sufocado de amor

despir-te

inebriar-me

admirar-te

e dizer: desejo-te.

Ah pudesse ainda

sublimado

extasiado

fitar-te cansada

e dizer-te: amada.

Tristeza

Haverá festa

haverá dança

haverá músico de fora,

e eu vejo a Maria Tiana

sentada num lado do prédio.

Está triste.

Tem dança

tem festa

tem bebida

tem músico de fora

mas ela é triste.

Coitadinha…

Tão bonitinha

e tão tristezinha.

A festa começou há pouco

agorinha mesmo.

Festa boa.

Não sei por que não lhe mexe os cabelos.

Nem se levanta.

Não se move

mas está tão bonitinha assim

triste

encostada na esquina.

Adeus, Maria Tiana

vou dormir.

Parece que também está cansada:

levanta-se

ergue os braços

caminha…

Mas que festa é essa?

Ah! dos namorados…

E o seu, Maria Tiana, abriu um oco no mundo e se socou.

07/06/73

Namoro

Carta de namorada

casa de namorada

bilhete de namorada

na morada…

Fiquei na porta da morada.

Eu em um lado

ela no outro

e a mãe atrás.

Cuspi.

Olhei

fiz cara feia

afastei-a

e a mãe de lado…

(a senhora não vai sair daí não?

namorada… )

Um abraço

e  a mãe do lado…

(Diabos!…)

Tantas namoradas…

Namoradas que me fazem chorar

namoradas que me fazem lembrar..

Namoradas…

muitas numa só…

— Depois eu dou o sim…

Ah namoradas…

— Meu filho, você tenha cuidado…

— Mas mãe, eu…

— Desse jeito termina casado.

Ah namoradas!…

Bilhete de namorada

carta de namorada

não de namorada

na morada

na sua própria morada

eu comecei a namorar.

17/06/73

Renovação

Você volta?

— Volto.

Um dia

um breve dia

quando sentires saudades de mim;

quando a lembrança

já não me falar dos teus cabelos cálidos

do teu beijo

dos teus seios

do teu sexo.

Quando tudo me estiver fugindo

uma noite

linda

sorrateiramente

sem compromisso

abrirei a porta do teu quarto

fitar-te-ei na cama

e amarei

para refazer uma lembrança.

13/11/73

Profanação

Mãe, por que tanto sinal?

— Não é sinal não, menino: é repique!

É Deus! É o pai do mundo!

É nossa senhora que dá a luz

é Deus que nasce

vive

vira criança

deita na cama de palha

sem fala

com frio

esmagado pelo hálito dos burrinhos

pelo mugido das vacas

pelas candeias de azeite,

chorando

gemendo

pedindo leite

e São José nervoso

preocupado em fazer leite!…

É a vaquinha que muge

que grita de alegria

mas não tem leite.

É a estrela

são os três reis.

um traz mica

ouro

outro sem carga

sem camelos

sem dromedários de duas nádegas

não traz nada.

— Pra que tanto sinal mãe?

— Não é sinal não, menino danado:

é Natal!

14/08/73

Viciado

Amanhã vou lá.

Amanhã volto.

Mesmo sem ter dinheiro pra voltar

eu volto.

Entro devagarinho no ônibus

no caminhão

me ajeito

e quando vir o cobrador

digo que não tenho dinheiro.

Se ele quiser dinheiro

digo que dou quando chegar a minha cidade.

Se quiser mulher

digo que dou quando chegar a minha cidade.

Se quiser cachaça

digo que dou quando chegar a minha cidade.

Se quiser luar

(digo que dou quando chegar a minha cidade)

oferecerei o luar da minha cidade

e com esse luar as serenatas

o calor

o frio

o calor quente da cachaça.

Se ele quiser alegria…

— Vem cá, amigo

prova aqui…

prove outra vez…

mais um pouquinho…

Pode tomar

aqui tem uma garrafa.

Amanhã vou lá.

Amanhã volto.

Mesmo sem ter dinheiro pra voltar

eu volto.

Não fico é mais aqui

onde não se tem cachaça

mulher nem luar…

22/11/73

Armas da Perdição

Minha cidade é um bar

dois bares, bares

um mercado

dois armazéns, uma estrada…

Minha terra é a terra da perdição

é terra de pecado e desgraça.

Se fores a minha terra

rezes antes de entrar

porque a morte te é selada.

A morte vem da cachaça

dos bares de cerveja quente e cara

dos albergues, do Cruzado

— zona de prostituição da cidade.

Verás

faceira, triste

passeando quando a tarde é finda

a Toinha do Capão de Cima.

E quererás (existe este termo? )

matar

suicidar-te

nos trajetos da estátua de carne.

Mas forasteiro, aquilo tudo é minha cidade

e minha cidade guarda suas coisas santas com armas mortíferas.

Tem a cachaça barata que logo mata

o sargento valente que logo mata

os armazéns

os políticos fingidos…

Todo isso é arma.

Tudo isso é a perdição da minha cidade.

13/11/73

Transplante

Você me entorpece.

Você de vermelho

calma, simples

dengosa

você me fascina.

Você me pega pela ponta do pé

e eleva-me ao mais alto dos céus.

Seu sorriso

seu mistério

seus cabelos bordados de ouro

Lembram-me a Tiana.

Você é linda como a Tiana

é  morta como a Tiana.

do outro mundo como a Tiana.

Você me mata como a Tiana.

Ah se as prostitutas da minha cidade

tivessem as pernas

a cor

o corpo que você tem…

Acordaria cedo

jantaria cedo

e iria para a rua do Cruzado.

Uma a uma amaria  a todas

apertaria todas

dormiria com todas.

11/1973

São João

São João vem aí…

São João bom

São João zoadento

São João quente que esquenta a gente.

São João das quadrilhas

das canjicas…

—  Traz mais milho!

São Joãozinho

tão bonitinho…

seu cordeirinho

tão branquinho…

E seu cabelo, Joãozinho

é tão lourinho…

Mais louro que o cabelo da Socorro da Ornelina.

São João das fogueiras

das apartações, dos padrinhos…

“São João dormiu

São João acordou

São João mandou dizer que você é meu compadre três vezes…”

Era o Joaquim e o Danton.

Brigavam o tempo todo

mas São João é bom

faz intrigados se acompadrarem.

Meu São João infantil…

Quando me lembro nem sei se sou homem ou menino.

São João faz isso.

As fogueirinhas

o cercado da Santa Clara

os galhos de jurema…

Pra trazer era o maior sacrifício…

— Zé, me ajuda aqui…

Terminava trazendo sozinho.

Zé era preguiçoso como o diabo

nem São João tirava a preguiça de Zé.

São João das quadrilhas…

Casa coruja com caboré

traz o dinheiro que o padre quer!…

Naquele tempo padre receber dinheiro era pecado…

07/06/73

EXPEDITO

Expedito macho!

foi bem feito!

Provou a macheza

destreza

violência

coragem

e (desculpe, Expedito)

a sua fragilidade…

Você viajou

passou dois dias

gostava dela

vivia com ela

comia com ela

dormia com ela

fez filho nela…

E quando voltou

Encontrou-a com outro.

E você

pegou a faca

correu

riscou o chão

lambeu

ouviram-se gritos

não se importou

correu dentro

e furou vinte vezes!

No fim, Expedito

você quem perdeu.

Você é moço

é novo

todos tiveram pena:

depois das vinte facadas

ajoelhou-se ao corpo

e chorou a morte da mulher amada.

Veio a polícia

corre aqui, corre acolá

o detetive particular

e nesse dia

a zona de prostituição da cidade

enlutada

ainda cedo

não atendeu a nenhum freguês…

13/11/73

COCEIRA

Coça, coça

quanto mais coça  gosta…

Coceirinha…

vai começando devagarinho…

em pouco…

— Olha a briga!…

Lá vêm os cabras do Capão de Cima

com suas facas afiadas!

— Sai do meio quem tem medo!…

Mãinha, mãinha

você está longe.

Minha mãezinha

que saudade de você…

E essa coceirinha me aporrinha de tal jeito…

— É besta, cabra pedrês!

Puxa sua peixeira!

Puxa que eu quero ver!

E veio o resto da turma do Capão de Cima…

Coceirinha gostosa…

nem me incomodo…

coço, coço, coço…

coceirinha gostosa…

Que me importa que tenha briga?

Briga se vê em todo lugar.

Só não estou acostumado, mãinha

a ficar tão longe assim…

Coceirinha gostosa, gostosa

tão gostosa que chego a esquecer…

25/07/73

Lembranças Noturnas

Carros

motores

calças sanforizadas ( já procurei demais essa palavra no dicionário e não encontrei )

caneta a riscar

— Ô preguiça danada…

É assim:

um dia de um jeito, outro de outro…

Há dias que não escrevo uma poesia

noutros… — Danou-se!

quero escrever um livro…

Carros

ronco de motores

mala rasgada

mala costurada

quarto mal iluminado

cigarro de lado (esse não pode faltar).

As vezes penso em voltar a minha cidade.

Quero ir

aparecem imprevistos

e não vou porque quero ser responsável…

Cigarros aos lábios…

fumaça gostosa

(só sendo mesmo!)

cigarro barato…

Um dia dei minhas poesias para alguém ler.

Sem pensar  em nada, claro:

onde já se viu besta pensar?

Entreguei-as.

Quero uma crítica

e escrita.

Não veio a crítica

nem tampouco escrita.

Talvez nem lesse minha poesia.

Mas hoje estou doido pra escrever.

Esqueci regras gramaticais.

Você sabe o que é parêntese?

pois saiba que o pus até nas cartas da namorada

e foram muitos.

Quero sorrir de tudo

ser melhor que tudo

escrevo entre parênteses (duas meias luas ao contrário: sinal gráfico) o que não quero dizer de frente.

Cheguei da rua

sentei

esperei o leite

esperei a mesa

não me veio nem o leite nem a mesa.

Limitou-se a um cafezinho quente.

Tomei-o.

Do mesmo jeito que tomaria o leite tomei o café.

Café nosso, café do Brasil.

Levantei-me

(só tinha eu à mesa)

rumei ao quarto

(sujo como nunca)

procurei o cigarro.

Bebida não

porque essa só em ocasiões especiais.

Acendi o cigarro

caneta à mão…

uma, duas, três…

(sei lá! ainda nem contei)

só sei dizer que saiu poesia como o diabo.

Poesia besta como eu.

Só não é mera análise

porque não sei analisar.

Só uma vez analisei…

— Boa noite…

e seu Zezinho respondeu:

— Boa…

Vi logo que ele estava com preguiça

e foi a primeira vez que analisei.

Não analiso as minhas poesias.

Escrevo.

Penso que ligo à rima

ao ritmo?

Rima vi muito nos folhetins de feira

e achava uma beleza.

Ritmo vi nas cantigas de cego:

sanfona de lado

pandeiro…

Agora escrevo poesia.

Está bem feita?

Nem eu próprio sei se escrevo poesia.

Posso ser besta.

Acho que sou besta.

No fundo o mundo está cheio de bestas

de linguarudos

de controvérsias.

Imagine que zombaram de mim … “pacificador fingido…”

só porque quis evitar intrigas.

Os futuros intrigados viraram-se contra mim.

Não corri.

Pensei e respondi-lhes.

Como são insípidos

deixaram-se levar por mim.

Carros

motores

calça sanforizada (pus o dicionário há pouco sobre a máquina…)

máquinas…

— Benção, Engrácia.

— Deus te abençoe, meu filho.

Leve essa melancia pra você.

E eu ia chupar a melancia.

Agora passam carros

eu fumo

(mais uma vez: cigarro barato)

penso na namorada

dou uma tragada.

Tiro uma fumaçada como dizem as velhas lá de casa

deito-me (deitar não porque já estou deitado, mas ponho a cabeça sobre o travesseiro…).

Os carros passam…

Sei lá de minha cidade!

Está perdida

sinto saudades

quero ir

surgem imprevistos e não vou

— Como ficou Remanso?

— Tá pra se acabar…

Mexo-me na cama

lembro…

minha mãe…

fumo o cigarro (já está pra terminar)

O sono me quer pegar

sinto-me cansado…

(carros, ronco de motores…)

— Benção, Papai do céu?…

Apago a luz e vou dormir…

17/06/73

MORTE DA PROSTITUTA

Mulher, você está mal…

— Eu, doutor?

Eu? logo agora?

Não doutor, não me deixe morrer…

Mas morreu

e vestiram-na de azul

de luz

de esplendor.

Apertaram-na entre tábuas cobertas de rosas

cor de rosa…

A Nininha morreu.

Sua mortalha

seu chambre de dormir

é azul

e o caixão cor de rosa

as cores da simplicidade

da virgindade.

Chorem virgens

chorem anjos

chorem camas

chorem irmãs!…

A Nininha prostituta morreu…

Vontade

Pernas, caminho

pedras, caminhada

escuro, cipreste

várzeas

lama, água

perto, maior vontade…

a porta trancada

um toque

dois toques

um murro, um soco

a porta aberta

uma silhueta enorme

o abraço, o beijo

o caminho

a sala, a vitrola

a pilastra

as cadeiras

o sofá

a porta

a chave, o quarto

a porta trancada por dentro

a cama

a ânsia

o censo

o aumento

o barulho

o rolar de corpos

dois suores num só

suspiros

ais, gemidos

gemidos da cama

do homem

do colchão…

a porta trancada

o telhado

o escuro

o quarto encerrado

— ai… ai… ai….

ais

os gostos, os gozos

a fadiga

a porta aberta

o ar

o ar puro

o término

o talco, o cheiro

a água

os botões, o cinturão

botões de lado,

botões atrás… — Vestidos!

Era o último filho…

Os parentes e amigos de Nininha Silva

morta por ocasião de um parto mal sucedido

convidam o povo em geral

para o seu sepultamento…

05/03/73

Caldo de Cachaça

Doutor, o que é que eu tomo?

— Caldo de cachaça misturado com cana.

— É bom, doutor?

— Você é homem? Pois foi feito pra homem:

tome, corra, grite, exalte-se, xingue, brigue!…

Vamos! vamos safado!

Tome o caldo de cachaça misturado com cana!

É bom pra quem está como você!…

Tome torrado, masque

fume por cima um cigarro

caia n’água, nade (se não morrer afogado…)

coma feijão, macarrão

coma mamão, coma João!

Seja você mesmo, embriague-se!

Safado, cachorro, tarado

vamos tomar o caldo de cachaça

a bebida real, da realidade

da realeza de ontem que comia feijão e dizia que não comia feijão.

Mas o que é que eu tomo, doutor?

— Já disse: caldo de cachaça misturado com cana

caldo de cachaça misturado com choro…

Xingue, brigue

ofenda a namorada

toque fogo na casa

saia nu de casa

nu! nu!

entendeu? — Nu!

Faça todo mundo correr

as mulheres se horrorizarem

cobrir com a luva a cara.

Faça os homens se revoltarem!

Agite-se! Queira forçar, subestimar!…

Corra! ali vem eles!

Cuidado! vão lhe pegar

botar na cadeia

vão levar ao lugar da sujeira

onde só tem rato preto

sem sanitário!…

Onde só tem o cabo

a vassoura

sem garfo nem faca

sem água encanada

e você será o burro de carga.

Corra! Cuidado pra não cair!

Cuidado com o nariz!

Cuidado!…

Coitadinho…

já o pegaram…

e batem tanto…

— Mas doutor, o que é que eu tomo?

— Caldo de cachaça misturado com cana.

— E depois?

— Depois vá pra cadeia

coma peia, coma peta…

fique de joelhos… (cuidado com o peito!)

deite-se… deite-se! (os soldados andam sem dinheiro)

aguente-se, rebele-se

vá dar parte no comando do quartel

depois saía com as ancas doendo

tremendo

aos pedaços

mas saía

antes que seja tarde.

Depois, olhe lá, não esqueça,

lembre-se que eu nunca fui doutor…

— Mas doutor, o que é que eu tomo?

— Caldo de cachaça misturado com cana.

— Tudo isso?

— Então tome só a cana…

17/03/73

SEMANA SANTA

Ah que saudade da minha semana santa de criança!…

A Mintora pagando promessa

fazendo sacrifício não tomando café.

As ruas enfeitadas

minha mãe fazendo empadas…

— Não compre carne..

Ai que saudade…

Os soldados sem farda

os presos em suas casas

o comércio fechado

eu jogando farinha para as piabas

o delegado tomando cachaça…

— Mentira: nesses dias só tomo vinho.

Mas ai que saudade…

O Raulzinho ajudando a missa

um velho pedia esmola e eu lhe dava uma talhada de abóbora.

O Cenço passando a noite sem dormir…

Ai que saudades…

A radiola de seu Pedro dizendo bem alto a paixão de Deus

(crucifica-o! crucifica-o!)

e eu me tremia dos pés a cabeça.

