Um, leitor escreveu sobre o Livro:

 

Caríssimo amigo,

Acabo de ler, em duas sentadas, o seu livro O Legado da Loucura, e, duas coisas me chamaram a atenção: uma, acredito que o sonho de todo escritor é criar um estilo e ser reconhecido por ele. Posso afirmar que você chegou lá, somado aos dois primeiros que já li “A Santa do Pau-Oco” e “O Purgatório de Eduardo” é fácil reconhecer seu estilo, caracterizado principalmente por personagens à beira de um ataque de nervos. Todos estão prontos para a briga e respondem armados a qualquer palavra mal entendida, não importando a classe social, o credo ou a profissão que exerçam. Tanto faz se na cidade interiorana do primeiro livro, num delírio dantesco do segundo ou num inusitado velório deste último, todos estão por um fio. O que me faz pensar duas vezes antes de visitar Remanso.

Se o estilo vem sendo apurado, o que me agrada muito são as interpretações, entre os personagens, das falas alheias, criando um disse-me-disse que nos faz lembrar de uma brincadeira de infância chamada telefone sem fio, onde um dito ia sendo modificado à medida que passava de um ouvido a outro.

A segunda coisa que me chamou a atenção foi o enredo em si, a confusão em torno de um velório, já que, curiosamente, semana passada, numa mesa de bar, fazia um comentário sobre como achava interessante participar de qualquer evento social, seja ele um velório, aniversário, procissão, carnaval, festa de família, comício, passeata, etc. (imagina como esta opinião deu pano pra manga).

Enquanto lia, lembrei-me de um poema de Mário Quintana que nos remete a outro velório que agora transcrevo:

Tableau! Nunca se deve deixar um defunto sozinho. Ou, se o fizermos, é recomendável tossir discretamente antes de entrar de novo na sala. Uma noite em que eu estava a sós com uma dessas desconcertantes criaturas, acabei aborrecendo-me (pudera!) e fui beber qualquer coisa no bar mais próximo. Pois nem queira saber… Quando voltei, quando entrei inopinadamente na sala, estava ele sentado no caixão, comendo sofregamente uma das quatro velas que o ladeavam! E só Deus sabe o constrangimento em que nos vimos os dois, os nossos míseros gestos de desculpa e os sorrisos amarelos que trocamos…

Por fim, lembro também agora, de um outro poema passado neste ambiente mas, do João Cabral de Melo Neto, chamado “Funeral na Inglaterra”. Como vê, anda muito bem acompanhado.

Felicito pelo novo livro desejando futuras inspirações.

Grande abraço!

          O Legado da Loucura mostra a hipocrisia humana através do relato da vida de um demente, personagem principal da história, que, de repente, com sua morte, transforma-se no centro de uma comédia, que é a disputa por sua inusitada herança, flagrante da miséria e da hipocrisia. É uma história concretizada num país irreal chamado Brasil, onde mais vale um quinhão do poder que a serenidade para enfrentar o julgamento da posteridade.

Por se desenrolar em plena capital federal é uma pérola em situações surrealistas. Se não, onde um presidente de república, etilicamente perturbado, exigiria que seu avião, de última geração, aterrissasse e viesse buscá-lo diretamente no salão de festas de um edifício residencial, coincidentemente chamado Juscelino Kubistchek? A cena da chegada do mandatário maior, habilmente descrita por Astrogildo Miag, mostra o humor diluído em todo o livro:

“Finalmente, o presidente pisa o solo sagrado do salão de festas. Usa um boné combinando com a jaqueta safári na cor bege. É ovacionado intensamente. A emoção toma conta dos aduladores. De imediato, a autoridade é conduzida ao local reservado ao pronunciamento, que começa em tom bem emocionante. Apresenta-se como o protetor dos pobres, o único presidente que nasceu pobre e carregou água nas costas para não morrer de sede e de fome. E confessa: ‘Sim, minha gente, pela primeira vez, vou falar uma coisa que marcou a minha infância: eu também carregava água para vender e encher os banheiros e as privadas das casas dos ricos, pois naquele tempo não existia água encanada. Não existia nem luz! Eu é que estou iluminando e colocando água encanada nas casas de todos os pobres desta nação. É por isso que estão me caluniando, me chamando de corrupto!’”.

