada por um deficiente mental, cuja riqueza transportava em enorme saco pelas ruas da cidade. Assim é a literatura de Astrogildo Miag: o abstrato, o irreal e o inconsciente apresentados com lirismo e humor, não raramente destituídos da razão e da lógica triviais.

Neste livro aborda a quimera e impotência do homem, a exemplo do beato Vivaldo de Jesus, que obra milagres a partir do equilíbrio e da preservação da natureza. Traz a crítica social em A guerra, disputa entre Brasil e Canadá pela hegemonia do mercado de pequenas aeronaves. E os primeiros contatos com os macacos falantes, na foz do Rio São Manuel, que só existem na mente do escritor? O cavalo selado mostra que nem as pequenas comunidades salvam-se da violência; menos ainda as grandes cidades, a exemplo da não tão irreal A história do carro vermelho.

margemSempre a bordo de histórias hilariantes, em O terremoto mostra o abalo sísmico do Haiti, cotejando-o com o abalo político ocorrido na capital federal, quando o governador teve o mandato cassado. Amarildo e o Índio da Amazônia registra a história de artista mambembe, cuja atração principal era um jacaré com mais de cinco metros de cumprimento, que devorou o próprio artista em plena apresentação.

E a paranoia de alguém só dormir sentado em vaso sanitário, de preferência nas casas alheias? Pois, O homem do sanitário é um dos personagens irreais de Astrogildo Miag, assim como Genésio, o come rato e outros.

Relata até o nascimento do MST: “O batalhão de trabalhadores sem terra munidos de picaretas, enxadas e facões, bandeiras vermelhas simbolizando o sangue derramado, entra silenciosamente nas cidades à procura dos culpados pela mortandade de seus antepassados. Enquanto não os encontram, como tática de guerra, vão plantando acampamentos aqui, ali e acolá até o dia do juízo final”. Quem seriam os culpados e qual seria a mortandade? A resposta encontra-se em Os primórdios do movimento dos trabalhadores sem terra.

Este é o retrato 3×4 de O homem que morreu cinco vezes. O retrato de corpo inteiro virá com a leitura do livro.

margemA interrogação acerca do título é inevitável e eis a resposta: cinco dos contos que compõem o livro têm como conteúdo e tema principal a quimera de supostas mortes do escritor, distribuídas ao longo do livro. Daí, O Homem que morreu cinco vezes, mistura de ficção e realidade de forma cômica e hilária do primeiro ao último conto.

  Pequena amostra dos contos que compõem o livro:

Ressurreição,

A guerra

O cavalo selado

Amarildo e Índio da Amazônia

Eis-me aqui, Brasília

Para onde vai a mais-valia

Chegada das chuvas

O homem do sanitário

Caso verdade

O homem que não…

Corcel II

Cotidiano

Silêncio

A injeção

A comunhão

A seca

Terremoto

Ode aos cinquenta e um

MST, os primórdios

O retorno

A história do carro vermelho

Passar uma tarde em Itapuã

O juiz e o delegado

A hemorragia

Primeiros contatos com os macacos falantes

O duelo

O legado

Os milagres do beato Vivaldo de Jesus

A chegada de Lampião em Ibotirama

  ***

Ressurreição

 

                 Primeira morte 

Não sei o que me leva a inventar histórias inusitadas, a exemplo de afirmar que já morri muitas vezes. Minha primeira morte aconteceu em um dia chuvoso, sol encoberto por densas nuvens. Cheguei do trabalho cansado, cabeça pesada frente a tantos problemas. Taciturno, almocei. Pedi à mulher que me acordasse às 14:30h. E fui cochilar, como sempre faço após o almoço. Acomodei-me bem; tempo frio, logo adormeci. Bem mais tarde, acordei e não gostei. A mulher não me chamara e, certamente, já me atrasara para compromisso importante. Insatisfeito, como estava, só de cuecas, levantei-me e desci as escadas ao térreo da casa, onde a mulher cuidava de afazeres domésticos. De costas, enquanto cantarolava conhecida música, passava amaciante e ferro quente em algumas peças de roupa. De longe mesmo,, falei-lhe: Não me chamou, não foi? Não respondeu; continuou os afazeres como se nada ouvisse. Repeti a pergunta, que permaneceu sem resposta. Aproximei-me. Por trás, taquei-lhe um beijo no cangote, ou seja, no pescoço. Não reagiu; permaneceu como se não a tivesse beijado. De repente, assustou-se e disse:

— Esqueci de acordar Nildo!

Aquela afirmação causou-me estertor e choque. Que acontecera comigo? Por que a chamei e não me ouviu? Beijei-a e não me sentiu? Um calafrio desceu-me o corpo. Meu Deus, será que eu…

A esposa subia as escadas; eu a segui. Entrou no quarto após abrir a porta bem devagar. Acompanhei todos os seus atos. Devagar, sussurrando, dirigiu-se ao meu corpo inerte sobre a cama…

— Já está na hora, olha a preguiça… Acorda. Não está na hora, não?

Repetiu o chamado. Não resisti; senti as forças desfalecerem, arriei ao chão. Apaguei-me completamente. Sabe quando despertei? Quando ela pegou meu corpo, na cama, sacudiu e sacudiu com força…

— Que sono pesado é esse? Acorda!

A insistência foi tanta que o espírito flutuante retornou, reencontrando o próprio corpo. O tênue sopro da vida que expirara em meu ser estressado, retornou. Fui tomado de alegria desmedida. Abracei e beijei aquela mulher que tanto amava, agora com mais certeza. Feliz, sem entender, perguntou-me as razões para tanta alegria. Respondi ter ela me ressuscitado, trazido de novo à vida. Além de não acreditar, achou que zombava da sua pessoa, cerrou a expressão e desceu aos afazeres. Ainda pedi que voltasse, explicaria melhor, mas, em vão…

Até hoje não lhe falei ter sido minha primeira morte, súbita, nem eu sei em decorrência de quê. Depois, morri mais quatro vezes. A depender do desenrolar dos fatos, até o final deste livro posso relatar algumas das outras mortes. Mas, só se faltar assunto para concluí-lo, entendeu bem?

 ***

 2.º Conto:

A Guerra

 

O Jornal da madrugada noticiou com estardalhaço a guerra comercial. O brasileiro sonolento, mais de uma hora da manhã, recolheu-se assustado. A mulher acordou do sono de justo e ele, o marido, falou-lhe:

— Parece que vai ter guerra.

A companheira não entendeu. Ajeitou a touca na cabeça, virou de lado. O homem insistiu:

— Parece que vai ter guerra.

— Você está doido ou sonhando?

— Nem dormi ainda. É guerra mesmo.

— No mundo de hoje não precisa ter guerra. Basta apertar um botão e morre todo mundo.

— Vai ter guerra, sim. Vai ser o Brasil e o Canadá.

— Se fosse pelo menos com a Argentina. Nunca ouvi falar na seleção do Canadá.

O homem não gostou da observação:

— Agora quem está sonhando é você. Não falei de futebol. Falei de guerra!

— Me deixe, quero dormir. Assisti à novela e não vi nada dessa guerra.

— Novela não tem nada a ver com guerra. Guerra sai é no noticiário.

— Na novela pode sair em edição extraordinária, sim.

— O Canadá já vai mandar um avião de guerra chamado Bombardier, diz que custa uma fortuna e voa até debaixo d’água.

— Então não é avião, é navio!

— É avião de guerra, voa no escuro. Levanta vôo em cinco metros de pista.

— Esse avião vem fazer o quê, aqui?

— Não disse que era guerra? O Brasil vai mandar um avião que a Embraer está vendendo até para os Estados Unidos. O repórter disse que era mais veloz, menor e mais econômico que o do Canadá.

— Então é guerra mesmo.

— O Canadá já suspendeu até a compra de carne do Brasil.

— O Brasil vendia carne ao Canadá?

— E muita! Ia de navio, congelada. Só de filé mignon tem não sei quantas toneladas no porto de Santos. Como eles não vão comprar, quero ver o que vai ser feito dessa carne.

— Dá aos pobres.

— Filé mignon de graça pra pobre?

— Melhor que jogar fora.

— É mais fácil fazer ração pra bicho que dar aos pobres. Até eu queria experimentar filé.

— Com esse negócio de guerra pode estar envenenado.