Ai que saudades…

A fazenda, o catecismo…

— Hoje é dia de eucaristia…

— Amanhã não tem missa.

Ai que saudades…

Bolinhos, melancias…

— Eu vou, eu vou!

— Menino não pode ir.

— E o Raulzinho?

— Besta, você vai ficar com medo

os penitentes vêm todos de preto…

Ai que saudades…

Matraca, rádio, a Ná Rosa…

— Eu vou! eu vou!

— Não vai não. Amanhã tem procissão.

E só não vai tomar uma surra

porque está na Semana Santa.

Ai que saudades da minha Semana Santa de criança…

10/08/73


Senhor Presidente da Academia Taguatinguense de Letras, Escritor J. Simões; Senhores acadêmicos que compõem esta mesa; escritores e confrades; acadêmico Ronaldo Mousinho, pela mão do qual cheguei a esta Academia; senhores professores e diretores de colégios; autoridades presentes. Querida esposa, Célia; querido filho, Ciro; Rafael, sobrinho com quem divido o pão. Querido irmão, Inocêncio Regis, esposa e filhos, que representam, neste evento de rara felicidade, minha família ausente, sobretudo nossa idolatrada mãe, que ainda mora em Remanso, nos confins da Bahia. Amigos conterrâneos da Bahia, que aqui labutam pela vida, e agora testemunham uma página importante da minha vida; cumprimento-os na pessoa do doutor Manuel Bonfim Ribeiro. Colegas e amigos da Subsecretaria da Receita do Distrito Federal, minha acolhedora casa desde 2001, que aqui comparecem para ratificar uma amizade. Não menos queridos, vizinhos da QNL, nesta cidade, lugar que escolhi para deitar meu domicílio. Caríssimos novos amigos, que tive a felicidade de angariar aqui, no Distrito Federal, especialmente em Taguatinga, onde, conscientemente, escolhi viver meu dia a dia — ato do qual não me arrependo. Por fim, senhoras e senhores, queridos jovens estudantes.

É praxe em eventos e solenidades desta natureza o empossando dirigir palavras para enaltecer as qualidades do Patrono da Cadeira que está a assumir. Peço permissão para quebrar um pouco o protocolo e iniciar esta manifestação mostrando aos senhores o significado desta data e deste evento para a minha pessoa.

Quando me vejo criança, menino, em Remanso, lá no final da Bahia, depois de Pernambuco e ao lado do Piauí, sonhando, estudando, testemunhando as dificuldades que meu pai enfrentava para manutenção digna da nossa família.

A cidade onde nasci, hoje, só existe no fundo da minha alma, no sentido mesmo das palavras. Isto porque Remanso foi engolida, inundada pelas águas da grande barragem de Sobradinho. Hoje, só existe na saudade e na memória de todos que lá nascemos.

Vejo-me aos dezesseis anos, concluindo o curso ginasial, momento da grande inflexão, da grande passagem da minha vida. Lá, na minha pequena cidade, só dispunha do curso normal-pedagógico e eu queria ir um pouco além do curso pedagógico. Queria galgar a Universidade e sonhava até em ser um Advogado, Médico, Engenheiro; o que não seria possível lá, na minha cidade.

Fazendo das tripas coração, meu pai, homem pobre, com ajuda da tia Ana e Sebastião Alves, conseguiu me manter, a duras penas, em uma cidade maior, Petrolina, no Estado de Pernambuco, onde fui cursar o antigo curso Científico. Foi o primeiro passo importante da minha vida. Arribei da minha cidade. E nunca mais voltei para morar. Voltei, e volto ainda, como visitante, para matar saudades.

Após, imaginem os senhores, fui morar em um pensionato, ainda em Petrolina, onde obtive a complacência da senhora Zita, que me fez um abatimento de cinquenta por cento. Vejam os senhores, fui morar em uma praça, cujo nome popular era Praça da Biblioteca. Exatamente naquela praça estava instalada a Biblioteca Municipal da cidade!

E ali, em contato com os livros e com os maiores autores infantis e juvenis de todo o mundo, abriu-se-me um universo sem tamanho!

A leitura transporta-nos aonde queremos ir, através da seleção dos livros que lemos.  Devorei tudo que podia em termos de leitura: literatura, história, geografia… Eu era um ávido leitor cotidiano, todos os dias pela manhã e à tarde, um universo sem tamanho à minha disposição. A leitura foi o instrumento que pavimentou minha estrada, referencial e passaporte para a vida, enfim, que me transformou em Escritor.

Estou muito emocionado; mas, não me sinto plenamente realizado, pois não me vejo no porto final. Nunca haverá o último porto. Qualquer porto que nós cheguemos é, só provisoriamente, o porto final. Dali, partiremos para outros voos, outras viagens. E minha viagem continuará através da produção literária.

Senhores acadêmicos, colegas, amigos, utilizei estas palavras e fatos para fazer referência à figura do meu querido pai, maior exemplo que tive na vida.  Nasceu do nada, de família do interior do interior da Bahia, era um homem de bem.  Com muita luta conseguiu um lugar ao sol… Já não está aqui. Partiu jovem, aos 58 anos de idade!

A meu pai, que tanto se sacrificou para atender uma reivindicação daquele menino renitente, ofereço este momento. À sua memória, meu pai! Onde você estiver, veja que a semente que ajudou a germinar e fertilizar eclodiu e gerou frutos. O fruto não é esta Cadeira que ora assumo na ATL, mas, a vida digna que me legou, pautada na responsabilidade e respeito à dignidade de todos que partilham nossa vida. Obrigado, meu pai, por tudo… (pausa) Obrigado, aos senhores, por ouvir este desabafo. É momento de muita emoção…

Segunda parte do discurso de posse. Panegírico a Eudoro de Souza:

Eudoro de Souza, patrono da cadeira 27 da Academia Taguatinguense de Letras, que ora assumo, nasceu em Lisboa, Portugal, em 27 de dezembro de 1911. Cursou a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Especializou-se em Filologia Clássica e História Antiga, na Universidade de Heidelberger, na Alemanha. Desenvolveu atividades docentes e de pesquisas na Europa, destacando-se seus trabalhos realizados em Portugal, França e Alemanha.

Em Portugal, iniciou a vida de escritor, que o transformaria num dos maiores expoentes da filosofia universal. Traduziu, direto do grego, a Poética de Aristóteles, publicado em Portugal, e que seria reeditado no Brasil, em 1966.             Em 1953 chega a São Paulo. Integra-se ao chamado “Grupo de São Paulo” — formado por intelectuais que vão se unir em torno da revista Diálogo e do Instituto Brasileiro de Filosofia. Exerce, ainda, atividades docentes na Universidade de São Paulo, na Pontifícia Universidade Católica, no Instituto Brasileiro de Filosofia e na Faculdade de Filosofia de Campinas.

Em 1955, muda-se para Santa Catarina, onde é um dos fundadores da Faculdade de Filosofia daquele Estado. Sete anos depois, por indicação de Agostinho da Silva, Darcy Ribeiro consegue trazer o mestre Eudoro de Souza para Brasília. Ou seja, em 1962, vem para a nova capital Federal, tornando-se um dos fundadores da Universidade de Brasília. Aqui, lecionou Língua e Literatura Clássica, História Antiga, Filosofia Antiga e Arqueologia Clássica, em cursos de graduação e pós-graduação. Sua especialidade em cultura clássica o transformou no estudioso helenista vivo mais citado do mundo. Contudo, mais do isso, sua formação universalista permitiu-lhe percorrer as vicissitudes do ser, desde o pensamento pré-socrático até as indagações da atualidade.

Em 1965 fundou  o Centro de Estudos Clássicos da UNB.            Publicou Dionísio em Creta e outros ensaios, em 1973.       Traduziu direto do grego As Bacantes de Eurípides, com introdução e comentários. Publicou em 1975 Horizontes e Complementaridade: Ensaios sobre a Relação entre Mito e Metafísica, nos Primeiros Filósofos Gregos. Um dos seus trabalhos mais conhecidos. Em 1978, publicou o livro Filosofia Grega. Em 1980, trouxe ao mundo acadêmico o livro Mitologia.

Já de algum tempo com a saúde debilitada, faleceu em setembro de 1987, aqui, em Brasília, deixando seu grande legado cultural ao Brasil.

Mas, como disse o próprio Eudoro de Souza: “Morre primeiro o homem humano, para renascer no desumano ou transumano e, depois, a morte deste desumano, para renascer no divino, no mito e na tradição, que é a sua subjetividade irredutível”. Ou seja, vai-se o homem, o elemento material; mas, permanece a sua subjetividade, o seu legado intelectual, a sua produção artística, filosófica e literária.

O próprio Eudoro de Souza informou-nos que o mito é a narrativa de um tempo, um fato ancestral exemplar ou paradigmático, que precisa ser lembrado e atualizado pelo rito. Os ritos são os lugares e tempos de reificação, de recriação de mitos. Exatamente o que realizamos neste momento. Esta solenidade é um rito que nos remete a um filósofo grandioso, para que seu exemplo de sabedoria e clarividência permaneça e frutifique entre nós. Frutos, refiro-me a algo que nascerá, crescerá e amadurecerá depois em novas gerações, através dos jovens sucessores da nossa sociedade. E estes reproduzirão, amanhã, parte do que agora realizamos para manutenção de tradições e realizações culturais daqueles a quem sucedemos. Ou seja, senhores e senhoras, a vida é um vai-vem ininterrupto de fatos, de experiências e de coisas boas e ruins. É o passar inelutável do tempo, deixando-nos com a sensação de vazio na mente ao descobrirmos que poderíamos ter feito, mas não o fizemos.

Ai de quem pensar que teremos nova chance para realizar o que não realizamos por medo, indecisão ou apego a coisas meramente materiais e do momento. A vida é um caminhar ininterrupto, cujo objetivo final é a partida eterna, o além. O homem quer viver mais; a criança, crescer, tornar-se adulto. Vivem, contabilizam com alegria o passar do tempo, festejam aniversários. Paradoxalmente, brindam a própria destruição — desculpem-me o mórbido pessimismo.

Então, senhoras e senhores, este é o perfil do escritor que nos serve de patrono e exemplo. O merecedor maior desta cadeira 27 da Academia Taguatinguense de Letras, porque a recebeu por merecimento mesmo depois da sua morte. Assumo, com a responsabilidade de honrá-lo no exercício do mister de Acadêmico. E um dia, também, com a minha partida (pois todos iremos um dia), será assumida, quem sabe, por algum desses jovens aqui presentes. Que reviverá feitos culturais dos ancestrais, como estímulo para prosseguir no ônus de dedicar-se à atividade cultural, num país em que os olhares públicos são pragmáticos e só se voltam para a concretude dos lucros e da geração de saldo positivo no balanço de pagamentos do país. Mas haverá, sempre, o reduto dos obstinados portadores da chama da leitura, da cultura e das artes, como meio de levar à compreensão da sociedade sua condição de vilipendiada pelas classes políticas descompromissadas, cujo objetivo maior tem sido se locupletarem das riquezas do próprio Estado; riquezas que construímos com trabalho e muito sofrimento. Se não, como nos referimos a um ex-ministro do Estado Federal, que, fora do comando do executivo e cassado pelo Legislativo, continua desfilando pelos gabinetes públicos ou a bordo de jatinhos particulares, oferecendo mundo afora as benesses do Brasil, como se nada tivesse ocorrido e permanecesse o mesmo Ministro de Estado?

Mas, senhoras e senhores, voltemos ao nosso patrono.

Eudoro de Souza foi muito mais que essa biografia lida no início da exposição, embora rica e vasta por si mesma. Conhecendo, de perto e ao vivo, o berço do pensamento clássico da Grécia antiga, tornou-se o maior helenista, ou seja, o maior conhecedor da cultura clássica grega em todo o mundo!

Entretanto, no que pese a dedicação aos estudos de uma sociedade do passado, nosso patrono sempre teve compreensão precisa do seu tempo. Sua interpretação da realidade sócio-cultural, empreendida na segunda metade do século passado, permanece nítida, e com validade estendida ao nosso século 21. Assim, dizia o patrono desta cadeira 27:

“Vivemos uma situação kafkiana, na qual somos possuídos pelos objetos que julgamos possuir. É o objeto que possui o sujeito e não o contrário!”. (Vejam, senhores, o que nos dizia Eudoro de Souza). “Estamos possessos das coisas que possuímos. As pessoas querem cada vez mais ter coisas. E cada vez, as coisas mais os têm. Nós somos muito mais possuídos que possessores ou possuidores das coisas que possuímos. Basta que ponham à venda um novo produto de consumo para que este se torne necessário, e nós fiquemos presos a ele. É o objeto que possui o sujeito, e não o contrário. Assim, nós estamos possessos das coisas que possuímos”.

É uma afirmação atualíssima, capaz de demonstrar a submissão do homem às coisas materiais, momento vivido pela sociedade, onde o ter suplanta o ser. Infelizmente e com tristeza, afirmo, mas não defendo, o homem vale pelo que tem e não pelo que é. Esta é a ótica predominante. Mas, se aceitarmos que o ter suplanta o ser a sociedade estará irremediavelmente condenada à coisificação, ao embrutecimento, à luta incessante pela busca de bens e objetos suntuosos. Simplesmente, porque o paradigma maior será o ter! A consequência danosa e irreversível (que inclusive estamos a ver) será o sepultamento da ética e das boas práticas morais. Será a mistura do privado com o público, com boa parte dos administradores públicos achando-se no direito, e até no dever, de apossar-se das riquezas da sociedade, acobertados na impunidade que nos acompanha desde tempos imemoriais.

Senhoras e senhores, prezados acadêmicos, as sábias palavras de Eudoro de Souza permanecem no nosso cotidiano.  Extrapolam a realidade da época e permanecem atuais. Ele próprio nos dizia, em outra passagem do seu legado filosófico, que não se corrigia um erro com outro erro; mas, com reflexão, porque só tendo conhecimento da realidade é que poderíamos extirpar o que existe de negativo. Só podemos negar, conhecendo a realidade.

Este é o desafio que se apresenta para a sociedade brasileira. O desafio de buscar a educação como meio de libertação. A educação como instrumento da realidade e formação para a vida. Educação, como elemento de libertação das amarras de um sistema econômico e social ultrajante, onde poucos se assoberbam da maior parte das riquezas. O Brasil, nação rica, admirada como depositária das maiores riquezas naturais da humanidade, tem um povo miserável, faminto; e forte ao mesmo tempo, por conseguir sobreviver em situações inóspitas, auferindo renda inconcebível para manutenção da própria vida humana.

Senhoras e senhores, presenciamos um momento ímpar na América Latina, e no Brasil, com o ressurgimento do populismo. Que escraviza politicamente as classes menos esclarecidas em troca de uma sensação, puramente psicológica, de que tudo está bem e melhorará ainda, com fé em Deus! Enquanto isso, servem, inocente e ingenuamente, a projetos individualistas e inescrupulosos dos controladores do poder.

Um dia, perguntaram a Eudoro de Souza para que servia a filosofia. E Ele respondeu: “Não serve para nada. Ela é que é servida! A filosofia não é qualquer coisa que se transmita do professor ao aluno, como os demais conhecimentos. Um professor de filosofia, continuou Eudoro, não ensina ao aluno; faz com que ele aprenda. E alertava: É preciso abrir os olhos para a verdadeira cultura e ela se expressa na palavra”.

Em relação à realidade humana, Eudoro de Souza afirmava que os tempos atuais eram diabólicos. E explicou: “Chamo diabólico dentro do significado da palavra em grego, que quer dizer separar. O que separa é o diabólico, o que une é o simbólico. E nós estamos vivendo uma época diabólica, onde tudo está separado de tudo. Ninguém está unido a nada. É uma época de atomização. Cada um vive cheio de si, o que significa um oco completo”. E continuou o mestre: “No cotidiano se vê uma vontade muito maior de separar, de dividir que de unir. A maior parte das pessoas não sabe o que diz ou diz o que não sabe. Conhecer muitas coisas não significa saber”. (Pausa). Deixo estas palavras para reflexão dos senhores.

Caros confrades, senhoras e senhores, uma questão sempre abordada pelos filósofos é acerca do conhecimento, em si, e da extensão deste conhecimento para além do seu detentor. Para nosso patrono, educar é trazer para fora. E nas suas palavras, disse-nos o seguinte: “Nós vemos tudo como construção e não como criação. Quando uma pessoa julga estar dizendo algo novo não faz mais que um novo arranjo dos produtos da destruição de uma coisa que já existia. Para mim, a única solução para a Universidade em geral, é que ela não dê o diploma; porque os alunos querem é o diploma; tendo o diploma eles estarão satisfeitos. Quando houver universidade que não tenha diplomas, aí eu acreditarei que seja uma universidade séria. Por que a esta altura, quem for às aulas é por interesse em ser e não em ter”.