Como o Brasil é país do surreal, o fantástico do fantástico, onde tudo é possível, retrataria O Legado da Loucura uma história real? A melhor forma de averiguar é ler o livro.

       Palavras do autor

           O Brasil é um compêndio da história universal. Um pouco do que existe no mundo. O fantástico do fantástico, a exuberância da natureza avançando agressiva em busca da própria sobrevivência. — Como resistir a tanta violência se não através da violência? — O Homem agride; em represália, sofre as conseqüências da sua agressão. A natureza escarrando dengue nas metrópoles nacionais. A febre amarela rural invadindo as cidades. A tuberculose sorrateira, às escondidas, respondendo ao descaso com a saúde do povo, mata anualmente mais de cinco mil brasileiros. O bolo econômico crescendo, mas diminuindo a participação do trabalhador, conseqüência da degeneração educacional. Ganha mal e o futuro não lhe oferece perspectivas.

O Legado da Loucura é uma história concretizada num país irreal chamado Brasil, onde mais vale um quinhão do poder que a serenidade para enfrentar o julgamento da posteridade. A vida do personagem principal passaria despercebida se o destino não lhe criasse situações inusitadas pelo surrealismo. O poder não tem face e a tudo aproveita, até a desgraça de outrem. Poder não é apenas a força moral, econômica ou política que obriga à obediência; é associar o destino das pessoas à vida e ao destino do poderoso.

Foi o que aconteceu com José de Arimatéia Gusmão, o Zé Besta, personagem principal da história, um demente na capital federal ou em qualquer outra grande cidade do país. De repente, com a morte, transforma-se no centro de uma comédia, que é a disputa por sua inusitada herança, flagrante da miséria e da hipocrisia.

Embora prefira escrever sobre fatos, não sei se essa é uma histórica verídica. Como disse, o Brasil é o país do surreal, o fantástico do fantástico, onde tudo é possível. Até mesmo a existência desse legado, o da loucura.

  Prólogo

O Legado no Direito das Sucessões

           No Direito Civil brasileiro legado é disposição de última vontade, através de testamento, quando o testador, com o advento da sua morte, deixa para alguém uma ou mais coisas da sua herança. Não incide sobre um percentual ou sobre tantas partes dos bens do falecido; mas, sobre bens determinados, especificados e individualizados ainda em vida. Precisamente, é a disposição e a vontade do testador de deixar coisa certa e determinada,  benefício ou vantagem econômica para alguém, que pode até não ser herdeiro legal.

Pressupõe necessariamente duas pessoas: o legante ou autor da herança transmitida; e o legatário, pessoa que a recebe. Todas as coisas que possam ser negociadas e proveitosas ao legatário são possíveis de legação, como dinheiro, imóveis, títulos, ações, veículos, animais, etc. Como ninguém pode dispor e doar o que não tem, é essencial que os bens legados constituam patrimônio do legante por ocasião da sua morte.

O caso específico deste livro foge aos padrões. Não existe propriamente um testamento determinando legação. Sem contar que a loucura torna a pessoa incapaz para exercício de qualquer ato civil, inclusive fazer testamento e legar, a herança do falecido existe apenas na imaginação do escritor e dos personagens que dela querem tirar proveito.

  Início da história

           Abre a gaveta, revira papéis à procura do pente de cabelo. Mãos aos bolsos. Espia o chão, o canto, ao lado do tapete. Teria caído no cesto do lixo? Quero ver quem vai pagar, pensa alto. Alguém responde “quem vai pagar sou eu”. Assusta-se. É um homem jovem, moreno. A melhor postura é levantar a cabeça e empinar o nariz; nunca demonstrar medo. E assim faz: Pois não, que deseja? A resposta vem imediata: Estou procurando o 401. Falar com quem? Com o 401. O nome da pessoa? Já disse: com o 401! Sinto muito, não pode; o senhor não é morador. Mas vou subir, quero o 401. O senhor não é morador; para subir tem que avisar. Então avise! Como, se o senhor não sabe nem com quem vai falar? Sei, sim: vou para o 401. É o número do apartamento! Tem que falar o nome da pessoa. Amigo, vou para o 401; o nome é esse. Desculpe, mas, não pode subir. Vou subir, sim! Vou chamar o segurança. Segurança, aqui sou eu, besta. Besta é o senhor; tenha respeito! O senhor está em propriedade particular. É minha também, besta. Aqui o senhor não tem nada. Tenho mais que você, besta. Besta é o senhor! Vou mandar o segurança prender o senhor. Fugi agora, agora, besta.