— Justamente isso! A guerra é por causa de uma vaca louca. Nunca vi vaca louca. Mas foi ela.

— Agora foi que deu…

— A guerra é por causa dessa vaca. O Canadá disse que o Brasil mandou uma vaca louca pra lá. E essa vaca está fazendo um estrago.

— Será que vaca louca é igual a cachorro doido? Se cachorro sai mordendo, vaca vai sair dando chifrada.

— A vaca fica tonta como se estivesse bêbada. E o pior, pega raiva em tudo que é bicho vivo, até no homem. O Canadá vai querer dinheiro pra cobrir o prejuízo.

— E vai ter guerra mesmo?

— Se for do jeito que a televisão falou, já começou!

— Quem falou foi Galvão?

— Foi não.

— Então não vai ter guerra nenhuma. Só confio no Galvão.

A mulher virou-se de lado para dormir. O filho ainda não chegara da rua. Se tivesse guerra ele seria chamado? Pediu a Deus que não deixasse. O marido espirrou forte. Assustou a mulher:

— Me sujou toda…

O homem soou o nariz. Levantou-se, foi à janela. O som da barraca de bebidas tocava música eletrônica a todo volume. O homem pensou: “Vai ter guerra e o povo bebendo e satisfeito desse jeito?”. Retornou, foi ao banheiro. A campainha tocou, era o filho. Abriu a porta, o rapaz entrou. O pai perguntou:

— E a guerra?

— Ficou lá. Disse que vem mais tarde.

O pai não entendeu. Perguntou novamente:

— E a guerra?

— Já disse. Vem mais tarde. Ficou com Tetê e Fafá.

— Quem?

— Larissa, pai; quem poderia?

— Eu perguntei pela guerra!

— Que guerra?

O pai não respondeu. Alguma coisa estava errada. Resolveu deitar-se. Pediu a Deus que no outro dia já tivesse acabado a guerra. Admirou-se: — Guerra num tempo desses?

Apagou a luz do corredor e foi dormir.

 ***

 4.º conto:

Amarildo e Índio da Amazônia

            Um dia, chegou à Taguatinga, Brasília, Distrito Federal, um artista mambembe cuja maior atração era um jacaré-açu. Comandado pelo domador, nordestino amorenado, que usava peruca de longos cabelos pretos e se apresentava como “O Índio da Amazônia”, capaz de falar com qualquer espécie de bicho, até com um jacaré da Amazônia. Acabava de estacionar o velho carro açodado pelo tempo e pelo poeirão do centro-oeste. Atrás, reboque mal conservado transportava o grande animal de inteligência invulgar, dizia, coberto unicamente por um toldo de lona. Logo, os curiosos acercaram-se do veículo exatamente como queria Índio da Amazônia. Que jacaré!, exclamavam. Não é Jacaré, respondia outro; parece uma ariranha, lembrava um terceiro. Ariranha deste tamanho e com esses dentões?

E juntando gente…

Até quem detestava artista de rua, e presumindo ser um daqueles que corriam o “chapéu” em troca de mágicas mentirosas, aproximou-se para ver do que se tratava.

— Um bicho da Amazônia?

E engrossava o público do bicho encantado, que, àquela altura, ninguém tinha certeza do que fosse. Até o marreteiro que desafiava quem se habilitasse a derrubar dois maços de cigarros com uma só bolada para ganhar dez reais por um de aposta, perdeu a clientela. Que bicho é esse, perguntou um balconista. Dizem que veio da Amazônia, respondeu o vendedor de CD pirata enquanto guardava seu estoque ilícito, preparando-se para também prestigiar a novidade.

Alguém teve a iniciativa, talvez um concorrente prejudicado, de ir ao módulo policial, ali mesmo na chamada Praça do Relógio. Até um atirador de facas — lançava lâminas em jovem morena, sapatos altos, que passavam a centímetros do rosto — prejudicado com a chegava do tal bicho, pediu aos policiais que averiguassem o que ocorria adiante. Como argumento disse ter ouvido boato que um criminoso foragido da Amazônia trazia um peixe-boi para apresentações públicas. E peixe-boi, em vias de extinção e protegido pelo governo, não podia submeter-se à exploração pelo homem! Um dos policiais foi mesmo averiguar, e lá ficou. Um segundo foi saber notícias daquele, e não voltou. Logo, o Posto Policial estava vazio, todos no trabalho de averiguação da ocorrência.

 

Finalmente, Índio da Amazônia descobriu o grande animal que trazia no reboque. O povo se assustou. Meu Deus, o que é isso! Deve ter vindo da Austrália, com certeza é um crocodilo de água salgada! Mas ele diz que é do Amazonas!

Índio e seu ajudante conduziram o reboque até o centro da praça. Centenas de pessoas que iam e vinham no calçadão do outro lado da avenida, submetendo-se ao perigo de atropelamento, atravessavam a pista só para ver a novidade. O grande animal foi mostrado à população. Era mesmo um jacaré-açu, gigantesco, dentes saindo pelos cantos da bocarra, olhos miúdos no meio da cabeça. Grande rabo musculoso, tronco mais grosso que de um halterofilista. O couro do animal confundia tom esverdeado e cinza, impressão de sujeira, couro mesmo de jacaré. Que diabo é isso, perguntavam.

— É um monstro das águas, o maior anfíbio da face da terra. Capaz de torar um homem de uma bocada só! Todo mundo viu na China quando um jacaré arrancou o braço de uma pessoa só com um movimento da cabeça. E ainda ficou com o braço na boca, exibindo como troféu! Todo mundo viu o Jornal Nacional mostrando a foto do bicho com o braço na boca. E só foi morto porque o Exército foi chamado e deu um tiro de canhão no pobre animal!…

[…]

 

O povo chegando. Índio da Amazônia falando do animal. O ajudante descobrindo o bicho, que não despertava do torpor da espreita. Expunha o animal aos olhares. Índio, sabido, aguçava a curiosidade…

— Este, meus amigos, é o maior animal de todos os tempos nascido no rio Amazonas! Vocês já ouviram falar do rio Amazonas? Pois, o Amazonas nasce lá no Peru, corta vários países e termina no Brasil. Aqui, no Brasil, é onde apresenta as maiores profundidades. É água que não acaba mais! De tão profundas, navio sai do mar e desemboca diretamente no rio trazendo de tudo da Europa e da América do Norte, principalmente turistas que se encantam com as belezas, com os animais e com as índias, que ninguém é de ferro. Pois, nessas águas do rio Amazonas é onde mora este gigante. É um jacaré-açu, tem quase cinco metros de comprimentos e quinhentos quilos de peso!

O povo admirou. Quinhentos quilos?

— Quinhentos quilos, sim! Se não fosse proibido matar este animal, uma vez morto, daria para alimentar uma família de quatro pessoas durante toda vida!

É mentira! — expressou alguém do povo, protegido pelo anonimato. — Mentira não, eu provo. Chegue aqui perto…

O incauto não se habilitou a chegar, doido não era. E o homem continuou no relato antecedente à apresentação do grande jacaré-açu…

— Este animal, senhoras e senhores, veio do leito do maior rio do mundo, com um volume de água que vocês nem imaginam. Comparando o rio Amazonas, este lago Paranoá, que vocês tanto amam, não passa de uma poça de água de chuva. O Amazonas é tão profundo que cobre dez torres de TV, o lugar mais alto de Brasília! Foi nesse grande rio que aprendi a nadar quando era menino e onde nasceu esta pequena amostra do grande jacaré-açu, que me acompanha desde que nasceu.

— É mentiroso mesmo! — manifesta-se a mesma voz.