Apresentamos uma síntese do pensamento e da vida de Eudoro de Souza, um dos filósofos mais cultuados e versados na cultura grega; mas, com incursões no estudo geral da condição humana, como sujeito do seu destino, numa sociedade pragmática e movida pelo ter, pelo isolamento dos indivíduos que a compõem, e que não interpreta a educação como uma forma de libertação, mas, ao contrário, como forma de controle do homem em prol de interesses dos detentores do poder político. À primeira vista, parece-nos referir-se diretamente ao Brasil, mas esta é a grande capacidade da filosofia: ser universal e total em suas elucubrações.

Encerro estas palavras; ínfimas, considerando o teor da importante obra do patrono da cadeira 27 desta Academia de Letras, que ora assumo. Que o legado do professor Eudoro de Souza seja o farol na minha escuridão intelectual. Que esta assunção como acadêmico se concretize como uma forma de contribuir com a sociedade do Distrito Federal e do Brasil.

Peço permissão para externar duas passagens dos livros, Memórias de um Coroinha, e do próximo, Era uma vez um Comunista,  ambos de nossa autoria:

Nada na vida é o porto final. Ao ser alcançado, passará a se constituir em porto intermediário, passagem para outro porto que será, transitoriamente, o final. A insatisfação natural do homem só termina com a morte. Lute pelos seus sonhos!

– Na minha pobre percepção, Felicidade é o viver. É beber água, a substância mais simples do universo. Não tem cheiro, cor nem sabor, mas imprescindível ao ser vivo. A felicidade pode vir das coisas simples. Pode estar aos olhos e diante das mãos, mas nem sempre percebemos. Quantos já confessaram que eram felizes e não sabiam?

Neste momento, caros acadêmicos, querida esposa e filho, prezados amigos, senhores e senhores, neste momento, para mim, Felicidade é a posse na cadeira 27 da Academia Taguatinguense de Letras!

Muito obrigado a todos.

 

         Saudação do escritor Ronaldo Mousinho a Astrogildo Miag:

Senhor Presidente da ATL Escritor J. Simões , distinto público. Tive a honrosa incumbência de recepcionar o novel-acadêmico Astrogildo Miag neste ato de investidura, o que farei de bom grado. A Constituição Federal determina em seu título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Cap. I, Art. 5º, incisos IV – é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato, e, IX – é livre a expressão e atividade intelectual, artística, cientifica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Caros confrades e confreiras, prezado público: O que é ser um intelectual, um acadêmico? Numa singela concepção, é estar em sintonia com a realidade sócio-político-cultural do seu tempo, com ela interagindo criticamente e buscando o crescimento humano, pessoal e coletivo. A cultura, que se iguala ao saber, é, segundo o Pe. espanhol Felipe Afonso Barcina ; “freqüentemente apontada como a mais elevada aspiração humana…única fonte de todo o bem e a raiz imortal de toda perfeição e felicidade”. É por meio do saber, sem dúvida, que o homem se identifica como ser cognitivo em relação aos demais viventes. Contudo, essa hierarquia não subsistirá se o manancial de conhecimento não for exercitado com ternura humanista e fraterna, sob pena de a natureza humana embrutecer-se e perder o elã divinal.

Onde podemos encontrar nossa natureza humana? Na filosofia, nas ciências e na arte, especialmente na arte poética, que são, para Tasso da Silveira “perfeitas antropofanias, desdobrando no tempo e no espaço todas as secretas dimensões interiores… por isto mesmo, a obra de arte diz muito mais que quis dizer o artista, é para ele revelação perpetuada nas formas de beleza o mistério último”. O homem é um ser filosófico por excelência, pois toda a sua vida está no aqui e agora, numa sublime perspectiva, disse Eudoro de Sousa, patrono do neo-acadêmico.

Vivemos um tempo de efervescentes descobertas, avanços em todos os setores do fazer humano e na revelação de ministérios. Tabus são questionados ou quebrados, dogmas são revistos, como, por exemplo, a recente publicação do achado científico-filológico, denominado o Evangelho de Judas; a cosmogênese e a antropogênese estão se desnudando, expondo surpresas e angústias milenares.

Diante de tudo isto, acadêmicos e intelectuais, não podemos ser apenas expectadores descomprometidos com nosso contexto histórico-cultural, mas partícipes ativos desse momento extraordinário. Requer-se ousadia e contínua inquietude. Não podemos, caros acadêmicos, nos alhearmos diante desta realidade instigadora, reduzindo nosso fazer literário a puro lirismo e mero sentimentalismo, ou ainda a manifestações personalistas e mornas, para não desagradar ou ferir brios.

O cidadão Astrogildo Miag:

Conheci Astrogildo Miag, epíteto literário de Astrogildo Regis Barbosa, em 2002, na grande Feira do Livro de Brasília. Naquele primeiro contato, já pude antever as virtudes do cidadão e intelectual no semblante sereno, mas, firme e confiante, e, com o desenrolar da amizade que as letras nos têm oportunizado, só tenho constatado o homem cooperativo, discreto e leal e de dignidade incomum que é Astrogildo Miag.

Natural da pequena e bucólica Remanso, na Bahia, Astrogildo Miag nasceu em novembro de 1955, filho de Raul Barbosa  de Adnólia Regis Barbosa , in memorian. Ele, ex-cabeleireiro e comerciante, e ela, das prendas do lar. Família humilde, desprovida de posses materiais, mas rica de honestidade e muita determinação para vencer os desafios que a dura vida lhes pôs à prova, fibra essa que souberam transmitir ao filho ora apresentado.

O jovem Astrogildo enfrentou muito cedo os desafios peculiares que a existência põe aos nordestinos. Foi alfabetizado e cursou o antigo Ciclo Ginasial em sua cidade natal, com destacada atuação e surpreendente disciplina em busca do conhecimento. Desejoso de prosseguir os estudos que a sua cidade não oferecia, Astrogildo arribou para Petrolina-PE, onde viveu na casa da tia Ana e do seu esposo Sebastião Alves, que muito bem o acolheram. Ali, iniciou o antigo Científico, e, dois anos após, sempre instigado pela determinação de crescer e vencer, segue para Salvador, onde concluiu o 2º grau. Submete-se ao vestibular para Ciências Econômicas, é aprovado e gradua-se em 1979 pela Universidade Federal da Bahia.

Por dez anos, como funcionário da antiga EMATER, prestou assistência ao produtor rural e suas famílias no sertão baiano. Àquela altura, o jovem cidadão Astrogildo Miag, com pouco mais de vinte anos, forjava sua vida nos duros embates com realidades muitas vezes miseráveis, o que o instrumentalizou para enfrentar os sucessivos desafios e galgar rápida ascensão profissional: Gerente Estadual do Programa de Desenvolvimento Rural Integrado ; Coordenador do Núcleo de Programação e Orçamento ; Assessor da presidência da EMATER e Assessor Técnico da Secretaria de Estado da Agricultura da Bahia, no governo Waldir Pires.

Com a mudança de governo, Astrogildo Miag retorna à empresa de origem, e, em 1990, decepcionado com a concepção retrógrada do serviço público, demitiu-se para atuar na iniciativa privada como produtor rural e comerciante. Frustrado em tal experiência, nove anos depois inicia o curso de Direito, ainda na Bahia. Em 2000, concorre ao concurso público na área fiscal-tributária, e hoje é Auditor Fiscal da Receita de Brasília. É casado com Célia Maria Ferreira Barbosa , com quem teve dois filhos: Ciro Ferreira Barbosa e Larissa Ferreira Barbosa , alunos do 3º grau, aqui presentes.

O Intelectual e Escritor Astrogildo Miag:

Astrogildo Miag assume neste momento a cadeira nº 27, cujo patrono é o luso-brasileiro Eudoro de Sousa, que chegou ao Brasil em 1953, fundou, com Darci Ribeiro, a convite deste, a Universidade Federal de Brasília, onde lecionou até 1986, quando faleceu. É tido como dos mais iluminados intelectuais pesquisador da cultura helenista no Brasil. Foi discípulo de Martin Heideger, filósofo metafísico que se debruçou sobre o sentido e a verdade do Ser. O empossando já é Membro Correspondente desta agremiação que hoje o recebe como Acadêmico titular, e cuja obra o credencia plenamente ao pleito.

Caro empossando, você ingressa nesse sodalício para servi-lo com sua inteligência, e consciente de que a luta pela cultura não deve ser jamais um devaneio elitista, mas uma ação de salvaguarda da dignificação da vida, como muito apropriadamente disse o confrade Guido Mondim, em solenidade como esta no HIGDF.

O intelectual e escritor Astrogildo Miag revelou-se ainda em sua juventude, quando cursando o 2º Grau em Petrolina-PE, sobressaía-se nos certames literários, e foi naquela oportunidade que o jovem estudante despontou como poeta. Foi como se naqueles primeiros passos já vislumbrasse a conquista da cadeira acadêmica que hora ocupa. Contudo, foi aqui em Brasília que Astrogildo Miag formalmente estreou na literatura. Ouçamos agora a leitura de dois poemas do poeta adolescente, do seu livro ainda inédito Nem só de pão vive o homem, pela aluna de Letras da Universidade Católica e estagiária da A.T.L Ester Chaves e pelo acadêmico e professor José Teixeira Pacheco…

 

Poesia

De Astrogildo Miag, em 1972

A poesia me pegou numa manhã triste

quando eu ainda não tinha nem tomado café.

Pediu-me e levantei-me.

A poesia pegou do lápis

do papel amarelo de jornal

pegou do povo

da rua

da sua história

e fez-se imagem.

Aí virei poeta.

Solidão

Por Astrogildo Miag, em 1973

A casa está vazia

todos se foram a divertir.

A casa está vazia

e eu cada vez mais triste.

Deitado

ouço a respiração

o compasso tênue

de um coração doente.

A casa está vazia

ouço apenas um silêncio enternecedor

que não me deixa ouvir nada.

A casa está vazia e sou triste.

É como se tudo me levassem

e me deixassem também vazio.

Três fatos marcaram a vida do escritor Miag, incentivando-lhe o agudo sentimento de rememória e o forte engajamento de sua obra: a origem pobre de um nordestino que venceu, a submersão de sua cidade natal,  Remanso, nas águas do Rio São Francisco, em consequência da construção da Hidrelétrica de Sobradinho, e a injusta prisão de seu pai durante a ditadura militar .

Tendo em vista nossa forte identidade existencial, seja em relação ao desaparecimento de nossas cidades originais por conta da construção de hidroelétrica, seja na dura caminhada em busca de nova identidade, permita-me, caro Miag, compartilhar com você, por meio de duas estrofes poéticas do poema Ode a Guadalupe, de minha autoria, o sentimento de perda que nos foi comum.

 

[…] Mas o progresso compulsório preludia,

A pretexto de construir uma hidrelétrica,

Devagarinho, inexorável te espreita,

Violentando tua vida ribeirinha

Como outra hecatombe diluviana,

Arrastando casas, templos, campos-santos,

Alagando sítios, fazendas, tudo enfim.

[…]

Adeus! Praças, largo, catedral,

Becos, ruas, avenidas,

Rio Parnaíba, Riacho da Pinguela,

Recantos de deleites.

Adeus! Fazendas, sítios, roçados.

Caminhos, veredas, picadas,

Quintais, jardins, mangais,

Últimas imagens guardadas

Na mente, alma e olhos pranteados.

                                                                                        A obra do escritor Astrogildo Miag (até 2006)

É romancista, contista e poeta. Sua ficção é memorialista e costumeira, enfocada no real e no fantástico. A poesia do empossando é engajada, telúrica e lírico-amorosa. O painel de uma época é revivido com extraordinária fidelidade em sua obra ficcional, expondo com inteligência aguda e realismo surpreendente o cotidiano do Brasil.

Miag é escritor que circunscreve sua obra no telurismo de sua urbe natal – Remanso e adjacências – e frequentemente projeta seu conteúdo em análise psicológica de seus personagens, aliada à comicidade e ironia, que muito lembra a Machado de Assis.

Outra particularidade surpreendente do ficcionista é a de criar tantos personagens cujos perfis são autênticas matrizes humanas, com toda a força dramática e vida própria que a trama exige. A mensagem social presente em toda sua obra também foi trasladada do cotidiano real para o ficcional. Avesso à erudição árida, prima pela clareza de estilo e vocabulário acessível ao leitor.

A estreia do escritor Astrogildo Miag deu-se em 2003, com o romance A Santa do Pau Oco, pela Guará Editora. É obra focada na realidade aguda do Brasil interior, expondo o cenário deplorável das administrações municipais clientelistas e corruptas. Tem por matéria-prima a terra, o povo e os costumes, onde a trama se desenvolve gostosamente célere, estimulada por intrigas em torno da tríade o padre, o delegado e o prefeito, capciosamente caricaturados. Tradições e lendas desenrolam-se em estilo pitoresco e anedotário, na pena criativa deste remansense que pereniza em sua obra a cultura de sua cidade e de seu Estado.

Em O Purgatório de Eduardo, romance, publicado em 2003, também pela Guará Editora, o autor incursiona pelo real fantástico, cujo palco é o purgatório, onde as almas hibernam em estágio purificador evolutivo. A “comédia humana” nordestina é exposta com pleno vigor, muita lucidez e humor, por quem a vivenciou e dela foi testemunha ocular. É resultado de relatos históricos emocionantes e inusitados de vida e morte cantadas nas calçadas das cidades do interior baiano.

Memórias de um Coroinha, romance, 2005, chancelado pelo FAC é obra memorialista de vivências marcantes da adolescência do autor, repercutindo vivamente em seu subconsciente adulto. O tempo da narrativa se volta a alguns meses que antecedem à inundação de quatro cidades baianas, incluída Remanso, por conta da represa da Hidroelétrica de Sobradinho. E o autor, mais uma vez, e de forma mais emotiva, alinhava o seu enredo em torno dos episódios: desaparecimento da Santa Padroeira de Remanso, por ocasião dos festejos e da despedida da cidade; desapropriação das terras alagadas; a pomposa e particular festa dos políticos; a doida Januária que se suicida no Rio São Francisco, doando sua vida pelo reaparecimento da imagem da padroeira; a inundação da cidade; o penoso processo de mudança da população; a vida dos personagens 30 anos depois; o reencontro do autor com dona Carlotinha, que não o reconhece; depressão do autor e o epílogo do romance ante a impossibilidade de reviver o tempo.

Memórias de um Coroinha é um contundente painel costumeiro, resgatado quatro décadas após, pela memória prodigiosa do escritor Astrogildo Miag, em estilo agradabilíssimo. Está na orelha do livro uma reflexão filosófico-existencial do autor sobre a Felicidade: A felicidade é beber água, a substância mais simples do universo. Não tem cheiro, cor, nem sabor, mas é imprescindível ao ser vivo. A felicidade pode vir das coisas simples. Pode estar aos olhos e diante das mãos, mas nem sempre percebemos e paradoxalmente, por vezes, brindamos a própria destruição.

Tem inéditas as obras: Nem só de pão vive o homem , poesia, Era uma vez um Comunista, romance, Felizes os convidados, contos, A revolução em minha casa, romance, e O Legado da loucura, romance. E asseguro às senhoras e aos senhores que a obra do empossando tem sido alvo de elogiosas críticas, aqui em Brasília, na Bahia e em outros Estados onde tem sido apresentada.

Finalizando, respeitosa mesa, caros acadêmicos e dileto público, permitam-me dizer uma breve prosa, muito adequada a altura de nossa digressão, para abrandar o ar formal:

“Creio estar molestando a assistência, mas não tenho relógio!

E um estudante irreverente gritou ao fundo:

– Mas nós aqui temos calendário!”.

Taguatinga, junho de 2006. Ronaldo Alves Mousinho, Cadeira nº15 da ATL/DF.


É baiano da velha Remanso, que desapareceu em decorrência da Barragem de Sobradinho. Na Escola Dom Bosco, professora Florinda Castelo Branco, consolidou o apego aos estudos; dali, ao Ginásio Rui Barbosa, de onde, como o povo diz, arribou em busca da formação educacional não possível em sua terra. Passou pelo Colégio Estadual Antonio Alves Filho/CEMAAF, em Petrolina, PE, e fixou-se em Salvador, BA, onde se diplomou em Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Bahia. Em 2001, mudou-se para Brasília, onde concluiu o curso de Direito pela Universidade Católica de Brasília. É Servidor Público e ocupa a Cadeira 27 da Academia Taguatinguense de Letras.

Iniciou na Poesia aos dezesseis anos. Escreveu contos e crônicas até abraçar o gênero literário Romance.

Publicou em 2003 A Santa do Pau Oco, que, segundo o jornalista Nilo Vaz, “é obra que a mão escreveu e a emoção ditou. O autor usa uma doçura persuasiva para atrair o leitor, lançando-o, vez ou outra, na condição de personagem, também. O autor mostra que sabe trabalhar com a ferramenta principal de sua obra: a palavra. Saber usá-las é um desafio. Nesta obra o autor não vem como promessa, mas pleno e realizado”.

Em 2004, veio O Purgatório de Eduardo, que, nas palavras do escritor Achel Tinoco, “é um passeio pelas calçadas das cidades interioranas brasileiras, onde, em noites enluaradas e calorentas, os vizinhos reúnem-se para contar e ouvir as mais emocionantes, estranhas e bonitas histórias de vida e de morte. Mais uma vez, o escritor leva-nos à cidade do fundo de sua alma e dá-nos de presente este lindo romance”.

Em 2005 entregou aos leitores Memórias de um Coroinha, relato da infância nos meses que antecedem a conclusão das obras da barragem de Sobradinho, que inundou quatro cidades, inclusive a sua própria. A intenção era fotografar a problemática da comunidade sob a sua ótica. O enredo baseia-se no desaparecimento da imagem da Padroeira e na desapropriação das terras que seriam inundadas pela barragem. Nas vésperas da grande festa de despedida da cidade, a imagem da Santa, ao retornar de serviços de restauração, é extraviada ao Estado de Mato Grosso. A partir daí, desenrola-se todo o enredo. O final surpreende.

Em 2007, edita seu quarto romance, Era uma vez um Comunista, ambientado em Salvador, onde o escritor residiu por mais de vinte anos. Aborda as mazelas que agridem o morador comum das grandes cidades. Mesmo relatando sofrimentos e dificuldades, o autor impregna a história de lirismo e humor, sua marca maior. Tendo como referenciais fatos do cotidiano brasileiro recente, o livro aborda questões de saúde pública, educação, segurança, habitação popular e preservação ambiental, direitos garantidos pela Constituição Federal e negados pelo cotidiano de um país, segundo o Escritor, vilipendiado pela corrupção, irresponsabilidade política e desapego da maioria das lideranças políticas com os interesses da sociedade.

Em 2008 apresentou aos leitores O Legado da Loucura, romance ambientado em Taguatinga, Distrito Federal. É uma história concretizada em um país irreal chamado Brasil. Mostra a hipocrisia humana e as mazelas dela decorrentes, através do relato da vida de um doente mental, personagem principal da história. Por se desenrolar em plena capital federal, à sombra de políticos capazes de tudo para obtenção e garantia do poder, é uma pérola de momentos e situações surrealistas. A vida do personagem principal passaria despercebida se o destino não lhe criasse situações tão inusitadas. Foi o que aconteceu com José de Arimatéia Gusmão, o Zé Besta, personagem principal, um demente na capital federal. De repente, com a morte, transformou-se em centro de uma comédia, que é a disputa por sua “herança”, flagrante da miséria e da hipocrisia.

Lampião, Governador de Brasília, editado em 2009, é o sexto romance de Astrogildo Miag. A imaginação do escritor não tem limites. Envereda agora pelo sertão nordestino, encontra o capitão Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, conduz até Brasília e o elege governador da capital. A marcha triunfal da Chapada Diamantina, na Bahia, até Brasília, é uma das mais irreais narrativas literárias, impregnada com a marca maior do escritor: humor e poesia. Segundo José Ferreira Simões, Professor, PHD em Educação e Escritor, “eu lírico, narrador, na simulação de um sonho, faz ressurgir Lampião, na Chapada Diamantina, com destino a Brasília, para combater o MST, implantar o Estado do Planalto Central e, secundariamente, impedir a transposição do Rio São Francisco. O romance entabula fatos picarescos numa sátira ao comportamento humano, especialmente no que tangue à mediocridade em relação à fama, fortuna e subserviência ao poder econômico e social. Lampião reaparece, sem mulheres no bando, mas detentor da fama de mito, o anti-herói que se torna herói. Como se não tivesse morrido, o cangaceiro se depara com o Brasil atual – situação em que ele está desatualizado, mas em nada mudou quanto às mazelas humanas: o puxa-saquismo, a corrupção, o machismo, a violência, a ambição/ganância, o levar vantagem, principalmente a financeira e a eleitoral. Acerca-se de assessores, seguidores e admiradores. Arrasta multidões. Por onde passa, provoca exasperações cômicas e ridículas, sempre se reportando ao que a História registra e ao que o folclore cultiva. Pelo que foi, em vida, ele ressurge em outra dimensão, mas com as mesmas caricaturas de cangaceiro e mal-feitor bem-feitor. Expõe o que há de pior na política, mas se rende a ela, elegendo-se governador de Brasília, numa constatação de que nem mesmo o “Rei do Cangaço” resistiu ao assédio do poder político. Tudo lhe é facilitado pela fama histórica que o tornou mito. Não deixando de ser o que era, causa medo, pavor, mas fica numa versão politicamente correta, faz um governo popular e honesto, mas resolve voltar à origem. É morto, nas mesmas circunstâncias históricas, segundo os relatos, e o sonho acaba”.

 

Em 2013, Astrogildo Miag apresenta o livro de contos O Homem que Morreu Cinco Vezes, onde reafirma a característica da sua obra: o irreal e o inconsciente apresentados com lirismo e humor, não raramente destituídos da razão e da lógica triviais. Neste livro, aborda a quimera e impotência do homem, a exemplo do beato Vivaldo de Jesus, que obra milagres a partir do equilíbrio e da preservação da natureza. Traz a crítica social em A guerra, disputa entre Brasil e Canadá pela hegemonia no mercado de pequenas aeronaves. E Os primeiros contatos com os macacos falantes, na Foz do Rio São Manuel, que só existem na mente do Escritor? O cavalo selado mostra que nem as pequenas comunidades salvam-se da violência; menos ainda as grandes cidades, a exemplo da não tão irreal História do carro vermelho. Sempre a bordo de histórias hilariantes, em O terremoto mostra o abalo sísmico do Haiti, cotejando-o com o abalo político ocorrido na capital federal, quando o governador teve o mandato cassado. Amarildo e Índio da Amazônia registra a história de artista mambembe, cuja atração principal era um jacaré com mais de cinco metros de cumprimento, que devorou o próprio artista em plena apresentação. E a paranoia de alguém só dormir sentado em vaso sanitário, de preferência nas casas alheias? Pois, O homem do sanitário é um dos personagens irreais de Astrogildo Miag, assim como Genésio, o come rato e outros. Relata até o nascimento do MST: “O batalhão de trabalhadores sem terra munidos de picaretas, enxadas e facões, bandeiras vermelhas simbolizando o sangue derramado, entra silenciosamente nas cidades à procura dos culpados pela mortandade de seus antepassados. Enquanto não os encontram, como tática de guerra, vão plantando acampamentos aqui, ali e acolá até o dia do juízo final”. Quem seriam os culpados e qual seria a mortandade? A resposta encontra-se em Os primórdios do Movimento dos Trabalhadores sem Terra. A interrogação acerca do título é inevitável e eis a resposta: cinco dos contos têm como conteúdo e tema principal a quimera de supostas mortes do escritor, distribuídas ao longo do livro. Daí, O Homem que Morreu Cinco Vezes.


Opinião do Leitor:

Caro Astrogildo,
Acabei de ler hoje, “de um fôlego só”, o interessantíssimo “Era uma vez um comunista”. Despretensioso e irreverente, entremeando as passagens cômicas descritas, você pintou um forte retrato do Brasil real, palco ainda nos dias atuais, da irresponsabilidade pública e das consequências do descaso governamental histórico com as necessidades e direitos dos cidadãos comuns. Em cada personagem do livro reconhece-se alguém com quem se convive ou já se conviveu em algum momento. No meu caso, conheço mesmo um deles, o Glicério, colega da saudosa FSESP, hoje FUNASA.

O linguajar, típico baiano, nos remete ao cotidiano de uma cidade que entranhada na alma de quem nasce ou vive lá, mescla em sua paisagem geográfica e social o belo, o sofrido, a capacidade de superar adversidades, de encantar e de transmutar-se em deslumbrante templo de vida, apesar de tudo.

Alguns dos principais conflitos e ritos de passagem que vivemos ao longo da nossa vida estão ali personificados no “comunista” que intitula o livro.

Certamente muito mais teria a comentar, mas quero finalizar com as minhas congratulações sinceras e admiração pela sua obra, pela sua capacidade de transformar em ouro literário o cotidiano paradoxalmente comum e singular, com personagens que facilmente poderiam se reconhecer também nos versos do genial Fernando Pessoa em seu “Poema em linha reta”:

“ …Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?…”

Grande abraço, R. Castália

 

Mensagem Inicial

Nada na vida é o porto final. Ao ser alcançado, passará a se constituir em porto intermediário, passagem para outro porto que será, transitoriamente, o final.

A insatisfação natural do homem só termina com a morte.

Lute pelos seus sonhos!

 

Algumas Palavras

 

É importante registrar o caráter de veracidade de Era uma vez um Comunista, sombreado por acontecimentos reais do calendário histórico do Brasil. Espelha parte da minha vida — talvez a mais importante, feliz e difícil ao mesmo tempo — e deve ser apresentado de duas formas. Primeiro: Como concretização do inconsciente do escritor, manifestação da inspiração e sensibilidade artística. Aqui, permitimo-nos o embaralhamento de situações díspares, tendo como referenciais o cotidiano de um condomínio residencial classe média e a Copa do Mundo de futebol realizada na França, em 1998. Segundo: Como manifestação consciente do cidadão frente aos inumeráveis problemas do brasileiro comum, sobretudo o desrespeito à dignidade humana.

O livro aborda questões relacionadas com saúde pública, educação, segurança, habitação popular, emprego e preservação ambiental — direitos garantidos pela Constituição e negados pelo cotidiano. Mostramos flagrantes da atuação político-partidária como elemento — não de libertação, mas —de opressão e manutenção da exploração sobre o cidadão.

O referencial espacial do relato é o Condomínio Residencial dos Colibris, especialmente o edifício Araratuba, bairro Imbuí, em Salvador, Bahia, onde ficaram vinte anos da minha vida. Boa leitura.

O Local

 

O condomínio residencial Quinta dos Colibris é um dos muitos condomínios do bairro Imbuí, reduto da classe média de Salvador, capital da Bahia.  Seu maior fomentador foi o Pólo Petroquímico de Camaçari, na Região Metropolitana. Os comerciantes prestigiavam os petroquímicos que visitassem suas lojas: bons compradores e excelentes pagadores. Com nível salarial acima da média, realizaram verdadeira revolução no perfil do bairro. Grandes condomínios foram financiados pelo antigo Sistema Financeiro Habitacional. A iniciativa privada construiu para todos os gostos e o poder público obrigou-se a criar condições de habitação. Um dos problemas era a infestação de muriçocas. Nuvens do inseto invadiam os lares. Ninguém suportava e o queixume era geral.

— Até hoje me arrependo de ter vindo morar aqui; nunca vi tanta muriçoca! — queixava-se Raimunda Santos, moradora do segundo condomínio ali instalado. Ela mesma procurava a resposta. — Deve ser esse esgoto; nascem ali, embaixo do mato e do capim.

Esgoto era o nome emprestado ao rio Cascão. Cortava a grande Avenida Paralela, uma das principais da cidade, e desembocava no Imbuí, até então local ermo.

O rio Cascão formava linda lagoa na entrada do bairro. As empresas de construção civil trouxeram a morte à lagoa. Apareceram os donos do terreno onde ela, a lagoa, deitava desde tempos imemoriais. Criou-se uma associação de moradores para defender o direito de a lagoa permanecer lagoa, mas os poderes públicos não deram ouvidos. A bonita lagoa foi sepultada no sentido mesmo da palavra. Centenas de caminhões com entulhos sepultaram o acidente geográfico para construção de um shopping. Para não matar também o rio Cascão (pai da lagoa ou o contrário?) deliberaram deixar um veio para que ele, o rio, mesmo se espremendo, corresse rápido para o mar. Se demorasse, também seria morto. Aliás, quando estas linhas forem publicadas talvez já nem exista o rio Cascão. — A defesa de interesses difusos, como o meio ambiente, na Bahia, não tem merecido ações práticas e precisas dos órgãos constitucionalmente responsáveis por tal.

Depois veio o asfalto. Grande avenida cortou o local. Deram-lhe o nome Jorge Amado, homenagem ao baiano escritor-mor. Na pressa da inauguração, vésperas de contenda eleitoral, esqueceram a rede de esgotos, ou seja, o saneamento básico. Às casas, residenciais e comerciais, restou a alternativa de recolher seus dejetos em fossas sépticas.

Nascia um novo bairro. Nome bonito, atraiu as classes média e baixa ascendente: quem melhora de vida quer viver melhor. E o Imbuí, de braços abertos, aceitou mais condomínios que ocuparam áreas tidas como devolutas; na verdade, terrenos na engorda, esperando valorização. Os donos dos terrenos, as próprias construtoras, prometiam o céu a quem se dispusesse a habitar as delícias do bairro. Os jornais estampavam: “O novo eldorado, com infra-estrutura de primeiro mundo! Garanta seu lugar para o resto da vida!”.

Ao mesmo tempo, proliferavam fábricas de invasões. Grileiros e corretores aliaram-se a comerciantes e ocuparam as margens da avenida. Continuaram invadindo, mesmo nas barbas de altos funcionários públicos, vereadores e deputados estaduais que escolheram o bairro para residência. Num fim de semana construíam uma casa; Segunda-feira já amanhecia pintada, com energia elétrica clandestina e roupas estendidas no varal — como se habitada já fosse. Era comum não se demolir construção em terreno público, uma vez habitada. Curiosamente tal só ocorria no Imbuí. Em outros locais a Prefeitura derrubava construções já habitadas, inclusive um condomínio inteiro na fronteira com o município de Lauro de Freitas, na grande Salvador. Mas, no Imbuí, os invasores estavam salvos. Por quê? — não me perguntem.

Uma empresa de máquinas pesadas devastou dunas inteiras e fez loteamentos. Cansada e satisfeita, deliberou estabelecer-se na própria avenida, onde construiu sua sede. Os grandes invasores, casas comerciais e mansões, nunca foram importunados; mas, todas as tentativas de pequenos invasores eram rechaçadas pela Polícia.

Por essas razões o Imbuí inchou. Os problemas apareceram, embora ainda seja um bom lugar para morar. Nesse local, exatamente na Rua dos Tucanos, está encravado o Condomínio Colibri. Composto de cinco prédios de dezoito andares, administração geral mais um síndico em cada condomínio: Edifícios Araratuba, Ararataba, Ararabóia, Araguaçú e Aramirim.  Formam um conjunto bonito dominando a entrada do bairro. Este relato acontece preponderantemente no edifício Araratuba.

 Foto da lagoa

 I

 O síndico geral, Ricardo Braga, convocou reunião com síndicos de todos os prédios do condomínio, no salão de festas do Edifício Araguaçú, onde morava. Feitas as apresentações, só o Araratuba era ausente. Logo chegou seu representante; pediu desculpas; providenciava conserto da bomba d’água para que, ao chegarem do trabalho, todos encontrassem o líquido nas torneiras. Alguém indagou se o prédio não dispunha de bomba reserva. A resposta foi desalentada: Como, se não tinham dinheiro nem para pagar o elevador, há oito meses atrasado! A Empresa já acionara, inclusive, o condomínio na Justiça. Imaginem dezoito andares carregando compras nas costas! Sugeriram encaminhar à justiça; Pequenas Causas era para aquilo mesmo! A resposta foi conclusiva… Nada obrigava se a pessoa não tinha como pagar. E não adiantava nem protestar no cartório, pois quase todos já estariam com o nome sujo na praça.

— Quem não pode pagar que se mude!
— Vou seguir o conselho. Também estou atrasado, três meses. Qual a moral para cobrar? Até o síndico atrasado…

A representante do Ararabóia, Leda Silva, pediu pressa, tinha muitas provas para corrigir. Era professora, trabalhava de manhã, de tarde e de noite. Só participava da reunião porque a Universidade da Bahia estava em greve novamente e mais uma vez. A reunião foi aberta. O síndico geral lembrava ser o assunto do interesse de todos. O bairro crescera, a população duplicara e maior população significava mais problemas. Inclusive, um casal de moradores fora assaltado na área interna do condomínio. Os ladrões colocaram a mulher na mala do veículo e percorreram toda a cidade à procura de um caixa eletrônico. Nenhum funcionava, pois, nervoso, o marido esquecera a senha. Os seqüestradores resolveram incendiar o veículo. Aí não teve jeito; o marido abriu o jogo…

— E estavam jogando, seu Ricardo, inquire Gildete Silva, moradora do Araratuba.
— Estavam quebrados, dona Gildete!
— Essa parte o senhor já disse. Os caixas eletrônicos, com defeito ou quebrados, não funcionavam.