— Mentira? Quem sou eu para negar as minhas origens? Nasci nas matas do Amazonas. Já fui picado e quase engolido duas vezes pela grande cobra sucuri, conhecida também como anaconda. Lutei para não morrer. Como última alternativa, enfiei meu canivete suíço, que ganhei de um turista, sabe aonde, no cu da grande cobra, pois não conseguia furar o couro da danada. Ela nem sentiu cócegas! Deus me deu mais um pouquinho de forças, e tive a felicidade de acertar o olho da bicha! E foi aí que afrouxou o aperto e recolheu a bocarra que já se preparava pra me engolir. As marcas estão aqui… — e mostrou um rasgo na barriga, que alguém, da platéia, afirmou ter sido furada de faca. Índio da Amazônia aproveitou o ensejo e continuou o discurso preparatório…

— Faca não penetra no couro de bicho grande e velho da Amazônia. Só mata se entrar no olho. Aliás, nem matar mata; mas, a dor é tão grande que o animal se apavora, larga a presa e foge para a floresta. Se amofina com a dor e com a cegueira até morrer. E essa cobra que recebeu minha canivetada no olho foi encontrada, quatro dias depois, enrolada na margem de um córrego, já morta. Sabe quantos metros media? Quantos metros? Alguém quer arriscar? Pois vou dizer: a bicha media quinze metros de comprimentos! E podem acreditar, não era a maior que morava naquele rio. Na mesma semana, outra sucuri engoliu de um só bote um cavalo que bebia água no córrego. O coitado lutou, mas acabou dominado e engolido pela bicha, conforme relato do vizinho do meu primo, também índio, lá no Amazonas. Então, quero dizer a vocês que tudo lá é grande, assim como esse jacaré que deve ter mais de cinco metros…

O ajudante já abria a grade do reboque que transportava o animal. O povo afastou-se amedrontado. O animal abriu os olhos pequenos no meio da grande cabeça. Que feio! Parece um animal pré-histórico, pensou alto uma balconista atraída pela curiosidade. Índio aproveitou o gancho…

— E é mesmo um animal pré-histórico! A família desse bicho é do tempo dos dinossauros. Não morreram com a grande explosão do meteoro sobre a terra, há milhões de anos, porque boa parte da espécie estava debaixo d’água e resistiu ao grande impacto. Depois, com a mortandade dos dinossauros, sobrando comida, conseguiram sobreviver.

Finalmente, o ajudante abriu a primeira porta e o animal despertou do torpor. Era realmente majestoso. Cabeça grande, tronco poderoso, dentes à mostra e um rabo imenso, pés desproporcionais ao corpo. Deu os primeiros passos, sambando, dançando… E o povo correu; quem era doido de ficar? Índio pediu calma…

— Este animal, apesar de grandioso, não representa perigo. Cresceu praticamente comigo e me obedece até a morte!

O povo não acreditou; permaneceu afastado. Era o momento mais difícil da apresentação. Índio foi incisivo.

— Vocês sabem qual a razão de estar aqui, eu, meu ajudante e este animal cujo nome é Amarildo? Saímos de longe, da fronteira da Venezuela e da Guiana Francesa para esta querida Brasília, capital do meu Brasil, para apresentar a arte animal na pessoa de Amarildo, jacaré-açu que meu pai capturou ainda filhote no grande rio Amazonas, e me doou de presente. Toma, meu filho, ensina ele a falar. Só não consegui, meu pai, ensinar este animal a falar; mas o ensinei a fazer coisas que muitos de vocês não sabem fazer ainda, mas podem aprender com Amarildo.

Assumindo ar solene, reverenciou o público…

— Com vocês, Amarildo, o maior jacaré-açu ainda vivo, diretamente do Rio Amazonas para vocês de Taguatinga, de Brasília e do Distrito Federal! Antes, porém, da apresentação, um pequeno intervalo para nossos comerciais.

Imediatamente, o ajudante pegou uma cesta de vime e caminhou ao povo pedindo ajuda para manutenção de Amarildo, que pesava quase quinhentos e comia, todo santo dia, com chuva ou com sol, trinta quilos de peixe sem cabeça, e ainda bebia, no lugar de água, dez litros de leite integral. O gaiato do meio do povo reclamou.

— Eu sabia que isso ia acontecer!

Índio da Amazônia fez não ouvir. O ajudante coletava de moedas a notas de cinco reais. Amarildo voltou ao torpor, ainda na jaula, apenas a cabeça à mostra. Minutos depois, recolhidos várias cestas de dinheiro, Índio convocou Amarildo para as apresentações:

— Com vocês, diretamente da Amazônia, Amarildo, o maior jacaré-açu de todos os tempos!

O ajudante levantou a última grade e o animal ultrapassou as fronteiras do reboque. O povo se afastou. Índio pediu que não tivessem medo, Amarildo era educado e o obedecia até a morte. O animal caminhou faceiro sobre o calçadão e parou no meio do espaço, esperando as ordens do domador que, imediatamente, lhe enfiou uma sardinha congelada na boca. Depois, convocou Amarildo ao primeiro número, demonstração da grande força da mandíbula do majestoso animal. Retirou do veículo tora de madeira, dez centímetros de diâmetros, mostrou à plateia a madeira de lei, bateu no chão…

— Os senhores verão agora, inédito em todo o mundo, Amarildo quebrar este mourão de aroeira, a mais dura madeira de lei, utilizada na feitura de curral para boi. E vai quebrar de uma bocada só! — Girou a madeira, mostrou a todos… — É agora, Amarildo, ou não ganha o peixe!

Lançou o mourão, Amarildo abocanhou e partiu em duas partes. O povo exclamou admiração! Que força! É do Amazonas mesmo. Viva Amarildo! Bateram palmas. Índio animou-se ante a possibilidade de ganho alto. Debruçou-se na frente de Amarildo e enfiou a cabeça entre os dentes do animal! OOhhh!… Exclamou a platéia, agora mais solícita. O ajudante correu a cesta e catou mais donativos, Índio sempre lembrando ser a manutenção de Amarildo caríssima! Não poderia passar fome, pois comeria tudo que encontrasse pelo caminho. Lembrou já ter Amarildo mastigado uma espingarda calibre doze pensando ser um peixe, devido ao formato da espingarda! O povo gargalhou e o ajudante passeou recolhendo mais donativos. Inesperadamente, Índio retira da cumbuca um objeto envolto em couraça escura. Sabem o que é isso? — perguntou. O povo nunca vira o tal objeto e o domador de jacaré prosseguiu.

— Vocês estão vendo uma pedra de granito, um dos minerais mais duros que se conhece — e mostrou o granito. Imaginem o esforço para um homem quebrar este granito com picareta, marreta ou outro instrumento de força! Aliás, dois homens gastam um dia inteiro para dividir em dois pedaços, só em dois, este bloco de granito. Com Amarildo, este majestoso jacaré do Amazonas, é diferente. É capaz de quebrar esta grande pedra, forjada pela natureza há milhões de anos, em questão de segundos. Querem ver? Estão duvidando porque não conhecem o poderio deste animal, o maior e mais forte que já nasceu no rio Amazonas. Mas, tem um porém… Esta pedra é granito. Granito é muito caro! Sou um pobre índio que nada tem nem se preocupa em juntar dinheiro. Meu objetivo na vida é apenas angariar o suficiente para alimentar Amarildo. Então, não posso, de maneira alguma, demonstrar pra vocês que Amarildo é capaz de quebrar este bloco de granito em um segundo apenas, a não ser… Vejam bem, não estou exigindo; mas, se quiserem, de boa vontade, repor o valor desse granito, aí sou capaz de pedir a Amarildo que estraçalhe esta pedra magistral em dois segundos! E quem colaborar viverá o grande espetáculo da terra agora!

Logo o ajudante correu a cesta e recolheu o restinho de dinheiro que cada um reservara para almoçar ou pagar o transporte de volta para casa. Queriam mesmo era ver Amarildo estraçalhar a pedra nos dentes. Dinheiro recolhido, Índio agradeceu solenemente…

— Meus amigos e minhas amigas, agradeço a piedade e a boa vontade. Não queria falar para que não ficassem com medo nem suspeitassem, jamais, de estar pilheriando; mas, Amarildo, este majestoso animal, tem uma doença congênita. Já levei a todos os veterinários, pais de santos da floresta e até mesmo a médicos de gente, e não descobriram a causa do grande mal de Amarildo: Seus dentes crescem quase um centímetro por dia! Por dia, estou repetindo. E a única forma de impedir esse crescimento sem limites, meus amigos, é fazer Amarildo mastigar concreto todo dia! Como não temos concreto, pois não somos donos de concreteira, a forma mais viável de fazer Amarildo mastigar uma pedra dura todo dia é oferecer granito, que pode ser comprado nas casas especializadas, embora custe uma pequena fortuna. Então, muito obrigado a quem colaborou para mais um dia de saúde deste animal. Obrigado mesmo! Se entre os senhores alguém que tenha chegado depois quiser colaborar, meu ajudante passará novamente com a cesta para receber seu donativo.