— Quem estava quebrado era o casal! Sem dinheiro na conta bancária, ficaram com medo de informar. Graças a Deus terminou bem. Os ladrões aceitaram receber outro dia.
— Foram até bonzinhos…

Ricardo Braga retoma a reunião. Aquela não era a única história. Aconteciam coisas no condomínio que nem eles, síndicos, tomavam conhecimento. Gildete Silva pede a palavra.

— Tem um porém, seu Ricardo; nem todos aqui são síndicos. Eu mesma, não sou síndica; estou substituindo o subsíndico.

— Essa é uma reunião do condomínio geral! Quem representa cada prédio é o síndico; na falta deste, o subsíndico, rezam os estatutos — argumenta o síndico geral, que prossegue. — Como dizia, muitos acontecimentos nem chegam ao nosso conhecimento. Vejo a hora de ocorrer um fato mais grave, um crime.

— Já aconteceu, seu Ricardo; e mais de um. Até crime de morte. O senhor ainda não era síndico.
— Desculpe, mas, desde a criação do condomínio, há quinze anos, só teve um síndico geral.

— O senhor, certo? Por que só o senhor foi síndico, não me leve a mal… — questiona a mesma Gildete Silva. — Por uma razão simples: a senhora quer ser a síndica geral? Não quer, Deus a livre? Por isso fui o único síndico até hoje.

O síndico geral chama a atenção. Já era tarde; no outro dia, Segunda-feira, dia de branco na gíria popular, todos trabalhariam. A discordância foi uníssona. — Amanhã, não! É dia de Brasil e Escócia. Não vai assistir ao jogo? A partir das nove começam os flashes diretos da França. — O jogo não será às treze horas? — lembra o síndico. — Vou trabalhar; as doze e meia paro, assisto ao jogo e volto ao trabalho. —A seleção deveria ter essa garra para jogar, seu Ricardo! — deseja Gildete.

Araçá, moreno acaboclado, porteiro do Araratuba, deseja falar com o síndico de lá, do Araratuba. É urgente, seu Eli! Se for assunto do condomínio pode falar, responde o síndico. Na vista de todo mundo? Os homens do elevador chegaram com dois soldados. O elevador está empenhado. — resume o porteiro.

— Que história é essa? Elevador empenhado? — Elivelton compreendeu… — Vão me crucificar. Estão levando o elevador. Não falei que estava atrasado oito meses? Tenho pressão alta, vou enfartar. Um copo d’água, por favor… — Foi se inclinando, lastimando-se… — Pior é que nem eu paguei. Vão me crucificar…

Araçá, o porteiro, esperava as ordens; pergunta o que fazer. Eli responde não estar se sentindo bem. O senhor é de onde? Estou conhecendo o senhor, não sei de onde…

— Agora foi que deu. A polícia esperando e o senhor com brincadeira. Deixo levar o elevador?
— Para mim tanto faz, não é meu.

O síndico geral pediu que chamassem um médico, o homem estava em vias de um colapso. Inexistindo aquele, pediu uma ambulância. Lembraram do veículo do morador do 803, edifício Aramirim. Convocada, a Van estacionou para a viagem. Chamaram o síndico… — Eli, você não está se sentindo bem. — pegam pelo braço — Vamos ao médico. É rápido. Chegar e voltar.

— Não estou doente para ir a médico. Querem me tirar porque estou ganhando. Hoje é meu dia de sorte. Não saio de jeito nenhum! — delirou Eli, viciado em jogo de cartas.

A notícia se espalhou. Na portaria do Araratuba a conversa era uma só: Eli, o síndico, fora internado com problemas mentais hereditários. Com o pai acontecera o mesmo. E já tinha um irmão engenheiro perambulando pela vida. Perambulando como? Não é engenheiro? — admirou-se um dos porteiros. — Ficou doido de tanto estudar matemática, responde o outro.

— Ainda bem que nunca gostei de matemática.
— Você nunca estudou. Quem descobriu a América?
— A América, não sei; mas, o Brasil, foi Pedro Alves Cabral.
— Errou. Pedro Álvares Cabral. Pedro Álvares!
— Esse mesmo. Pedro Alves Cabral.
— Deixa para lá. E quem descobriu o caminho para as Índias?
— Não sei. E tem caminho para índia?
— Não falei índia. Falei Índias. São completamente diferentes. Índia é uma mulher do mato e Índias é um lugar.
— Você me acha com cara de quê?
— De burro. Não sabe também quem foi Pero Vaz de Caminha? Vasco da Gama, você sabe quem foi.
— Quem foi não; quem é! Time do Rio de Janeiro. Foi campeão no ano passado.
— É burro mesmo. Vasco da Gama foi o descobridor do caminho para as Índias.
— Está mesmo encabulado com essa índia.

A chegada de Hermenegildo Frutuoso, do segundo andar, tirou o sossego dos porteiros. Perguntou o que discutiam. Nada não, seu Furtuoso. Estamos preocupados com seu Eli, que ficou doido, responderam.

— Meu nome é Frutuoso. Hermenegildo Frutuoso. Certamente apenas um distúrbio consequente de um regime hipersódico.  — Como, seu Furtuoso? — Frutuoso, já disse. Com o excesso de sódio a pressão arterial reagiu para mais e aconteceu um AVC. Se o AVC não deixar sequelas, logo estará de volta para cumprir um regime hiposódico.

— Como sabe tantas coisas?  Seu Eli ficou doido mesmo?
— Depende de uma avaliação do quadro individual.

Frutuoso deu as costas. O morador do 602, Ari Sandro Moreira, apelidado de Bocão por razões óbvias, ouviu parte da conversa e comentou:

— O sonho desse é ser médico. Já fez mais de dez vestibulares, nunca conseguiu. Só anda de branco, mas não é médico.
— É o quê, então? — pergunta Araçá, um dos porteiros — Quem anda de branco é médico. Ele deve ser médico, sim.

— Pai de santo é médico? Claro que não! Pai de santo é gente grande do candomblé. — Araçá faz o sinal da cruz. “Deus me livre”. O elevador estaciona. Ari Bocão parte rumo ao chuveiro… Vou tomar um banho bem frio, diz. — Só amanhã, seu Ari; a bomba quebrou novamente, não tem água. — lembra o porteiro. — Como assim? Acha que vou dormir sujo?  Esse condomínio está entregue às baratas. Cadê o síndico? Ficou doido? Vou embora daqui. Não é possível… O síndico doido?

***

O dia amanheceu. O sol lançava raios tímidos no canto do céu. O silêncio era quebrado pelo circular dos ônibus coletivos, cada um com seu horário. Já passava das cinco horas. Araçá, misto de vigia e porteiro, levantou-se, estirar as pernas. Passou o ônibus do Guilherme Marback, primeiro conjunto residencial do Imbuí. Alguém se anunciou; o porteiro perguntou quem era. Queria ter um trabalho desses — brincou. Não sabe o que é acordar todo dia duas da manhã — responde o visitante. Girou a chave; o jornaleiro entregou-lhe um maço de jornais. Brincou: — Não sei como esse povo não abusa de ler todo dia o mesmo jornal. — O mesmo jornal com notícias diferentes — retruca o jornaleiro. Que nada! As notícias se repetem toda semana. Você lê? O que traz de novo hoje? Não disse que era tudo igual? Qual o crime mais feio de hoje?

— Saiu no jornal hoje, mas aconteceu ontem.
— Esse jornal anda muito atrasado. Qual o crime?
— O homem que matou os três filhos depois se enforcou.
— Virgem do céu! Esse era doido.
— De doido não tinha nada. Certinho da silva. Morava nas Malvinas. Antes, morou na Saramandaia, perto de uma tia minha. Trabalhou até na padaria de Zezinho, em Itapuã.
— Quem trabalha em padaria termina maluco. Acorda cedo todo dia. Nem dorme, preocupado em perder o horário. Já pensou o dia amanhecer e o povo não ter pão pra comer?

O ônibus que transportava os empregados de uma fábrica petroquímica parou na porta. Pela freada estava atrasado. Araçá olhou o relógio já com a claridade do dia. Cinco e trinta e cinco. Falou para si mesmo: Atrasado dez minutos; vai tirar a diferença na pista. Abriu a porta principal, respirou o ar puro do jardim. O outro vigia aproxima-se. Na falta de assunto reclamou do frio. O segundo ônibus do Conjunto Marback lembrou-lhe as horas: quinze para seis. Nivaldo, porteiro titular, estava atrasado; já eram quase seis horas. Escondeu-se no banheiro. Lavou o rosto. Procurou a escova dental, não encontrou e com o dedo esfregou pasta dental nos dentes. Procurou o pente… Esquecera e achou graça: É hoje… Esqueci tudo!

Seis horas. Condôminos madrugadores já transitam pelo playground. Seis e cinco da manhã, a rua já movimentada. A impressão era que o Pólo Petroquímico de Camaçari morava no Imbuí. Seis e meia. Estudantes buscam transportes escolares. Motoristas não esperam, têm hora marcada; não encontrando no ponto, buzinam: — Corre ali, avisa ao carro verde que Lucinha já está indo. — Não posso deixar a portaria, dona Gildete. — O outro porteiro não chegou ainda? O condomínio está entregue às moscas. — E foi, ela mesma, pedir tempo ao motorista.

Os moradores abandonam os “esconderijos”. De três em três minutos as portas dos elevadores despejam gente. Penteados e perfumados, alguns bem vestidos… — Bom dia, seu Glicério. Essa Copa a gente ganha, doutor. Deus é brasileiro.

— Se fosse brasileiro, o povo não estaria na miséria.
— O presidente da República diz todo dia que melhorou. O pobre agora está comendo.
— Ele deveria passar uma semana na casa de um pobre.

O relógio na parede marca sete e meia. Francisca, empregada doméstica do 602, traz café. Obrigado, Chica; vou guardar, não estou com vontade agora. — agradece o porteiro. — Passou a noite trabalhando e não está com fome? Ou dormiu a noite toda?

A lavadeira de roupas do 801, trouxa de roupas sem tamanho, descansa do peso. Araçá reclama: — A senhora tem o trabalho de lavar, dona Lara gasta o dinheiro e agora coloca a trouxa no chão sujo? — O senhor é conversador. Este lençol, onde a roupa limpa está enrolada, é meu. Justamente para não sujar a roupa da freguesa. Pensa que sou o quê? — defende-se a mulher. O elevador de serviço abre a porta. A humilde lavadeira transporta a trouxa com roupas lavadas. Não contava com o inusitado: Pisou a pequena Bolinha, cadela de estimação do 203. O animal, apavorado ante a pisadela, chora como criança. A madame descontrola-se: — O que fez com minha filha, sua animal? Se não tem dinheiro pra comprar óculos, me peça!

A trouxa de roupas foi ao chão. A operária não sabia como se desculpar. — Me perdoe, madame. Juro que foi sem querer. — Vocês não podem subir nem pelo elevador de serviço. Têm que ir de escadas mesmo! Se quebrou alguma costela vou dar queixa na polícia! Vou fazer uma sugestão por escrito ao síndico. Trabalhador braçal só pode usar elevador, seja qual for, das dez da noite às seis da manhã! Para não se misturar com os condôminos.

— Quem vai receber as roupas limpas antes de seis horas da manhã? Quem vai conferir?
— A patroa confere depois. Não podem é acontecer fatos lamentáveis. — Pega a cadela nos braços; beija, acaricia… — Não chore não, Bolinha. Vou tomar as providências. — Vira-se a Araçá — Me ajude a tirar Chuchu desse elevador antes que aconteça também o pior.

Araçá entra e sai do elevador com um carrinho de bebê acomodando pequeno cão branco. A mulher recomenda pegar o cobertor e cobri-lo, para que o animal não se resfriasse. O porteiro conduz o carrinho com o animal ao pátio dos fundos. A mulher agradece: — Nesse condomínio só se salva o senhor. Depois que Chuchu ficou paralítico minha vida virou um inferno! Não faz nada sozinho. É de fraldas dia e noite. Mas não vou deixar meu filho morrer a mingua.

O elevador sobe e desce. Betânia do 501 está de mudança. Já, dona Betânia? Chegou outro dia… — indaga o porteiro. — O condomínio está muito caro. É o preço do aluguel. Vou me mudar para o Cabula. Lá o prédio é pequeno, só tem um empregado. A despesa é menor.

— Não gostou daqui?
— Vou porque o condomínio é caro. Gostei demais daqui, inclusive dos empregados. Vou deixar uma mesinha e

duas cadeiras para o senhor. — Não precisa não, dona Betânia. — Já estão separadas. Agora, queria um favor. O senhor vai largar agora? — Queria, mas não posso. Não tem quem me renda. Mas a senhora pode dizer. — Não; deixe. Vá cuidar do seu serviço.

 

O elevador foi ao décimo oitavo andar. Desceu. Parou no doze, no dez… Demorou um pouco no quinto. Finalmente chegou ao térreo. Saiu Pablo do 902, perna engessada. — Me lasquei, Araçá! Quebrei a perna. Pior foi o emprego; era o segundo dia. Saí para comemorar e aconteceu o acidente.

— Foi carro?
— Do meu primo. Ele não teve nada. Só o prejuízo.

Lúcia Sampaio também saía do elevador. — Bom dia, seu Araçá; não dormi essa noite. Muita gente falando, falando. Aconteceu alguma coisa? Procure saber, pois aconteceu alguma coisa.

Márcia veio após com o seu, lá dela, cachorrinho. Mais um morador dengoso do condomínio. Cumpria sina levando Black para fazer xixi. Parou no térreo; queixou-se, iria mudar-se… Também, dona Márcia? A senhora é das moradoras mais antigas — consolou Araçá — O condomínio não é mais aquele. Querem proibir que meu cachorro desça pelo elevador. Se ele não tivesse artrite, nem me importava; descer escadas faz bem; mas não pode. Eu venho de elevador e Black pelas escadas? Está errado!

— Desde quando essa proibição?
— Me disseram. O síndico novo só quer ser. Pensa que não sei? Morava no prédio de minha prima, no IAPI. Era síndico lá também.
— Então tem experiência.
— Experiência para roubar. Deixou o condomínio na miséria. Como é que pode? Esse homem foi chegando e sendo síndico?
— Ninguém queria. A senhora quer ser síndica?
— Não tenho tempo, trabalho o dia todo. O senhor se engana se pensa que não faço nada. Lá em casa não tem empregada.

Um veículo da Prefeitura Municipal estaciona. Porteiro Araçá interfona ao morador; repassa o recado ao motorista: Desce já.

— O desce já dele é daqui a duas horas. Tanto documento para entregar… Ainda vou fazer serviços de banco. Chego à repartição quase onze horas!
— Ele almoça lá?
— A secretária manda buscar. Carne de sol, Filé Mignon… Sexta-feira é moqueca de camarão. Que dia é hoje?  Segunda-feira? Está de ressaca. É filé com fritas e suco de pêra.
— Ele bebe?
— Bebe, sim; toda Sexta-feira. E eu escondido, para ninguém ver o carro. Se jornalista fotografar sai no jornal.
— Até bebendo você é motorista?
— Não tenho Natal nem Ano Novo. Nesses dias trabalho vinte e quatro horas. Ele comemorando e eu cochilando no carro. Fim de semana ainda inventa viajar para a fazenda, perto de Juazeiro. Quando cisma, viaja Sexta de noite. Chega lá na madrugada de Sábado.

— E a gasolina?

— Um tanque dá para chegar. A volta, pega a nota fiscal e aqui recebe o dinheiro.

— Queria trabalhar num lugar assim.  O que seu Garrido faz na prefeitura?

— É gente grande, com carro chapa preta.

— É com esse que viaja?

— Tira a preta e coloca uma chapa amarela.

— Emprego bom. Trabalho desde ontem; já são nove horas; sabe quanto ganho?

— Nem precisa dizer.

— E isso mesmo. Todo mundo sabe quanto é.

 ***

                                 A porta do elevador abriu, fechou, abriu. O porteiro espera a saída de alguém; não saiu ninguém. Como pode porta abrir e fechar sem ninguém? O vento assobiava pelas frestas.  A porta abriu-se novamente. Que diabo é isso? Cochilava. O vento o acordou. Hoje está demais; ainda não preguei os olhos. Olhou o relógio, estava escuro; quase meia noite. Meia noite é a hora das almas. Será alguém do outro mundo? Quis acender a luz, pensou alto: Vai ser pior; aí é que não vou cochilar mesmo.  Alguém bate na porta de vidro. Reconhece Rafael, do quinto andar, visivelmente embriagado. Deseja boa noite, segura-se às paredes. Araçá disfarça o medo. Pergunta ao homem, de onde vem? Não tem medo de andar sozinho tarde da noite?

— Estava por aí… Antes só que mal acompanhado.

— Se é assim, estou bem guardado, aqui, na portaria. Passo a noite só, com Deus.

— Aí você se engana… Você não passa a noite só.

— Como? Eu e Deus.

— Tem mais gente.