O ajudante voltava com a cesta cheia de moedas. Eram os últimos tostões que Índio arrancava do povo, já impaciente para ver  o grande animal, o maior jacaré do mundo em ação!

— Então, queridos amigos de Brasília, reunidos nesta bonita cidade de Taguatinga. Neste momento, entrego a um de vocês este bloco de granito para que ofereça a Amarildo. Quem se habilita? — Ninguém se habilitou, óbvio. Depois de alguma insistência, concluiu… — Sendo assim, em decorrência do grande respeito e do amor de vocês a este gigante do Amazonas, eu mesmo, Índio da Amazônia, comandarei o espetáculo inesquecível de Amarildo esmagar a grande pedra de granito nos dentes!

O povo esperou o momento mais solene, cada um querendo ver de melhor ângulo. O ajudante pegou de um lado, Índio sempre à frente, conduziram a pedra até Amarildo. O animal parecia não querer participar do espetáculo e arreganhou a boca para atacar o homem que, imediatamente, colocou a pedra no chão e retirou do bolso do avental um peixe congelado e lançou para deleite do jacaré.

— Vejam o sofrimento de Amarildo. Certamente os dentes já cresceram tanto que ele é obrigado a ficar com a bocarra aberta. Obrigado pela colaboração de todos. Após mastigar aquela pequena sardinha, Amarildo vai estraçalhar o grande bloco de granito, mais duro que concreto!

Como se entendesse a preleção, o animal retornou ao bom humor. Boca aberta, esperou Índio depositar o peso sobre sua cabeça — do jacaré. Imediatamente, girou, aparou o granito no ar e fez crac, dividindo-o em duas partes, uma para cada lado da boca! O povo vibrou. Bateu palmas e deu vivas ao grande animal!

Imediatamente, Índio levou a mão à algibeira em busca de peixe congelado. O jacaré esperava a retribuição entendendo ter cumprido a tarefa. Olhou Índio. Esperou a contrapartida. Índio remexia nos bolsos da calça, no bolso do colete, procurou a capanga… Perguntou ao ajudante onde estava a capanga. O ajudante respondeu não ter pegado a capanga.

— Cadê a capanga, lástima? Cadê a capanga?

Amarildo olhava firme esperando a retribuição, pois estava com fome, quase vinte e quatro horas sem comer gororoba consistente. E nada de lhe ser oferecida a sardinha. Índio procurando a tal capanga onde costumava guardar as sardinhas. Não encontrava a capanga nem as sardinhas. Diabo dessa capanga! E a sardinha, ajudante? O ajudante informou não ter visto; procurara nos lugares próximos e não encontrou nenhuma sardinha. De duas, uma: ou se perdera na viagem ou acabara mesmo!

Amarildo impaciente, olhar fixo no Índio. O povo torcendo para que encontrasse logo as sardinhas, e nada. Índio amarelou. Quis correr, o povo correu primeiro. Mesmo já se afastando, muitos ainda viram quando o portentoso animal, quinhentos quilos, dentes enormes, mais de cinco metros de cumprimento, partir resoluto em busca da sardinha a que tinha direito. Como Índio não ofereceu o peixe, Amarildo abriu a boca, suspendeu o domador e, crac, dividiu o corpo em dois pedaços!…

Quando a polícia atendeu ao chamado só encontrou a parte das pernas de Índio da Amazônia. Após o banquete, Amarildo, devagarzinho e cauteloso como todo jacaré, sentiu cheiro de água, encontrou um bueiro sem tampa, passou a cabeça, passou o rabo, e, pelas galerias pluviais, ganhou as águas do Lago Paranoá. Os jornais do Brasil estamparam manchetes com o acidente, que aconteceu no final do século passado. O governo do Distrito Federal, depois de muita insistência da população proibiu apresentação de animais em circos e parques de diversão, sob pena de prisão e ação penal por maus tratos aos animais. Esqueceram, entretanto, de proibir a submissão do próprio ser humano ao perigo, como ainda acontece nas praças públicas, a exemplo dos atiradores de facas que arrancam das bochechas de mulheres cigarros e mais cigarros. Não morrem por um triz.

Amarildo nunca mais foi visto. De vez em quando, age no Paranoá quando algum banhista afoito desaparece nas águas profundas do lago sem deixar vestígios. Nem o cadáver é encontrado. Certamente proeza de Amarildo, o maior jacaré que já se viu. Como dizia Índio, mais de cinco metros, quinhentos quilos, capaz de torar um bloco de granito com uma dentada…

Engolir um bicho homem, então, foi até fácil…

 ***

O homem do sanitário

            Segunda morte

 

Vivia pelas ruas, de porta em porta; bate e espera. Se não aparecer alguém e estando aberta a porta, entra sem permissão, não sabendo estar cometendo crime de violação de domicílio, tipificado no Código Penal. Quando alguém o atende e pergunta-lhe o que quer, a resposta é automática: “Um dinheiro pra comprar pão, pois estou com fome e não comi nada hoje”. Ante a negativa, declina o verdadeiro objetivo da abordagem:

— Então deixa eu usar o sanitário.

Muitos o deixavam entrar, com pena. Afinal, apertado, na rua, sem lugar adequado, pedir para usar o sanitário (a privada ou a sentina, nomes antigos) é como implorar um copo d’água. Quem haveria de negar água, ainda mais a um senhor de certa idade?  Pois, a pessoa de boa fé que fizesse a caridade sofreria as consequências. O dito cujo se trancava no banheiro e não se propunha sair durante todo o dia. Após tentativas infrutíferas, geralmente deliberavam arrombar a porta do reservado e grande era a surpresa: o homem dormia sentado no vaso sanitário. Dormir sentado no vaso era um transtorno obsessivo. Como era pobre e naquele tempo pobre não tinha direito a sanitário privativo em casa, a chamada privada, o homem saía em peregrinação por um momento de descanso.

Ficou conhecido. Quando apontava na rua, gritavam: “Lá vem o homem do sanitário. Fecha a porta!”. Logo, a voz suplicante anunciava… Ô de casa! Uma caridade por amor de Deus… Quem é, perguntavam. Um pobre largado da vida, e com três filhos pra criar, lamuriava-se. A dona de casa abre a porta. Pois não, senhor…

— Uma caridade. Nem que seja um pedaço de pão.

— Acabou.

— …de beiju.

— Acabou também.

— Um ovo.

— A galinha não pôs ainda.

— Então me dê um copo de água.

Como negar o copo com água? A mulher entrou em busca da água; o homem escorregou pelo corredor lateral direto ao sanitário. Entrou e fechou a porta. Ao sentar, murmurou… “Meu Deus, já estava cansado. Dois dias sem dormir…”.

A mulher retornou com a água, desculpando-se…

— Não está muito fria, não. Enchi o pote agora. — Olhou em volta. — Onde esse homem se meteu? Parece que arribou no mundo? Ei, tome a água!

Nem sinal do sedento e tudo volta ao normal. Volta ao trabalho, precisava terminar a costura de uma camisa. O tempo passa. Quase meio dia. A filha retorna da escola. Depois de toda a manhã no colégio, banheiros de uso coletivo e nem sempre em boas condições de higiene, precisava ir ao sanitário. Encontra a porta fechada. Empurra. Fechada mesmo. Volta. Muda a roupa, recolhe a farda ao guarda-roupa. Volta ao sanitário, empurra a porta. Continua fechada. Pergunta…

— Mãe, tem alguém no sanitário?

— Ninguém.

— A porta está trancada por dentro.

— Deve ter sido o vento; empurre com força.

— Mais força, só se derrubar. Por dentro fecha com ferrolho? Vento nenhum sabe trancar ferrolho. Não entrou ninguém aqui?

A mãe para, mira o telhado para se lembrar…

— Por aquela porta não entrou ninguém. Só um homem me pediu água. Vim buscar a água, mas não o encontrei mais.

A filha arregalou os olhos: — Mãe, era ele! O homem!

— Era homem mesmo, ora.

— Era o homem do sanitário!

— Não é possível!

Correram ao sanitário e bateram na porta: — Tem gente aí? — Sem resposta. O homem certamente dormia o segundo sono. Gritaram por socorro. A vizinhança atendeu: O que foi? O homem do sanitário! Se trancou aqui em casa.

— Vou chamar alguém pra arrombar a porta.

— Não vou deixar ninguém arrombar minha porta!

O drama continuou por um bom tempo. Ninguém tirava a razão da dona da casa, fechadura naquele tempo custava os olhos da cara. Mesmo só o ferrolho ainda sairia caro, pois, de tão careiro, o marceneiro quase metia a mão no bolso dos clientes.

O delegado é chamado a intervir. Visivelmente contrariado, desceu do veículo, armado e paramentado, acompanhado pelos dois soldados do destacamento policial.

— Só faltava essa! Com tanto bandido matando e assaltando a força policial foi chamada para arrombar porta de sanitário! Que lugar mais atrasado!

Com raiva, meteu o pé na porta, continuadamente, prestes a dilacerar a madeira. A dona da casa pedia calma:

— Devagar, delegado. Não precisa quebrar a porta toda, basta no lugar do ferrolho.

O delegado disse não admitir que paisano se intrometesse nas atividades policiais. Buscou adjutório dos dois soldados e colocaram a porta abaixo. Porta no chão, o mesmo espetáculo: o homem, sentado, traseiro tomando todo o assento do vaso, dormia e roncava indiferente ao barulho e aos passos destemidos da tropa militar.

— Levanta daí! Sanitário não é lugar pra dormir! Ainda mais na casa dos outros! Vai preso agora!

O coitado despertou do torpor. Abriu os olhos devagar… Assustou-se! Levantou-se agitado, já com as roupas nas mãos.

— Valei meu pai eterno! Que lugar é esse que não se consegue nem cochilar? Desse jeito vou morrer. Quem pode viver sem dormir? Já perdi a conta dos dias que não durmo! Agora que consegui um pouquinho vem esse povo todo como se eu fosse um criminoso!

— Você vai é preso! — tornava o delegado.

— Preso posso até ir, mas só depois que terminar meu cochilo. Agora, de jeito nenhum. Prefiro morrer!

O delegado enrijeceu os beiços, mordeu a língua de tanta raiva…

— Se estivesse sozinho você ia de qualquer jeito. Imagine estando com a força policial!

O homem não aceitava ordem nem ponderação. Só iria depois de saciar o sono. Os policiais nervosos. A dona da casa sem saber se livrava a casa do indesejado ou rogava pela vida do coitado. A filha, só de anágua e sutiã, aos berros, correu à rua afirmando não voltar para sentar no mesmo vaso usado pelo homem do sanitário. Fora, frente da casa, o povo aguardava o desfecho da agonia.

— Pega! Tira! Mata!

Os gritos determinaram o libelo. O delegado ordenou que segurassem os braços e as pernas do coitado. Seria retirado à força, sob pena de desmoralizar a polícia. Arrastaram no rumo da porta sob protesto de “não vou, não vou”. Vai, vai! — delirava a autoridade enquanto arrastavam o homem. De repente, no meio da contenda, um barulho seco, fogo de artifício ou de bala. Na rua, as pessoas esperaram a confirmação da suspeita. O corpo do homem amoleceu, perdeu as forças. O delegado viu a arma do soldado Araújo fora do coldre, no chão…

— Você matou o homem! Você matou o homem!

Araújo defendeu-se: — Eu não, delegado! Juro que não fui eu! Ele pegou a arma na minha cintura e puxou o gatilho. Juro que não fui eu!

— Foi você, sim! A responsabilidade é sua, não teve o devido cuidado com a arma que o Estado passou para as suas mãos.

— Mas não tive intenção, delegado! Não fui eu que puxei o gatilho!

— Vai ter que provar, todo mundo está vendo que a arma é sua! O tiro pegou bem na testa e a arma é sua!

— Mas, delegado…

— Nem mais nem menos. Em nome da segurança pública, em nome do Estado, está preso!

Ao soldado não restou alternativa senão oferecer os pulsos às algemas. Logo, saíam os dois policiais arrastando o corpo pelos braços, acompanhados pelo cabisbaixo Araújo, que enfrentaria a temida justiça militar em plena ditadura. Acabou. Ouve-se um plim-plim e a televisão anuncia a nova programação. Assusto-me. Uma voz chama:

— Nildo, Nildo… Está melhor? Foi ao banheiro? Conseguiu fazer?

Desnorteado, confuso, não entendi… Como? Como? E o homem do sanitário?

— Homem do sanitário? Você está sonhando? Quem deve ir ao sanitário é você mesmo, há três dias sem conseguir botar pra fora!…

Envergonhado, bati a mão espalmada no ventre ainda fofo, constipação intestinal que me acomete quando me excedo na bebida e na comida. Certamente, adormeci. Não fui ao banheiro nem terminei de assistir ao filme policial da programação da televisão, onde a polícia, no final, capturava e matava alguém — na minha percepção inconsciente, o homem do sanitário. Pior é que este homem era eu mesmo, precisando ir ao banheiro e morto de sono em decorrência da agonia intestinal.

Foi minha segunda morte. É sonhar demais…

 ***

 16º conto:

Genésio, o come rato

 

Mora, sozinho, nos escombros da casa abandonada. Sem água ou luz, vale-se de candeeiro improvisado em garrafa de cachaça que ele mesmo esvaziara. A água para consumo vem da chuva, quando a bica derrama o líquido em caixa de amianto sobre armação de madeira. Dali retira o líquido para todas as necessidades, inclusive lavação das fuças quando desperta sóbrio. Banho mesmo, só quando ganha roupa de presente. A última foi há mais de mês. Ao passar, as pessoas repugnam, mãos nas narinas…

— Que catinga mais horrível!

Nem parece ser com ele. Genésio segue sua caminhada à procura de nada. À noite, faminto e encharcado de álcool, retorna ao cubículo. Os meninos se escondem…

— Corre que lá vem o Genésio!

— Genésio é a mãe! Eu sou é Jesus!

Realmente estava bêbado; a prova era trocar Genésio por Jesus. Em casa, esparrama-se no chão. A barriga ronca, pede comida. Ratos passeiam ao lado. Alguns, mais afoitos, lambem-lhe as pontas dos pés e até as mãos, querendo arrancar a pele carcomida e grosseira. Um deles é agarrado. O animal chia e usa os dentes em busca da liberdade, sem êxito. As mãos impiedosas de Genésio apertam o ventre até as vísceras saírem pelo ânus, quando, então, solta o grito da vitória:

— Morre, filho de uma água!

De tão bêbado, em vez de filho de uma égua, feminino de cavalo, diz filho de uma água, que era, de fato, no que pensava…

— Cadê a água?

Uma voz responde da escuridão do seu cérebro:

— Pra que água?

— Pra botar no fogo e esquentar.

— Vai beber água quente?

— Não! Vou cozinhar o safado desse preá.

— Que preá? Onde está o preá?

— Aqui, preso na minha mãe!

— Você está maluco, Genésio? Que preá está preso na sua mãe?

— Mentira! Falei que estava preso na minha mão!

— Genésio, isso é um rato!

— Rato é rabudo; esse não tem rabo. É preá ou sariguê.

— Sariguê não é preto.

— Se tem gente preta e branca também deve ter sariguê, ora mais! Cadê a água?

A consciência não trouxe a água e o animal foi moqueado, vivo ainda, na chama do velho candeeiro. O cheiro de cabelos queimando escapuliu pela fresta da porta, preocupando o vizinho mais próximo. O instinto de sobrevivência o fez aproximar-se no momento em que o cheiro de carne queimada ganhava a rua. Gritou com todas as forças:

— Socorro! A casa do Genésio está pegando fogo!

O abrir de portas mostrava a solidariedade dos moradores, que já saíam com latas cheias de água.

— Vamos apagar o fogo do Genésio que deve estar bêbado, sem força até para correr! Vamos!

Arrombaram a porta com facilidade — aliás, apenas encostada. Primeira vez que acessavam as entranhas da casa de Genésio, estarreceram ante a visão surreal: o homem rasgava as carnes do animal com os dentes. O sangue escorria pelo corpo e atraia roedores que disputavam as migalhas. Chamaram por Deus:

— Valei meu pai eterno! O homem é bicho mesmo, fala e come com os ratos!

— Não disse que era o cão em pessoa?! Não tem explicação esse homem não colocar uma panela no fogo para cozinhar comida. É o cão mesmo!

— Não pode morar em uma rua de gente direita e temente a Deus. É o cão, sim!