— Claro! O pessoal que mora no condomínio.

— Tem mais gente…

— Por essa portaria não vejo entrar mais ninguém.

— Já viu defunto entrar pela porta?

— Aqui tem defunto?

— Amigo — voz arrastada de embriaguez — eu estou bêbado?

— Bêbado, bêbado, não; está meio tomado.

— Obrigado. Muito obrigado. Será que minha mulher vai notar que estou tomado?

— E o defunto?

— Que defunto?

— O senhor não falou que o defunto que dorme aqui não precisa de porta para entrar?

— Falei, foi?

— Que história é essa, seu Rafael?

— Quem sabe contar é o porteiro mais velho, o que trabalhava antes de você. Não conseguia dormir, eles não deixavam. Os defuntos, ora; a noite toda acordado. Quase fica doido. Ainda se internou no Juliano Moreira. De madrugada, caminhando para lá e para cá com medo do defunto que saia do elevador.

— Saia de onde?

— Do elevador. Passeava pela portaria, mexia na fechadura, voltava para o elevador. Batia a porta, acendia a luz. Fazia uma confusão!

— É verdade mesmo, seu Rafael?

— Vá saber dele. Já se aposentou; ficou doido. Mora ali na Cesta do Povo. O nome dele é Dedé. Aliás, não mora mais, não; morreu.

Araçá emudece. Será o porteiro que já morreu? Rafael despede-se; vai dormir, amanhã é dia de branco. Seu Rafael, é verdade o que falou? — pergunta. — Já vi! Quando chego tarde parece que sobe gente comigo. O elevador fica pesado, balança como se alguém mudasse de posição. Uma vez, de medo, desci antes do meu andar. Fui de escadas. Vá conversar com Dedé.

— O senhor acabou de dizer que ele já morreu.

— É verdade. Esqueci. Vá-ver é ele que fica aqui.

O elevador chegou. A porta abriu e logo fechou. Araçá rezou baixinho: Pai nosso que está no céu… Rafael não entendeu: — Como? Falou comigo? Fale alto! — …seja feita a vossa vontade, assim na terra… — Não estou entendendo nada. — …como no céu. — Aonde? No céu? O que é que tem o céu?           — Estou rezando.

— Já vai dormir? Vou dizer ao síndico que você dorme. Nunca vi porteiro dormir. Vou dizer…

II

Chegou morador novo. O caminhão estacionou nos fundos do condomínio para descarregar a mudança. A conhecida Gildete Silva do 905, Araratuba, chama o porteiro; pede-lhe que  abra a porta dos contadores de água. Desculpe, mas aqui não tem contador de água; o valor já vem na taxa do condomínio, lembra o porteiro. — Se não tivesse, ninguém pagava. E por que cortaram a minha? Vim correndo, mas o desgraçado já tinha feito o serviço.

— Tem coisa errada. Nenhum apartamento tem ligação direta. Pega do tanque de cima.

— O senhor já viu luz vir do tanque?

— Não falei de luz; falei de água.

— Quem está falando de água? Sou maluca? Vim correndo, quase bato o carro; estou com a geladeira cheia e cortaram minha luz.

— Só agora a senhora falou que era luz.

Ao abrir a porta da sala dos medidores decidiu não colaborar com a mulher. — Não trabalho na companhia, dona Gildete; não posso ligar. — Diga assim: não quero ligar, pronto! O condomínio precisa contratar quem queira e precise trabalhar. Tanta gente desempregada! Outros têm o emprego, mas não valorizam. Vai ligar ou não?

— Desculpe, mas não posso. Preciso do meu emprego.

— Se ligar vai perder o emprego? Acho o contrário; se não ligar é que perde.

— Dona Gildete, sou pago para fazer o correto. Ligar luz clandestina não é correto.

— Você é um araçá mesmo. Dos maduros da beira da estrada; ninguém quer. — A mulher olha desiludida — É contador demais. Se fosse um para todo o condomínio minha luz não estaria cortada.

— Dona Gildete, saia daí. A companhia funciona vinte e quatro horas. Basta mostrar o recibo pago.

— O problema é que não sei onde coloquei o recibo.

— Pague novamente, depois recebe de volta.

— Uma hora dessas, mais de seis horas? Seu Araçá, quer saber mesmo? Não paguei! Gastei o dinheiro no jogo da seleção brasileira. Vieram meus irmãos, cunhados e sobrinhos assistir ao jogo aqui, em casa. Entendeu? O que faço agora? Por que não disse logo que estava sem dinheiro?

— Dona Gildete, cada apartamento tem seu contador. Antes de cortar o fornecimento colocam esse aviso. — mostrou o papel. — Mas quase todos estão com o aviso! Estão na previsão de corte por atraso no pagamento. Pelos cálculos, o da senhora está nessa fileira. É este! Está desligado mesmo.

— Ligue, seu Araçá, pelo amor de Deus!

— Não posso; está com lacre. É crime. Quando desligam invertem os fios. Só eles sabem desfazer.

— Pelo que o senhor tem de mais sagrado na vida, ligue aí. O que custa? Não ligo porque não sei. Eu pago a metade do seu salário. Quero ligar para não passar vergonha.

O porteiro respira fundo… — Não pelo dinheiro, vou mostrar quais são os fios. — explica — Pega este… O preto. Enfia aqui… — Aonde? Está escuro. — Enfia debaixo desse parafuso. Depois o vermelho… Puxa para cá… — Não dá choque, não? — Só se encostar um no outro. Enfia aqui…

 

Araçá afasta-se. A mulher pega o primeiro fio… — Está escuro, seu Araçá. Agora lembrei: na pressa esqueci os óculos. Qual a cor deste fio que está na minha mão. É o preto? O preto eu enfio ali…

— Cuidado, dona Gildete! Não deixe triscar no outro. Esse é o vermelho!

— Não estou enxergando quase nada.

— Enfie aí. Aperte mais. Se der mau contato queima o fusível.

— Ainda disse que não sabia… Agora pego o vermelho, esse… Dobro…

Alguém chama o porteiro. — E agora, dona Gildete? Vou até a portaria. Cuidado para não triscar um no outro.

Antes de chegar ao destino, um grito: Seu Araçá! Acuda aqui! Sou eu, Gildete! Na sala dos contadores ligando a luz, esqueceu? — O porteiro já respondeu no escuro. — Estou indo! Aguarde um momento que faltou luz. — Faltou não! Eu desliguei. Estou sem óculos. — Está tudo escuro; tanto faz com óculos ou sem óculos. — Estou falando da hora de enfiar o vermelho no buraco. Enfiei no lugar errado. — Ainda bem que estava sem luz. — Não, senhor; quando enfiei desligou tudo. — Então foi a senhora? — Foi! Venha me acudir. Estou pregada no fio de alta tensão. — Impossível, dona Gildete; a energia está desligada. Afaste-se do fio que a luz pode voltar a qualquer momento. — Não deixe isso acontecer. Fico sem luz mesmo!

Enquanto procurava a vela aparece o síndico; pergunta quem está na casa dos medidores. A mulher responde: Gildete do 905; encostei um fio no outro! — Como entrou aí? A porta vive fechada! — Seu Araçá abriu, responde a mulher. — Com ordem de quem? Vou mandar apurar. — Não paguei mesmo não! — Não pagou o quê? — A conta de luz. Estava ligando minha luz cortada. — Foi isso, foi? Seu Araçá ajudou?

As pessoas retornavam de mais um dia de trabalho.

— Essa agora… Quando não falta água falta luz.  Nos horários mais inconvenientes. Parece que faltou só aqui. Será falta de pagamento?

— Pode ter sido; tem muito condômino inadimplente. Pior é subir dezoito lances de escadas. — Tadeu, filho mais velho de Josesus, não entendeu; perguntou o que era lance. — Não acredito! Um rapaz inteligente… Lance é a própria escada. Lances, meu filho, são os degraus que vão de um andar a outro.

Um som estridente: Préennnn! A sirena do elevador! Tem gente presa. O elevador parou com gente dentro. Tem gente no elevador? — A sirena tocou novamente. O homem repetiu: — Tem gente aí preso? Em que andar? (Danou-se! No escuro, trancado, como saber o andar? A resposta foi outra sirenada). Diga pelo menos o andar! (Mas, como saber o andar no escuro?). Porteiro Nivaldo é chamado: — Está surdo, Nivaldo? — Como vou enxergar sem luz, defende-se. — Para ouvir não precisa de luz. Tem gente presa no elevador!  — Qual deles, de serviço ou social? — Aí cabe a você investigar.

A sirena toca insistente. Nivaldo responde que já ouvira e pede calma. Ainda nem começara o turno e já aparece problema, falou baixinho. No escuro mesmo procurou o colega Araçá, que apareceu já com a vela acesa. — Vá resolver seu pepino, Araçá. O elevador parou no seu turno. Tem gente presa. A pessoa está perdendo a calma. Também!… Presa, sufocada e no escuro. Vá-ver o elevador está lotado.

— Vou subir pelas escadas. E a portaria? Ladrão aproveita é no escuro.

Araçá subiu as escadas. Passou pelo primeiro andar. Tem gente aí presa? Sem resposta, tomou a escada ao segundo andar. A mesma resposta negativa. Depois, ao terceiro. Tropeçou na curva da escada, a vela voou longe e ele rolou escada abaixo. Parou ao lado da vela, ainda acesa. Que sorte… Podia ter quebrado o braço. Ainda bem que a vela não apagou e clareou a queda. Levantou-se, chegou ao terceiro andar. O cachorro do 302 late várias vezes. A mulher manda o animal calar. Araçá raciocina: “Que cachorro danado! Me farejou no escuro”. Subiu ao quarto andar. Pote de cerâmica, enorme, no corredor. Quase tropeça. É lugar de deixar pote? Lembrou-se da razão da subida e desceu um andar; perguntou se tinha gente no elevador. Sem resposta, passa direto ao quinto andar. A casa de Jéferson Costa, sexto andar, porta aberta, vela acesa na sala. Araçá falou: — Dona Carmem, cuidado com a porta aberta. Faltou luz. Por que a porta aberta? Ladrão age no escuro. — A mulher respondeu ter alergia a escuridão. — Então feche a porta. A vela acesa está dentro de casa.

— A porta aberta diminui o medo. Está com o pega-ladrão!

— Até rato pode entrar.

— Tem rato no sexto andar?

— E barata das grandes. O condomínio está cheio de calunguinha.

— Verdade, seu Araçá? —    A porta foi fechada com força. — Deus me livre!

No sétimo andar, painel grande, cópia de auto-retrato de pintor famoso. Assusta-se. Parece de verdade! Tem gente no elevador? Esse elevador parou aonde? Chega ao décimo andar, cansado depois de um dia de trabalho. Agora a resposta vem: “Não está ouvindo a sirena? Abra a porta, aqui tem mulher grávida”. — Vou botar uma vela acesa pelo buraco pra clarear aí dentro. — Está maluco? Faltando ar e você trazendo vela para fumaçar? Abra a porta!

Araçá retira do bolso uma penca de chaves. Deve ser uma dessas… Voz feminina chora: “Pelo amor de Deus, abra logo essa porta”. A senhora sabe qual é a chave? (A sirena apita, longe. Araçá interroga se foi dali o apito). “Não, senhor; não foi daqui, não; se apertar a sirena, vamos ficar mais nervosos ainda”.

— E quem foi então?

A resposta foi outro apito. Deve ser o elevador de serviço também cheio de gente! Não sei qual a chave de um, imaginem de dois elevadores! A senhora sabe qual é a chave? A mulher chora… Vou perder esse menino… — Valha-me Deus! Nivaldo, Nivaldo! Vem me ajudar!

Alguém implora que abra a porta. Como, se não sei qual é a chave? — Vá chamar o outro porteiro. Pelo amor de Deus… Vou perder esse menino…

A energia retorna! O elevador deu um tranco, iluminou-se o painel. Marisa, a grávida, passava mal. Em solidariedade, todos só saíram do veículo quando a mulher foi recebida pelo marido. Porteiro Araçá desceu ao térreo, entregar a penca de chaves: Aqui não tem nenhuma chave de elevador! Nivaldo foi sarcástico. — É idiota mesmo. A chave do elevador é esse pino. Basta meter no buraco e rodar. Assim…

Araçá desculpou-se, elevador nunca parara durante seu horário. Não deu nem até logo e subiu para o descanso, no pequeno recinto à disposição dos funcionários do condomínio, no décimo nono andar.

 III

             Julho é mês frio em Salvador. A sensação térmica atinge os menores índices do ano. Os casacos saem dos guarda-roupas, desfilam pelas avenidas. O rádio anunciou uma tromba d’água na cidade. Na Manoel Dias, bairro Pituba, a água chegou a mais de metro! O locutor orientava: “Se tiver que sair de casa, evite transitar pela Manoel Dias, que está totalmente tomada pela água e sem energia!”. Araçá acompanhava pelo pequeno rádio, companheiro das longas noites. Quem sairia numa hora daquelas? Tomar chuva e arriscar-se a um assalto? Conferiu o relógio, quase onze horas. Bocejou. Puxa a cadeira, baixa o volume do rádio… “Atenção, muita atenção! O noticiário da sua FM Sensação em caráter extraordinário! As chuvas já provocaram dezenas de deslizamentos com centenas de desabrigados. Por último, uma tragédia! — Araçá enfia o ouvido no rádio — A Ladeira da Montanha veio abaixo!”. — O quê?! — O locutor parece ter ouvido a exclamação e explica: “A Ladeira da Montanha veio abaixo com as fortes chuvas que castigam a cidade!”. — A Ladeira da Montanha? — Araçá não acreditou. O locutor prossegue informando: “Uma das maiores tragédias de todos os tempos atingiu a Bahia! A centenária ladeira, que liga a cidade alta à cidade baixa, desmoronou, soterrando mais de vinte casas que ficavam no sopé!”. — Que diabo é sopé? — O locutor respondeu: “Soterrou toda a parte baixa da ladeira, interditando a Avenida do Contorno”. — Será que morreu gente? — O locutor continuou respondendo: “Ainda não se sabe o número de vítimas. Calcula-se que pelo menos quarenta pessoas perderão a vida no maior acidente do gênero! A Bahia está de luto. O prefeito comanda, ele mesmo, os trabalhos de salvamento. O governador está na Coréia, assinando contrato de cooperação industrial. Vai trazer a primeira fábrica de carros para a Bahia. Já foi informado do acidente e chega amanhã cedo. Repetindo: a Ladeira da Montanha veio abaixo com mais de cinqüenta vítimas fatais!”. Araçá procura lembrar: A Ladeira da Montanha é… O rádio ajuda: “O local é conhecido como zona de baixo meretrício, onde a principal atividade é a prostituição feminina”. Hoje, Sábado, as casas certamente estavam lotadas, todos no pecado da perdição. Será que alguém se salva? — O rádio respondeu: “Todas as guarnições do Corpo de Bombeiros estão no local. O trabalho é dificultado pela escuridão. O tráfego está interrompido…”.

            O porteiro não conseguiu dormir, coração acelerado. Bebeu dois copos de água; queria misturar com açúcar, não tinha açúcar. Chegou Gustavo, filho de Marli do 504.

— Que chuva!

— Pior foi o estrago da chuva.  A Ladeira da Montanha desabou! — informou o porteiro.

— A Ladeira da Montanha, lá na Praça Castro Alves? Puta merda! E aí?

— Mais de cinqüenta pessoas soterradas. É a previsão por baixo. Já pensou, morrer soterrado?

— O que vai ter de gente nu, em plena transa…

Josesus, do décimo oitavo, retornava do culto, bíblia debaixo do braço. O frio o deixava menor ainda.

— É tempo dela mesmo, seu Araçá. Chuva é vida. Sabe de que precisamos? Orar mais! O povo está desembestado. Cristo não aprova o andamento das coisas.

(Josesus era comerciante. Vendia de tudo, de calcinha a caçarola. As coisas piorando, o comércio minguando. Vendeu uma loja para pagar dívidas. Pensou estar capitalizado, mas as vendas continuaram caindo. Vendeu mais duas lojas. Passou a freqüentar uma igreja evangélica. Cabisbaixo, como todos que buscam refúgio espiritual para problemas materiais. Gelou quando o pastor orou: “Aqui, temos pessoas que foram ricas, tiveram dinheiro e poder! Hoje buscam a proteção de Cristo para se desapegar das coisas materiais!”. — Referia-se a ele? Procurou esconder-se. O pastor o fitou… “Procuram de todas as formas esconder o fracasso. A família é a última a saber; continuam na mesma vida, gastando, alheios à nova realidade. O chefe da família sofre sozinho, sem coragem de falar que o dinheiro acabou; impotente, pois não dispõe de meios para reverter a situação. Sei que isso aconteceu com muitos de vocês. Não foi mesmo?”.

O pastor olhou os fiéis… Um deles levantou a mão.