Logo, a ponta da rua estava cheia de pessoas que atenderam ao chamado. Não acreditavam no que viam. Os animais, acostumados com Genésio, não reagiam à presença humana; e animavam-se no banquete regado a sangue e vísceras. Genésio, embriagado e fora de si, falava como se dirigisse aos vizinhos:

— O preá é grande, dá pra todos. Podem vir… — O povo, vomitando, embaralhava a mente doentia do homem — Se quiserem mais eu pego outro preá, é fácil; só apertar a mão. E o fogo está bom, bem quente. Podem vir todos…

Aí o vizinho da direita clamou pela justiça divina…

— Meus amigos, todos estão de prova. Suportei esse senhor como se fosse meu irmão em Cristo. Muitas vezes matei sua fome, saciei sua sede achando que fosse um ser igual a nós. Me enganei. É o diabo em pessoa e ainda tenta levar a gente a este banquete do horror!

A multidão se encorpava com a chegada de mais pessoas. O vizinho inflamou-se mais ainda quando viu, no canto, o prato com restos da comida apodrecida que oferecera há dois dias…

— Esse homem é o cão mesmo! Vejam com seus próprios olhos: o prato com o feijão, arroz e a carne que tirei da boca dos meus filhos para lhe dar, ele deixou apodrecer no canto da casa. Prefere comer rato cru, apenas sapecado pela fumaça desse candeeiro! Pior, os ratos que moram com ele devem ser também criaturas do cão, pois preferem comer aquilo em vez da comida que eu dei!

Dos buracos das paredes e do chão afloravam ratos e mais ratos. Uma ratazana abandonou uma mala velha jogada ao canto, deixando para trás mais de dez filhotes famintos. A multidão enojada enfureceu-se. Com paus e pedras avançou sobre os animais, matando-os às dezenas.

Genésio gemia, pedia para não acabar com os preás, comida dele, atiçando mais ainda o instinto de sobrevivência e preservação humana. Alguém ordenou que calasse a boca ou morria. Genésio disse já estar morto. Aí foi demais; o vizinho piedoso que lhe matava a fome convenceu-se ser o diabo mesmo…

— Vocês ouviram? Ele mesmo disse que é o cão! É o cão que se apossou do corpo de homem. De duas uma: acabar o bicho agora mesmo ou deixar que se aposse também da alma do coitado. Pra mim só tem uma saída: acabar com o demo! O Genésio, o vizinho, já morreu há muito tempo!

Inflamou a multidão. O nojo virou fúria e a raiva violência. Juntaram todas as porcarias encontradas pela casa, inclusive os animais mortos, amontoaram sobre o colchão velho onde Genésio se prostrava e deliberaram tocar fogo. As mulheres pediram por Deus que não fizessem aquilo, era um ser humano, deveria ser salvo e não morto como bicho. Que se buscasse então o padre ou um rezador para expulsar o demo do corpo do homem!

O padre não se encontrava na cidade. O rezador até compareceu, mas, disse não dar jeito em um bicho daqueles. Já estava morto e em estado pior que todos os ratos, tal o peso dos pecados. Garantiu, certeza mais que absoluta, que para aquele não tinha jeito. O descanso eterno seria o melhor para o corpo e para a alma, só restando rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria. E assim foi feito.

Após a reza, o próprio pai de santo despejou o querosene do candeeiro no colchão e riscou um palito de fósforo. O fogaréu consumiu tudo, inclusive o restinho do corpo de Genésio, o come rato.

Quando a polícia chegou, tarde da noite, só encontrou ratos mortos e queimados. Os restos mortais desapareceram misteriosamente, deixando uma grande interrogação: existiu mesmo na rua uma pessoa chamada Genésio?

Ao que parece ninguém foi ao enterro, aliás, não se sabe nem aonde foi enterrado. A mudez tomou conta de todos. Não se ouviu referências aos fatos, e já não se pode investigar. O vizinho da direita faleceu precisamente sete dias após o incêndio que aniquilou todos os ratos. O da esquerda, com medo de maldição, arribou para São Paulo.

Permanece a interrogação: existiu mesmo esse Genésio, o come rato?

 ***

30.º conto:

 Os milagres do beato Vivaldo de Jesus

 

            Quinta morte

 

A notícia se espalhou por Brasília, Distrito Federal. As emissoras de televisão entrevistam moradores de Taguatinga, onde ocorriam supostos milagres obrados por um beato, que, para tanto, utiliza unicamente a água de uma fonte natural. Com intenção de provocar comoção o apresentador de programa popular, após entrevistar o Administrador da cidade, torce para que os milagres sejam verdadeiros, estendam-se por todo o Distrito Federal e traga zelo aos responsáveis pelo trato da coisa pública. Depois, bate a mão espalmada sobre a bancada…

— Olha, minha gente, sabe o que quero mesmo? Que esse milagreiro aja sobre a consciência dos políticos, principalmente de Brasília. Para que respeitem os interesses do povo, e apliquem os recursos públicos em benefício da comunidade. — Arregala os olhos… — Tem justificativa uma cidade rica mostrar ao país pessoas morrendo nas filas de postos de saúde, no chão, por não ter nem maca onde possam aguardar atendimento? É deplorável! Faltam medicamentos e até seringas. Onde está o Secretário de Saúde da capital do Brasil, que prometeu resolveu essa vergonha há três meses e até agora nada? É lastimável! Vamos ao intervalo.

Os jornais estampam em manchetes os últimos acontecimentos. Jornal Brasileiro: Milagre acontece em Taguatinga. Correio de Brasília mostra a foto do milagreiro na primeira página. Até os tablóides, dedicados à divulgação de sangue e violência, dão espaço aos acontecimentos: Milagre pode transformar Taguatinga em lugar de romaria!

Nas ruas só se fala nos milagres. Nas repartições públicas servidores comentam os fatos. Francimar Peixoto, servidora pública, natural do Maranhão, discute com Sebastião Motora, que não acredita mesmo:

— Vocês estão brincando com fogo! Milagre só Cristo opera! Como evangélico não posso acreditar que um pecador seja investido de poderes de Deus. Quem é ele? Faz o quê? Um joão ninguém que veio da Bahia, uma mão na frente e outra atrás, que nem orar sabe. Ir à igreja não quer dizer que mereça as bênçãos do Pai, muito menos a capacidade para operar milagre. Com certeza, é mais um farsante.

A repentina fama do beato atraiu pessoas, inclusive quem ia só interessado em vantagens pessoais, a exemplo de Zé Bittencourt, residente no Núcleo Bandeirante. Vestindo roupas brancas e sandálias da mesma cor, após abesuntar a rala cabeleira castanha, Bittencourt apresentou-se ao beato Vivaldo de Jesus:

— Meu santo beato, permita beijar sua mão. Tenho andado por todo esse Brasil; confesso nunca ter presenciado poderes tão fortes como os da sua pessoa, capazes de curar cego e levantar defunto.

O beato pediu calma ao visitante…

— Meu senhor, pelo amor de Deus! Quem sou eu para operar milagres? Quem manda no mundo e na vontade das pessoas é Deus! Eu apenas faço uma oração, que encoraja quem está doente ou sofrendo a buscar forças no Pai Eterno e se livrar dos males. Não sou milagreiro.

 

O telejornal do meio dia apresentou reportagem especial sobre os fatos. “E atenção, a cidade de Taguatinga pode se transformar em uma Meca religiosa, capaz de atrair romeiros de todo o Brasil, com o aparecimento do milagreiro de nome Vivaldo de Jesus. Veja a reportagem ao vivo, direto da igreja Bom Pastor, na QNL”. As imagens mostram a igreja cheia de pessoas cantando e rezando. À frente, sobre um tablado, o beato Vivaldo de Jesus, roupão branco, cabeça coberta por pano igualmente branco…

— Caríssimos irmãos, o Pai Eterno habita sobre nós. Conhece as dificuldades e mazelas de cada um. Sabe do que mais precisamos. Conhece as dores que solapam nossos corpos e nossas mentes. Portanto, não carece nem pedir, pois Ele nos conhece demais. Podemos até não receber as graças; se isso acontecer, é porque não merecemos receber. É momento, então, de rezar; pedir perdão pelos pecados que habitam nossas vidas, para que mereçamos a bondade suprema. Neste momento, quando os corações se voltam a Deus, vamos, do fundo da alma, fazer uma oração fervorosa para que o Pai atenda aos pedidos que faremos agora…

Todos se ajoelham e oram. Acenam, olham o céu, fecham os olhos… O ritmo das orações é quebrado pelo barulho de um corpo caindo. Comoção. Todos olham a tempo de ver um senhor, ainda jovem, estatelado no chão. Após alguns minutos, levanta-se trôpego…

— Bendito seja o Beato Vivaldo de Jesus! Essa foi a última vez que a epilepsia me pegou. Estou curado! O Beato Vivaldo de Jesus me curou desse mal que me acompanha desde que me entendo por gente. Obrigado, Beato! Obrigado, Pai nosso que está no céu, por não ter esquecido esse filho insignificante! Estou curado, minha gente!

A televisão mostra, ao vivo, o testemunho do senhor que merecera a cura da epilepsia; tão confiante, que arrancou dos bolsos um punhado de remédios e lançou adiante:

— Estou curado pela graça de Deus e pelos poderes passados ao Beato Vivaldo de Jesus. Não preciso mais de remédios. Bendito seja o seu nome!

O merecedor da graça foi Zé Bittencourt, o mesmo que se apresentara efusivamente ao Beato. Quem o conhecia até hoje duvida da cura da epilepsia, e até se este mal o molestava mesmo ou fora invenção em prol de proveitos futuros. O Beato ainda teve a vaga impressão de já conhecer o curado; como não se lembrava de onde nem quando, tomou o curado como um desconhecido. Logo após, em entrevista à Televisão, Bittencourt informou ter nascido com um desvio no cérebro, trazendo, como consequência, a epilepsia. Agradeceu tanto a cura pelos poderes do Beato que se transformou, a partir dali, em seu obreiro. Prometeu dedicar o resto da vida a ajudar o Beato a curar e salvar pessoas. E sempre se fazia presente às sessões de orações das quartas e sextas feiras, bem como aos domingos.

Ao transmitir a sessão da cura, a Televisão levou o culto aos lares brasilienses. Transmitido em cadeia nacional, o Beato tornou-se conhecido em todo o Brasil, e até no exterior. Em decorrência, caravanas de romeiros chegavam para ouvir as palavra e arriscar merecer a graça de Deus, como bem dizia o próprio Beato:

— Queridos irmãos, não esqueçam o que sempre afirmo. Se algum de vocês se sentir curado de um mal maior ou menor, lembre-se que a cura veio diretamente do Pai Eterno; e se veio, veio porque você foi merecedor. Nada tenho, nada sou e nada quero de cada um de vocês. Só lhes peço, encarecidamente, que zelem pela natureza. Meu único compromisso neste mundo, a esta altura da vida, é trabalhar pelo equilíbrio da natureza. Pois, em equilíbrio a natureza também estará necessariamente em equilíbrio o espírito. E espírito desequilibrado, todos sabem, principalmente os doutores da medicina e da igreja, é porta de entrada para todos os males do mundo.

O povo não entendia de onde o Beato, pessoa rústica e sem estudos, retirava tanta sabedoria…

— É o Pai Eterno que me dá forças para orar durante tanto tempo, o suficiente para atender a todos que procuram a cura dos males do corpo através do equilíbrio espiritual, que obtemos com oração e fé. Porém, peço encarecidamente — sempre repetia — que se pautem com respeito à natureza, aqui representada pela fonte do Parque Onoyama, que derrama a água mais pura, coletada por mim e pelas pessoas que me auxiliam. — Coincidentemente, o irmão José Bittencourt passava adiante com bacia esmaltada repleta de água, vindo da fonte.

A partir daquele momento, a fonte transformou-se em referência para todos que buscavam as orações e a bondade do Beato. A cidade registrou mudança no seu cotidiano. O Brasil todo, e ainda o estrangeiro, derramava pessoas para ouvir o Beato. Mais ainda quando conhecido cantor foi, pessoalmente, pedir orações para melhoria da saúde de sua mãe. A televisão transmitiu, ao vivo, o abraço emocionado do cantor, lágrimas abundantes, enquanto pedia pela saúde da genitora. Vivaldo de Jesus chorou junto, informando depois ser tão sensível que chorava a dor das pessoas.

Como nas cidades satélite não existe Prefeito, mas, Administrador Regional, este cuidou de reformar a igreja do Bom Pastor para melhor adequá-la aos cultos. Enfrentou a resistência do pároco, padre Moacir, que interpretava como charlatanismo as sessões de cura. O padre não aceitava a interferência do poder público. Dizia que a paróquia sempre sobrevivera sem o apoio oficial; e não era agora que se rebaixaria aceitando esmolas da mesquinharia e de interesses que nem ele, padre, sabia quais eram.

Criou-se uma cisão entre os poderes eclesiástico e político obrigando a interferência do Bispo, atendendo solicitação do Administrador da cidade, que não entendia as razões que levavam o padre a rejeitar ajuda e dinheiro.

— Comportando-se assim, vai de encontro aos interesses da comunidade. O senhor já viu, Bispo, a quantidade de pessoas que participam dos cultos? Milhares! Deixar aquele povo sem as mínimas condições de higiene é porta de entrada para doenças e moléstias.

Tentaram convencer o pároco que as evidências levavam a crer que as orações e os procedimentos eram verdadeiros, sem charlatanismo. Padre Moacir não aceitou as ponderações; preferiu arribar para outra diocese, e passou ministrar o evangelho no vizinho estado de Goiás. As portas agora estavam escancaradas ao projeto do governo, e até da diocese, de transformar Taguatinga em Meca nacional da fé e da romaria.

Com a saída de padre Moacir a igreja mantém as portas abertas até altas horas da noite, sempre com urnas de coleta de donativos em cada entrada. Cuidaram de ampliar a capacidade física construindo um galpão anexo, capaz de acomodar cinco mil pessoas sentadas. Mesmo contra a vontade do Beato, o Administrador da cidade investiu bom dinheiro para canalizar a água da fonte, agora mais miraculosa ainda, colocando várias torneiras em bonito chafariz cromado e dourado, construído com pedras sob medida, ao lado do galpão. Obra pronta, hora de inaugurar.

A administração pública, através de anúncios na televisão, convidou o povo para inauguração da fonte, apresentada como realização de governo. O fato trouxe insatisfação de outras religiões, que alegaram o preceito constitucional que vedava à administração pública vincular-se a credo ou religião, considerando ser o Estado brasileiro laico. Impetraram Mandado de Segurança; mesmo assim, foram mantidas as solenidade de inauguração da fonte miraculosa.

A reportagem escolheu os melhores ângulos, repórteres por toda a extensão da área. Ainda cedo, o povo chegava, após caminhar quilômetros, para participar do evento. Empresas do transporte público criaram linhas especiais até o largo da QNL, ao lado do galpão. Ônibus interurbanos descarregavam centenas de pessoas ávidas para ouvir a palavra do Beato e purificarem-se com a água santa que livrava dos males. Até grupos ambientalistas deslocaram-se de longe para conhecer a pregação do religioso que se preocupava com a natureza, aliás, colocava a natureza como razão do equilíbrio físico e mental das pessoas. De São Paulo partiram caravanas de ambientalistas do Gramprix, organização não governamental recém criada em decorrência de dissidência de conhecida entidade internacional. A Bahia fez-se presente com a chegada do grupo ambientalista Gamba. Embora sede de muitas entidades internacionais, de Brasília não se apresentou nenhum grupo ambientalista por discordância aos métodos de administração pública utilizados pelo governo local.

Assim, próximo ao horário marcado já não existiam lugares. A multidão foi se alargando de tal forma que a área ocupada já era superior a quatro quilômetros quadrados, na compreensão da polícia local, que nem sempre merecia crédito pela megalomania dos cálculos, imputando mais pessoas que o número real.

No horário marcado, dez da manhã, ouviu-se longe o ronco do helicóptero, único meio de transporte do governador, que se aproximava veloz. As forças policiais abriram clareira humana no centro da praça, e a aeronave fincou o chão com barulheira e ventania. O governador foi aclamado, seguindo, juntamente com o Administrador, ao palanque central, onde os aguardavam Beato Vivaldo de Jesus e obreiros.

A televisão transmitia ao vivo a inauguração da fonte miraculosa capaz de ressuscitar mortos e curar doentes, como se viu nos últimos meses — e mostrava no telão algumas imagens, inclusive a cura da epilepsia do obreiro Bittencourt.