— As palavras do pastor provam que Cristo está entre nós. Essa foi a minha história!

Josesus temia que o pastor descobrisse a sua, dele, história. Nem a mulher sabia que estava ali, na igreja. Nunca mais perdeu reunião. Fez amizades que o ajudaram a vencer o drama da família desfeita — a própria mulher o abandonou, desacostumada com vacas magras.  Era esse mesmo Josesus que voltava do culto).

— Quero ver quando você vai lá… — questiona pela enésima vez. — Vai se sentir tão bem!…

—Seu Jesus, aconteceu uma tragédia.  A Ladeira da Montanha…

— Cruz credo! Não fale o nome desse lugar. Fico todo arrepiado; não tem outro nome? Que aconteceu com essa ladeira? Não precisa falar o nome. — Caiu. — Quem caiu? — A ladeira; o senhor não quer que diga o nome. — A ladeira onde ficam as casas de prostituição? Caiu como? Uma casa só? — A ladeira toda! Ainda comeu um pedaço da Praça Castro Alves. — Lugar de perdição, também. Quem disse? — O rádio, em edição extraordinária. — Desabou tudo? Não ficou nada? — Nada, mesmo. Até a Praça Castro Alves. — Foi Cristo. Ali era lugar de perdição, tinha que acabar. — Que acabasse, mas sem mortes. Mais de cinqüenta! — cuidou de aumentar um pouco. — Cinqüenta pessoas? Impossível, Cristo não é vingativo. Tem certeza, seu Araçá? — Como dois e dois são cinco. — Então é mentira. — Juro pela fé em Deus. — Não faça isso! Não tome o nome do Senhor por coisas tão pequenas! — Desabou mesmo. Mais de cinqüenta pessoas mortas. Até o governador já sabe. — O governador não foi buscar a fábrica de carros na Coréia? — Alguém avisou a ele. Deve ter sido a rede Globo, que tem gente no mundo todo. — Não é possível! Tem alguém orando pelos miseráveis? — Pelos pobres? — Conversar com o senhor é difícil, seu Araçá. — O senhor perguntou se tinha alguém orando pelos miseráveis. Miserável não é pobre? — Pobres somos todos nós! Rico é Cristo, dono de tudo. Miserável, referi-me às pessoas que foram soterradas. Que vão deixar muitos órfãos!

Rafael, ébrio, chegava. Desejou boa noite. Josesus murmurou “de novo?”, referindo-se à embriaguez costumeira. O bêbado não entendeu: — Só dei uma vez; se quiser duas vezes, lá vai: Boa noite! Dei novamente porque pediram. — Olha a brincadeira, seu Rafael — Araçá fala sério; o homem não se intimidou e provoca: — Já foi procurar o outro porteiro? Josué, o que trabalhava de noite e via assombração.

Josesus reagiu: — Vê assombração quem não reza e vive feito bicho.

— É comigo, é? Fique sabendo que não levanto sem fechar o corpo. E quando bebo peço perdão a Deus. E que a bebida nunca me faça mal.

Josesus sentiu-se ofendido: — Não blasfeme, ligando o nome de Deus com cachaça!

— Cachaça não: cerveja. Só bebo cerveja.

— Álcool do mesmo jeito. Respeite o lugar onde mora com os filhos.

— Já estão todos grandes. Sou até avô!

— Respeite então os netos. Aliás, respeite você mesmo, como ser humano.

— Respeito mesmo! Nunca me xingo, nunca me bato. Quer o que mais?

Araçá informa: — Seu Rafael, já sabe da tragédia?

— Perdeu; dois a um, mas é assim mesmo. Ainda se classifica em primeiro lugar. Por isso estou bebendo, de raiva! Igual à seleção de setenta nunca mais!

— A tragédia foi outra. A maior que já aconteceu na Bahia.

— Oxente! Não vai mais ter a fábrica de carros?

— A fábrica o governador foi buscar na Coréia.

— Deve gastar um dinheirão para trazer uma fábrica montada. E quem vai operar?

— Meu amigo, bote os pés no chão.

— Tem mais de dois? Se tiver, diga que eu boto. — Rafael olha os pés. — Virgem! Me sujei todo. A mulher não vai querer lavar o barro do meu sapato. E a fábrica, vem mesmo?

Josesus pede licença para retirar-se. — Vou orar. Cristo é tão bom! Não vai desamparar os que ficaram sem pai. — Rafael completa na sua embriaguez: — E sem mãe. A minha, morreu há mais de dez anos!

Alguém chama o elevador. O veículo sobe. Rafael assusta-se. — Que diabo é isso? Será o porteiro assombrado? Reze pela alma dele, Araçá. — O elevador inicia a viagem de volta. A porta abre, aparece Julinho Pontes. Josesus, o evangélico, fala baixinho “primeiro foi o bêbado; agora o comunista…”. Rafael não entendeu: — Bêbado posso ser; comunista não! Comunista come fígado de menino. Eu como outras coisas.

Julinho Pontes, comunista desde os anos setenta, quando líder estudantil no auge da ditadura militar, sente-se ofendido: — O que tem o comunismo? É uma doutrina igual ao capitalismo. Vai dominar o mundo na próxima década e acabar as desigualdades sociais.

Rafael provoca: — Que vai ser melhor, vai; pior não pode; mas não acha a próxima década muito cedo?

— De fato, para mudança tão grande uma década é pouco tempo; mas, os movimentos sociais não obedecem ao calendário histórico. Acontecem como um processo! O processo de conscientização das massas trabalhadoras se iniciou com a revolução industrial. Entenderam?

Rafael continua provocando: — No comunismo ninguém é dono. O Estado manda e desmanda, não é seu comunista?

— Me chame de Júlio. A repressão existe, travestida na falsa democracia. O senhor bebe, mas não perde a razão.

— Seja franco, seu Julinho: Comunista come fígado de menino mesmo?

— São crendices vindas de quem não quer mudanças. Garanto que, até o final da próxima década, o mundo vai estar bem melhor.

Josesus, impaciente, espera o elevador: — Que elevador pirracento! Quer que eu ouça essas coisas… — O senhor é contra, seu Jesus?, pergunta Julinho. — Seu moço, sou cristão. Acredito em Deus, portanto não posso gostar do comunismo.

— Assim como adotou o cristianismo pode aderir à doutrina comunista. Basta conhecer. Tenho bons livros em casa, quer? Não precisa nem ler o Capital, de início.

— Cruz credo! Deus me livre!

— Pode iniciar por um ensaio que mostre as diferenças entre o capitalismo e o comunismo.

Josesus cuidou de cortar conversa… — Vou indo, fazer minhas orações.

Araçá arruma os papéis. Admira a propaganda de uma loja de eletrodomésticos. “Ainda vou ter um rádio desses”. Lembrou da tragédia. — O senhor já sabe da montanha, seu Julinho? Foi a maior desgraça até hoje!

— Agora está lendo a bíblia? Eu li quando ainda era garoto. É uma passagem muito bonita, o sermão da montanha.

— Desde aquele tempo já era previsto acontecer?

— Não sei, não; mas, essa passagem é bonita. Os sermões mais inteligentes de toda a pregação de Cristo.

— O senhor não é comunista? Comunista lê a bíblia?

— Li antes de ser comunista. Temos a obrigação de conhecer as alternativas para escolher melhor. Entendeu? O sermão da montanha é uma pregação de Cristo aos discípulos, parece; não tenho certeza.

— Então estamos falando de coisas diferentes. Perguntei se o senhor já sabia da tragédia da Montanha.

— Acabei de dizer o que foi o sermão da montanha.

— Eu falei da tragédia da ladeira da Montanha.

— Não existe essa passagem na bíblia.

— Não foi na bíblia; aconteceu lá, na Ladeira da Montanha, perto da Praça Castro Alves.

— Você não se explicou. Estou raciocinando em função das leituras que fiz da bíblia antes de ser comunista. O que aconteceu na Montanha, ou seja, na ladeira?

— Arriou. Caiu, desabou.

— Quem lhe disse? Verdade mesmo?

— O rádio não iria mentir. Passou agora também no noticiário da televisão. Mais de cinqüenta pessoas morreram.

— Meu Jesus, tende piedade!

— O senhor não é comunista?

— A emoção às vezes trai. Falei da boca para fora. Vou até lá.

— Nessa chuva? A cidade está cheia de água e sem transportes. Se o senhor tivesse carro…

— Não tenho e nem quero ter! Não consumo o maior símbolo do capitalismo. Carro de jeito nenhum! Vou de coletivo, apesar de péssimo. Nos países comunistas o transporte coletivo é eficiente. De graça e sem fins lucrativos. Com segurança, regularidade, conforto e modicidade nas tarifas. Quero dizer: O transporte coletivo é de graça, mas eficiente. Ninguém passa horas esperando carro. O sistema é rotativo. Se uma seção está sobrecarregada, recebe auxílio de outras onde o movimento é menor. Não existe apropriação privada. Entendeu?

— E pode?

— Claro! A partir do momento em que não existem donos das linhas.

— Linha de que, seu Julinho?

— Estou falando de transportes coletivos, o comunismo como referência, entendeu? O Estado é, representando a sociedade, dono dos transportes coletivos. No Brasil, o transporte é coletivo porque é acessível a todos, basta ter dinheiro; mas a propriedade é particular. Entendeu? No comunismo o transporte é coletivo mesmo! O dono das empresas é o Estado. Os ônibus e os trens pertencem a todos. — Alguns segundos para Araçá raciocinar… — Entendeu, seu Araçá?

— Entendi. Quer dizer que no comunismo eu seria dono de uma empresa de ônibus?

— Em tese, meu amigo. Em tese, quer dizer, na teoria.

— Agora foi que deu… Posso ser dono na teoria?

Julinho Pontes alisa os parcos cabelos… — No comunismo você não seria dono de um ônibus porque lá ninguém é dono de nada.

— Lá aonde, seu Julinho? O comunismo fica aonde?

— Na cabeça dos homens livres e de pensamentos igualitários. Está espalhado pelo planeta. Aqui mesmo, no Brasil, existe o comunismo. Aliás, não existe o comunismo; existem os comunistas, como eu. Como talvez você, num amanhã breve.

Araçá conduz ao lado prático: — Voltando ao ônibus, seu Julinho, no comunismo posso ou não posso ser dono de um?

— Impossível! Lá não existe propriedade privada. Tudo é do Estado. Os transportes coletivos, ou seja, os ônibus, pertencem ao governo. Uma pessoa isolada não pode ser dona de nada.

— Agora fiquei triste. Queria ser dono de um ônibus; só um.

— Tem um porém, amigo: no comunismo ninguém paga passagem de ônibus!

Araçá sorri. Esse bicho é bom mesmo. Julinho orgulha-se do convencimento: — É o destino da humanidade! Breve o mundo vai comungar o comunismo — sonha. — Comungar é maneira de falar. Significa aceitar e gostar.

— O senhor já foi lá?

— Ainda estou me preparando. Vou me realizar quando vestir a calça cinza surrada e colocar aquele gorro que todos na Rússia usam. Depois posso até morrer. Por enquanto, vou juntando adeptos para a grande mudança. Viva o comunismo!

— Seu Julinho, que hora é essa? Mais de doze da noite! O povo está dormindo. Se gritar, posso perder o emprego.

— No comunismo você será empregado do Estado. Produzirá o suficiente para seu sustento. O que sobrar, o excedente, em vez de ser apropriado pela iniciativa privada, passa a ser propriedade do Estado, para que este distribua entre aqueles que não produzem o suficiente.

— Sendo vigia eu produzo?

— No comunismo todo trabalho é socialmente importante; tem uma função social a cumprir. O médico tem a mesma função social que o seu trabalho como vigia.

— Aí também é demais, seu Julinho. Um vigia igual a um médico?

— Aliás, no comunismo você não trabalharia como vigia porque não existe ladrão. — Virgem do céu! Vou perder meu emprego, preocupa-se Araçá. — Pelo contrário; o Estado garantiria outro trabalho melhor e mais gratificante. Quem sabe, até numa grande plantation de cana-de-açúcar. São os assentamentos e as fazendas coletivas que o Estado é detentor.

— É o quê?

— Detentor; quer dizer dono. Lá todos trabalham, se alimentam, vestem e estudam com o produto do seu suor. Entendeu?

— Entendi, seu Julinho. Esse comunismo vai chegar quando?

— Mais cedo do que se espera. Você será um grande camarada. Vai morrer e viver pelo comunismo, não é mesmo?

                                               ***

             O sol rompeu a barra do dia. O rádio, a cada hora, informava em edição extraordinária. Tanta edição extraordinária? Todo mundo já sabe o que aconteceu… O locutor insistia em trazer mais informações: “E atenção, muita atenção! As últimas notícias do acidente que vitimou a conhecida Ladeira da Montanha”. Parece até que a ladeira é gente… “De acordo com estimativas estão desaparecidas quase cem pessoas! A remoção do grande volume de entulhos é dificultada pelas chuvas. Existe perigo de mais desabamentos, inclusive da Praça Castro Alves, o grande palco do carnaval da Bahia!”. Pediu a atenção novamente: “O prefeito de Salvador neste momento chega ao local do crime!”.         — E foi crime? — O locutor cuidou de corrigir: “Desculpem: ao local do acidente. Chove muito na área. É grande o perigo de novos desabamentos. Vamos tentar conversar com o prefeito”. Araçá reprovou: “Conversar para que, depois de morrer tanta gente?”. O rádio retoma a palavra: “Pedimos licença para desligar nossos equipamentos. Existe perigo de curto-circuito por conta da fiação completamente encharcada. E atenção, senhoras e senhores! Está desabando a outra parte da Ladeira da Montanha! Tudo indica que a Praça Castro Alves, que é do povo, vai desaparecer para sempre. Atenção Bahia, Atenção Brasil! A Praça Castro Alves, o grande palco do carnaval do Brasil, está desaparecendo!”. — Parece Galvão Bueno; será que saiu da Globo pra transmitir a tragédia? — O locutor continua: “Socorro, governador! Mande todas as forças para cá. Chame a Odebrecht e a OAS, duas das maiores empresas do Brasil, orgulho da Bahia! Venham salvar a Praça Castro Alves!”. Araçá levanta-se… Galvão Bueno nenhum! Ele é maluco…

A cidade desperta. Jonas Arapiraca, paramentado, parte  para a caminhada matinal: — Vou indo, porteiro. Já passou do horário.

— O senhor é maluco, seu Jonas? Sair com tanta chuva.

— Me chamou de maluco?

— Maluca é a chuva. Parece que está doida. Esse rádio não me deixou dormir a noite toda. Tomara que acabe logo a bateria dele.

— Está maluco? O senhor é quem liga o rádio. E se liga, pode desligar.

— Como desligar, depois da desgraceira da Montanha? A Ladeira da Montanha desabou; morreram mais de cem pessoas! Foi o que o rádio falou. Disse mais: a Praça Castro Alves também veio ao chão. Parece que tinha muita gente lá. Não é a praça do carnaval?

— Mas não é época de carnaval. Fora de época é micareta. Salvador não tem micareta. Que idéia!

— O senhor vai sair?

— Vou fazer minha caminhada. Tenho medo de infarto.

— Nessa escuridão? Nessa chuva? Nessa trovoada? O senhor trabalha na Odebrecht ou na OAS?  O rádio está chamando para ajudar a retirar o entulho. É tanto que pode derrubar até o Mercado Modelo.

— Impossível! Para chegar ao Mercado Modelo primeiro vem o Elevador Lacerda.

— Esse mesmo! Parece que caiu.

— O Elevador Lacerda?

— Lacerda, sim. Parece que caiu. Se Deus não tiver pena… Caetano vai aparecer por lá?

— Caetano Veloso deve estar em São Paulo, no Rio ou em outro lugar longe daqui.

— Ele não é dono da Praça Castro Alves?

— A praça é do povo. Nem do povo é; é do município, da prefeitura.

— Esse mesmo, o dono, o prefeito, já chegou lá. Chegou cedo, ainda de pijama. O locutor correu pra falar com ele. Foi quando desabou o outro lado da ladeira com a praça. O senhor ainda vai sair?

— Vou, sim; está maluco. Não diz coisa com coisa.

O sol desabrochou. O barulho de liquidificadores preparando sucos e vitaminas informava: os trabalhadores já saíam ao trabalho. Do elevador apareceu Rogério Santos, do 304, encarregado na central de manutenção do Pólo Petroquímico de Camaçari. Fechou devagar a porta do elevador; mesmo assim fez barulho. Indignou-se: — Já pedi ao síndico que providenciasse outra mola. Essa batida incomoda até o último andar.

— Uma porta é quase o preço do elevador — respondeu Araçá.

— Não precisa trocar a porta; apenas a mola. Pode até tirar a mola do terceiro andar, onde moro.

— O senhor aceita; e os outros moradores do andar?