No palanque, primeiro falou o Administrador. Elogiou a grande capacidade de operar milagres do Beato. Vindo da Bahia, bairro de Pau da Lima, Salvador, origem humilde e sem estudos, transformou-se na maior referência, nacional e até mundial, na cura dos males do corpo e da alma. E o mais importante…

— …Vejam vocês, mesmo sem saber, o Beato Vivaldo de Jesus coloca a preservação da natureza como razão de equilíbrio para as próprias pessoas, exatamente o maior objetivo da nossa administração: preservação ambiental. A maior prova desse propósito foi resgatar esta fonte de água natural, encanando-a e trazendo até este local para que todos possam usufruir da sua pureza, e daí, com a interferência do Beato, conseguir, também, a cura dos males do corpo e da alma. Sei que a missão do Beato não é deste mundo; mas, nesse momento, quero convidar o cidadão Vivaldo de Jesus para ocupar uma das cadeiras de deputado na Câmara Legislativa, para lutar, também na esfera leiga, pela defesa e preservação ambiental, e pelos direitos do povo pobre que busca os milagres das suas mãos santas!

O Beato, assustado, gesticulou não aceitar o convite. O administrador percebeu e corrigiu imediatamente…

— Tinha certeza que não aceitaria, prezado Beato. A sua ação não é deste mundo. Nasceu e veio ao Distrito Federal para cuidar dos pobres e curar os espíritos sofredores que o procuram. Porém, quando o convidei, não coloquei sua figura material para compor a câmara legislativa. Quis dizer que o senhor, Beato Vivaldo de Jesus, indique uma pessoa da sua estrita confiança para assumir um mandato na câmara legislativa; tenho certeza que essa multidão calorosa o elegerá com fartura de votos! — O povo bateu palmas, animou mais ainda o orador. — Pessoas e nomes capazes de representar esta religião e este culto não faltam. Lanço, neste momento, o nome do irmão José Bittencourt para a câmara legislativa, pelo fato, inclusive, de já ter merecido a graça maior da cura, quando, pelas mãos miraculosas do Beato, viu-se livre de uma epilepsia que o acometia desde menino. Então, senhores, para deputado distrital, neste momento solene, lanço o nome do irmão José Bittencourt, com o apoio do Beato Vivaldo de Jesus e de todos vocês!

O obreiro Bittencourt tremeu por dentro. Nunca pensara na possibilidade de virar político, nem mesmo vereador na sua terra, interior de Goiás; deputado em Brasília seria mesmo milagre. Timidamente, acenou ao povo, recebendo palmas e mais palmas. Enquanto isso, os ambientalistas visitantes expressavam a compreensão de viagem perdida. Acreditaram demais na seriedade pelo fato de o aceno vir da capital federal; decepcionaram-se. Não se pode misturar nobreza com tanta baixaria, expressou um deles. Um dos ônibus interestaduais manobrou adiante, tomou o rumo da estrada, de volta para casa, erro na compreensão do evento.

Vivaldo de Jesus permanecia quieto, pasmo até, com tanta  falação. Afeito a pouca conversa, introjetava-se mais ainda com o discurso do administrador. Depois, foi a vez de o governador dirigir-se ao povo. Saudou o Administrador da cidade, Beato Vivaldo, Bittencourt e o povo, informando ter abdicado de compromissos importantes para marcar presença naquele evento de inauguração da fonte da água mais pura e mais miraculosa do mundo, presente de Deus ao Distrito Federal, que mandou ainda este santo homem, o Beato Vivaldo de Jesus. E que nome! De Jesus!… E dirigiu-se diretamente a Vivaldo…

— Meu querido Beato, não tenho palavras à altura da sua pessoa, continuador de Cristo nessa faina de curar e salvar o homem. Sua presença em Brasília tem significado especial; por ser centro irradiador para todo o país, sua mensagem de paz chegará a todos os lares brasileiros. Depois, querido Beato, você chegou no momento em que mais precisamos. Vivendo uma campanha de combate à dengue, sua mensagem em prol da natureza limpa e equilibrada certamente terá como efeito a erradicação desse mosquito maldito que já acometeu da enfermidade mais de três mil brasilenses! Obrigado e muito obrigado. Seu trabalho de curar os males do corpo e da alma é reconhecido em todo o Brasil, e a maior prova são as centenas de ônibus interestaduais que testemunham este evento. Não estamos inaugurando uma simples praça, uma escola, uma quadra de esportes. Inauguramos uma fonte de vida, de água pura, reflexo da natureza pujante. Enaltecemos, acima de tudo, a vida humana com seu trabalho de salvar vidas, curar doentes e ressuscitar mortos, como mostraram as reportagens da Televisão. Assim, é com muita honra que inauguro esta fonte de vida. Mais do que isso, reconheço concretamente o belo trabalho de Vivaldo de Jesus de duas formas: decretando esta fonte miraculosa como de utilidade pública, e oferecendo ao seu criador o título de cidadão brasiliense, conforme decreto legislativo já aprovado pela câmara legislativa — duas jovens trazem os documentos ao palco. O governador convida o Beato… — Neste momento feliz para todos nós, convido o Beato Vivaldo de Jesus para receber as honras!

O Beato mal caminha. Devagar e contrita, a figura branca rompe ao palco. Recebe a comenda sem levantar as vistas. O povo aplaude e aplaude…

Depois de muita insistência para falar, a coordenação do evento permite que um homem, posicionado junto ao palanque, leia uma mensagem. É conduzido ao palanque…

— Meu governador, administrador da cidade, meu querido Beato Vivaldo de Jesus. É com satisfação que subo ao palanque para testemunhar a verdade dos seus poderes, que me trouxe novamente o sopro da vida. Sim, senhores, eu estava morto; morto e desenganado por todos os médicos da minha terra, no estado da Bahia. Vi pela televisão que a água pura e milagrosa do Beato Vivaldo de Jesus ressuscitava até pessoas já enterradas. Pedi a minha mulher, que aqui se encontra, que me trouxesse de qualquer forma. E vim; como já tinha gasto toda a minha fortuna, eu era um homem rico, com médicos e remédios, só pude vir em uma maca improvisada no lombo de um burro, único animal resistente o suficiente para me trazer aqui, aonde cheguei praticamente moribundo. Já na chegada, quando me ofereceram o líquido e soube ser a água milagrosa, senti meu corpo sacudido pela fé e pela força do milagre. No outro dia, já estava quase bom. E no terceiro dia, já podia montar o animal e voltar para casa completamente curado!

A comoção foi geral. Um senhor se projetou da multidão e disse, aos brados, estar vendo no palanque o pai dele, que já morrera há mais de vinte anos! Rumou ao palanque, guiado pelo apresentador, que pedia, encarecidamente, que dessem passagem para a fé daquele senhor. Chegando ao palanque, antes de abraçar o Beato e beber a água santa que Bittencourt oferecia, o homem retesou-se todo e caiu trêmulo, para logo aquietar-se. Um dos seguranças foi ao corpo…

— Está morto! Está morto! Está morto!…

A multidão grita pelo Beato de Jesus:

— Ressuscita! Ressuscita!

Vivaldo de Jesus glorifica a Deus, eleva as mãos aos céus, o povo delira. Ressuscita! Ressuscita! Confusão. Alguém pergunta quem está morto. Que está acontecendo? Passos rápidos nas escadas de aceso ao palanque…

— Nildo! Nildo! Que está acontecendo? Quem está morto?

— Meu pai, está sentindo alguma coisa?

— De novo, Nildo! Você precisa ir ao médico. Dorme o tempo todo. Pior não é nem dormir, é dormir e sonhar alto! Você sonha demais!

 

Encerro timidamente este escrito. Palavras já não são necessárias; foi a quinta morte. Desta vez, confesso, gostaria de conhecer o final da água miraculosa e dos poderes do Beato Vivaldo de Jesus. Acordaram-me no exato momento em que o morto, eu mesmo, seria ressuscitado. Sim, pois, depois de tanta demonstração de poder e de fé, Vivaldo de Jesus certamente ressuscitaria o homem que viera da Bahia para materializar seu poder sobre a vida. Com certeza, o Beato era Jesus. Até pelo nome…

 

[…]

 

Foi uma pequena amostra de O Homem que morreu cinco vezes.

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