Santos dirigiu-se à portaria principal, onde tomaria o transporte. Araçá o interpela: — Que mal pergunte, seu Santos, o que leva nessa caçola? Desculpe; nessa sacola?

— Por que quer saber? Carrego minhas ferramentas.

— Alicate, chave de fenda, fita isolante? O senhor é eletricista?

— Quer matar a curiosidade? — Santos despejou o conteúdo da sacola. Caiu logo o telefone celular. — O senhor tem celular? Deve ser rico; celular é caro. — Santos revirou outras coisas: — Mate a curiosidade… Caneta, bloco de anotações, uma camisinha…

— O senhor não tem medo de andar com essa camisinha? Se sua mulher souber?

— Foi ela que me deu de presente.

— Foi mesmo? Esse pessoal de São Paulo é adiantado mesmo. E o guarda-chuva? Vou dar um conselho: providencie um guarda-chuva. Vai ter que usar; está chovendo. E se passar perto da Ladeira da Montanha, adeus Amélia! Nem camisinha nem telefone celular. Estou preocupado.

— Desde quando sou motivo de preocupação para o senhor?

— O senhor, não; a Ladeira da Montanha. Essa camisinha não era para ir lá? Desista. A Ladeira caiu. O senhor deu a maior sorte. Se fosse lá ontem, teria morrido debaixo de barro e pedra.

— Meu amigo, não sei nem onde fica essa ladeira.

— E a camisinha? Acha que acredito que ia usar em casa, com sua mulher?

Santos saiu expelindo fogo pelas narinas, de raiva. Araçá, quieto, impressionado com o diálogo. Quem diria… Seu Santos do 304 com rapariga na Ladeira da Montanha…

Desceu Paulo Miranda, do 901, conduzindo o cachorro pela coleira: — Vamos, já estamos atrasados. Bom dia, seu Araçá. — Bom para uns e mau para outros, responde o porteiro. — Que aconteceu, interroga o condômino. — A Ladeira da Montanha. Seu Santos, do 304, ia para lá ontem. Desistiu porque sentiu dor de dente. Viveu novamente. A casa aonde ele ia, lá na Ladeira da Montanha, caiu.

— Aquelas casas são mal conservadas. O governo vai recuperar como recuperou o Pelourinho.

— Vai recuperar, não.

— Está desconfiando? A verba chega até o final do ano.

— Recupera mais não. A ladeira veio abaixo. A Praça Castro Alves, e, parece, o Elevador Lacerda também. Mais de cem mortos. Se seu Santos tivesse ido, seriam cento e um. Não sei onde vão enterrar tanta gente.

O cachorrinho puxou a corrente, arrastou o dono até o gramado. Levantou a perna, fez xixi. Abaixou-se, fez cocô. Adiante, Paulo Miranda encontrou Zé Carlos Pereira… — Zé,  parece que a cidade está enlutada.

— De luto está todo dia. O povo vive na miséria, passando fome. O desemprego está como nunca esteve. Sem aumento há mais de cinco anos. Luto é pouco. Está todo mundo morto. Só falta enterrar.

— Amigo, é sério. Morreram mais de cem pessoas na Montanha. A ladeira desabou toda, com um pedaço da Praça Castro Alves. Parece que o elevador Lacerda caiu também. Morreu um rapaz do terceiro andar, me disse o porteiro. O rádio passou a noite falando do acidente. Como não ouço rádio…

José Carlos Pereira correu a informar-se com Araçá. — Uma desgraceira, seu Zé Carlos. Morreram mais de cem! Só de entulho, mil e tantas caçambas! Morreu até gente do prédio. Parece que era do terceiro andar, não sei bem.

Julinho comunista sai do elevador. Os olhos de Araçá brilham ao ver o comunista… — Não passe perto da Ladeira da Montanha. Mais de cem mortos! Aliás, cento e uma pessoas incluindo um rapaz do prédio.

— No comunismo essa tragédia não aconteceria. O Estado controla tudo, até situações de eminente perigo público. Breve o comunismo chega ao Brasil. — vaticina o comunista. No portão encontrou Carlos Vilaça. — De arrombar, Vilaça. É um país de irresponsáveis. Derrubaram a Ladeira da Montanha.

— Quem derrubou?

— Pode ter sido até atentado. A Castro Alves, a praça do povo, virou pó. Aliás, nunca foi do povo; serve para exercício da demagogia capitalista: o carnaval. A festa que cega, ensurdece e endoidece o povo.

— O povo merece um pouco de diversão, Julinho.

— O povo gosta mesmo é de circo. Bancando ele mesmo o palhaço.

— É verdade o acidente?

— Até o Elevador Lacerda, dizem, caiu. Sabe o que acho? — Traz o amigo para perto de si — Pode ter sido atentado terrorista.

— Alguém assumiu a autoria? Terá sido o partido?

— Não acredito. Se bem que cada célula é independente, inclusive nas ações. Terá sido ato terrorista? De repente os inimigos dos americanos resolveram se vingar. Existe parceiro político mais incondicional aos americanos que o Brasil? É a história de atirar nos ovos de um para pegar na boca do outro.

— Então pode ter sido ato terrorista mesmo.

— Não espalhe. Parede tem ouvidos.

Glória, 1.302, descia ao trabalho. Funcionária pública, dividia-se entre o emprego e os afazeres domésticos. Vigiava o filho dia e noite com medo que entrasse no vício.

— Esse condomínio já foi bom. Agora só tem vício. Viu que horas Diego chegou ontem? Amizade ruim bota um na perdição. Sou pai e mãe ao mesmo tempo, tenho que trazer em corda curta.

Araçá quis falar: Dona Glória, a senhora… — Se for dinheiro emprestado, não tenho. É sobre o Diego?

— Coisa pior, dona Glória. Seu filho é um santo.

— O que teve ele?

— Foi a Ladeira da Montanha.

— Ele foi? Meu Deus, onde eu errei? Meu filho no baixo meretrício! Não diga que é normal. Não criei filho para sair pecando por aí. Foi com quem? Levou pelo menos camisinha?

— Não foi ele, já disse.

— Amizade ruim dá nisso. Pior é ser a doença incurável; só se manifesta daqui a dez, quinze anos. Ele vai me explicar tudo direito.

Glória respondeu ao bom dia de Gildete, que queria conversa: — Está com a fisionomia abatida. Algum problema, Glória?

— Filho só dá dor de cabeça. Soube agora que meu filho foi para a Ladeira da Montanha.

— Foi mesmo? Não é possível! Quantos anos ele tinha?

— Tem dezessete anos. Não sei a quem puxou.

— Coitada de você, amiga…

Glória partiu de ônibus para Itapuã. Gildete permaneceu no playground dos fundos enquanto seu pequeno animal fazia xixi: “Não esqueça, primeiro o xixi; depois o totôzinho”. O animal fez xixi na brita, resto de reforma de algum apartamento. Depois, rápido ao monte de areia grossa onde fez cocô. A mulher exigiu mais: — Não vai enterrar? — O animal espiou o ambiente, não deu atenção. A mulher insistiu: — Não vai enterrar? — O animal, cavando em volta, jogou areia no toletinho. A mulher, satisfeitíssima. — Agora venha para eu dar um cheiro. — Pegou o animal, beijou longamente na barriga: — Toda vez que fizer assim ganha um cheiro no pipi.

Edna saiu do elevador apressada. Fazia transporte escolar como meio de vida. — Estou atrasada, Gildete; dormi pouco; acompanhava o noticiário. A Ladeira da Montanha desabou. Vai morrer muita gente. Só de casa de prostituição foram soterradas mais de dez. Parece que morreu um rapaz do terceiro andar.

— Meu Deus, por isso Glória estava chorando. O filho dela foi ontem para a Ladeira da Montanha. Deve ter morrido.

— Ela mora no terceiro andar?

— No décimo-terceiro.

— Então já são duas pessoas do condomínio. Vai aparecer mais gente. Era sábado, dia de movimento.

A mulher embarca. Liga a ignição, o arranque desliza. Depois chora, querendo pegar. Duas tentativas e finalmente a bateria descarrega. — Nunca mais compro carro a álcool. No tempo frio essa porcaria não pega. Agora só no empurrão. — Pede ajuda ao porteiro. Chega mais gente para ajudar e o Fusquinha vermelho acorda da noite de frio. A mulher acelera. Agradece. Chama a atenção de Zé Carlos Pereira: — Zé, já sabe da Montanha? Uma tristeza; parece castigo. Pelo visto morreu muita gente. Daqui do prédio já foram dois. Um, era do terceiro andar; não sei o nome. Dizem até que era bicha.

— Bicha no baixo meretrício? E o outro?

— O filho de Glória do décimo terceiro. Não tinha dezoito anos. A mãe saiu louca da vida. Foi buscar o corpo.

Josesus dá bom dia. Araçá não responde. — Não ouviu meu bom dia, seu Araçá?

— Esse rádio a noite toda… O locutor é teimoso. Desligava, ele ligava em edição extraordinária. Estou com o ouvido que não agüento.

— Fala sério, porteiro?

— A cabeça estourando. Além do porteiro assombrado, agora apareceu esse locutor. Para mim foi ele que causou esse acidente na Montanha. Só pra falar a noite toda.

— Você está bem, porteiro?

— Não estou melhor porque não dormi. Morreu mais gente.

— Quem lhe disse?

— O locutor do rádio. Toda hora me acordava. Parece que morreu até freira.

— Freira, irmã de caridade?

— Essa mesma. Morreu uma com roupa preta.

— Fazia visita de caridade?

— Uma rapariga se vestia igual à freira. O apelido dela era Irmã.

— Cruz credo, que profanação!

Josesus quis sair, Araçá o conteve: — Seu Jesus, já morreram dois daqui, soterrados. Um, é do terceiro andar, não sei o nome; o outro, é filho de dona Glória. A mãe saiu se acabando de chorar. Acho que foi buscar o corpo.

— Cristo, tende piedade dessas famílias.

Vavá Amorim deixou o elevador de serviço. Engenheiro de formação e flamenguista de coração, jornal de esportes debaixo do braço, provocou: — Cadê seu Bahia, Araçá?

— Bahia num luto desses?

— Perdeu novamente e está de luto?

— Quem está de luto é a cidade toda. O senhor não soube? A Ladeira da Montanha…

— Conheço bem. Quando era rapazinho andei por lá.

— Se fosse ontem, morria. A Ladeira caiu.

— Como?

— Caindo. Já são mais de cem mortes. Aliás, cento e três com os dois moradores daqui e uma freira.

— Uma freira? Morava aqui?

— A freira era de uma igreja da cidade. Fazia visita de caridade.

— E os daqui?

— Um morador do terceiro andar e um rapaz do décimo terceiro, filho de dona Glória.

Vavá apanhou a pasta e correu, paralítico de uma perna, ao ônibus da empresa. Na pressa, esqueceu o jornal de esportes. Lúcia aparece no playground. — Meu sobrinho não chegou ainda. Saiu com uns amigos; até agora não retornou. Saiu para comemorar um aniversário e…

— Quantos anos ele tinha, dona Lúcia? — Antes da resposta Araçá arregala os olhos — Quantos anos, dona Lúcia? Será que foi ele?

— Foi ele o quê? Tinha dezessete para dezoito anos.

— Então foi ele. Seu sobrinho morreu!

— Está maluco? O menino foi comemorar um aniversário.

— Foi ele, sim! A senhora sabe que a Ladeira da Montanha veio abaixo e matou mais de cem pessoas? Entre os mortos, um é morador do terceiro andar; outro é um rapaz de dezessete anos. A senhora mora em que andar? Foi ele mesmo! Pode se preparar para ir buscar o corpo.

A mulher foi ao chão. Francisco Souza, 1002, a socorreu: — Ajude aqui, porteiro! A mulher está se sentindo mal. Será que está grávida?

— Foi o susto. — responde Araçá. — O sobrinho dela morreu na Montanha. Parece que já são três só daqui do condomínio.

A conversa ganhou pernas: três moradores vitimados. O síndico convocou reunião extraordinária com a seguinte pauta: “Discussão do acidente da Ladeira da Montanha. Identificação das três pessoas do condomínio sinistradas no acidente. O que ocorrer. Horário: 20h30min com metade mais um dos condôminos. 21h00min com qualquer número”. A ata foi aberta às vinte e uma horas com qualquer número de pessoas. O próprio síndico lavrou a ata, iniciou, finalizou e assinou, só ele, com o juramento: “Nunca mais convoco reunião nesse condomínio. Ninguém comparece! Aliás, vou convocar mais uma: para entregar o cargo, irrevogavelmente”.

***

Apareceu Julinho comunista para a lavagem cerebral diária. Seu Julinho, o senhor demorou hoje. Estava assistindo o noticiário da Montanha? — perguntou Araçá.

— Quem não se salvou não se salva mais; os escombros estão molhados, não há condição de respiração. Assistia o noticiário político. A preocupação hoje é a fome.

— A fome que engole montanhas. Não é assim que está na bíblia?

— Na bíblia está escrito que a fé remove montanhas.

— Desculpe, seu Julinho. E o comunismo?

— O assunto do momento é o projeto do senador ACM da Bahia. Quer acabar a fome no Brasil.

— Ele é comunista?

— Até agora, não; parece que vai se juntar ao Lula do PT. A primeira reunião será amanhã.

— É reunião para distribuir comida?

— Que pobreza! Primeiro a questão macroeconômica, entendeu? — Araçá não responde, atrapalhando o discurso egocêntrico de Julinho, que insiste: — Entendeu? Primeiro a questão maior. Estão falando na criação de um programa de fome zero. Depois vão entrar nos detalhes. Aliás, os detalhes não importam. Só as grandes questões interessam.

— Distribuir comida é detalhe?

— Dos menores. O importante é abrir a discussão a nível nacional e internacional. Provocar remorso nos países ricos, além de promover o Lula a estadista. Ganhou ponto o senador Magalhães ao abrir a questão. É uma união complicada.

— Ele é comunista?
— Está maluco? O homem é o maior líder da direita. Não é comunista, mas pode ocorrer uma adesão, entendeu?

— E esse comunista vem quando?

— O comunismo? Quando o povo decidir. Pegar das armas, depor o governo que está aí.

— Depor como, seu Julinho?

— Tirar do poder usando da força, das armas. Entendeu?

— Não, senhor.

— A culpa não é sua. O aprendizado é um processo de aglutinação. As informações vão chegando aos poucos. Breve você será um comunista. Quando, só Deus sabe.

— Comunista acredita em Deus?

— Claro que não! É a maneira de falar.

A tragédia da Montanha foi a pior do gênero em Salvador. As chuvas intermitentes sempre trazem desabamentos e mortes. As áreas de risco são mapeadas e apresentadas à imprensa. Administradores públicos mostram projetos e obras que prepararão a cidade para o período de chuvas. A tragédia da Montanha chamou a atenção pelo inusitado. Ninguém pensaria, jamais, que a ladeira secular fosse área de risco. Nem o próprio prefeito.

A imprensa acompanhou a desobstrução das pistas. Foram resgatados corpos nas mais estranhas situações. Um soldado da guarnição de socorro descobriu o corpo de uma mulher parecidíssima com a sua própria. Largou tudo e correu a telefonar. Voltou chorando; era ela mesma. A imprensa noticiou o caso de uma senhora da alta sociedade que mantinha vida dupla. Sob a luz do dia era madame; nas trevas, transformava-se numa das prostitutas mais requisitadas da zona. Tentaram abafar, mas o caso ganhou manchete nacional. O marido, empresário e candidato a político, reclusou-se num mosteiro nas montanhas da Chapada Diamantina. Mudou de nome e hoje é monge.

Jornais publicaram fotos da empregada e do patrão, ramo da construção civil. Ele foi deixá-la em casa, cujo percurso incluía a Avenida do Contorno, parte baixa da sinistrada ladeira. Foram soterrados dentro do carro; o destino os uniu para sempre num momento dantesco. A viúva não acreditava na inocência do marido. “Aquela vagabunda era rapariga dele! Estão escondendo a verdade. Eles estavam quase nus dentro do carro”.

A verdade, só Deus sabe.

Chocaram as cenas desesperadas da mãe que se arrastou do interior da Bahia para reconhecer o corpo da única filha. Não entendia a razão da menina, dezoito anos, bonita, encontrar-se naquele fatídico lugar. “Veio para Salvador trabalhar e estudar. Escreveu dizendo que trabalhava como vendedora num shopping. Agora falam que ela morava nessa ladeira. Que vergonha!”.

Não relataremos outros casos para preservar a dignidade humana. Quantos aos mortos, não chegaram aos cem informados por Araçá. De ordem do síndico, porteiro Nivaldo, o mais letrado, aplicou pesquisa perguntando se alguém tivera irmão, pai, filho ou parente vitimado no acidente. A conclusão foi zero, graças a Deus. O resultado confirmou: Araçá vivia grave problema mental.