O porteiro assusta-se. Fugiu de onde? De lá, besta. Por que tanto besta? Porque sou besta. E deixe de ser besta. Estou me zangando com o senhor; vou chamar a policia. A polícia, não, besta. Por que a polícia não? Estou armado, besta.

Seria assalto?

O porteiro pergunta, ao homem, o que quer. Novamente, besta? Quero falar com o 401. Diga o nome. Pelo amor de Deus, diga seu nome! Zé Besta, filho de Zilda. Filho de quem? Dona Zilda é sua mãe?

O porteiro comunica-se:

— Diz que é filho da senhora.

— Só tenho um filho e está longe, no exterior!

— Pois, está aqui um rapaz dizendo ser seu filho. Quer subir de qualquer jeito! E só me chama de besta. — O porteiro percebe a reação nervosa da mulher… — Dona Zilda, está se sentindo mal?

— Não, senhor, tudo bem. Como é o nome dele?

— Diz que se chama Zé Besta.

— Seu Beto porteiro não deixe esse homem subir! É maluco. Estava internado no HPAP.

— É seu filho, dona Zilda? Não disse que ele estava no exterior?

— Só Deus sabe por que falei isso. Pelo amor de Deus não deixe subir. Quando a loucura ataca, foge do hospital. Não deixe subir!  A última vez incendiou meu carro. O senhor lembra?

— O carro que pegou fogo? Mas, não foi o ladrão?

— Não ia dizer que fora meu filho. Por tudo na vida, não deixe subir!

Desligou o interfone.

O visitante impacienta-se. — Falou? Falou com o 401? Não está? Deve ter ligado errado. Quero subir.

— Não pode. Não tem ninguém em casa.

— Melhor, porque fico sozinho.

— Não pode subir. — Mas vou. — Não vai. — Vou. — Não vai. — Vou. — Não vai…

O diálogo continuou por longos minutos até que Zé Besta afastou-se, repetindo vou subir, vou subir, sim, vou subir…

Não subiu. Nunca subiu; mas, ficou morando naquele condomínio do edifício Juscelino Kubistchek, em Taguatinga, cidade satélite de Brasília, capital federal, trezentos mil habitantes, com feições comuns a qualquer edifício residencial de uma cidade grande. Também não voltou ao hospital. A loucura o encerrava em si mesmo, seu corpo era sua própria casa. Dormia na área térrea comum do edifício, ao lado das garagens, sobre papelões que lhe serviam de cama. Manhã cedo recolhia os pertences num surrão de náilon; ou seja, num saco de náilon, capacidade para sessenta quilos, desses de guardar e transportar feijão, arroz ou farinha. Transpassado ao ombro, o acompanhava a lugares só por ele conhecidos.

Quando a chuva resolvia perturbar-lhe o sono, acomodava-se numa tábua estendida sobre velho pneu automotivo; suspenso, livrava-se da água que ensopava o chão. Se o frio da noite brasiliense ultrapassasse o suportável, acomodava-se no primeiro veículo com porta não trancada — embora fechada. Manhã cedo, constatava-se a contravenção.

— Zé Besta entrou no meu carro! Não vi, mas sei pelo cheiro. Bote a cabeça aqui…

Era o cheiro nauseabundo de Zé Besta, coitado. Dias e dias sem banho e vestindo a mesma roupa. O corpo só sentia água quando o dono ganhava roupa nova. Sorrateiramente, sacola na mão, em algum lugar banhava-se e barbeava-se. Retornava renovado para mais algumas semanas na escuridão e na sujeira da loucura.

Às vezes, causava atrito entre moradores. Agostinho Maranhão, servidor concursado da Receita de Brasília, detestava Zé.

— Esse maluco não pode ficar aqui, em hipótese nenhuma! O pior doido é o doido manso. Quando a loucura ataca mete a faca em qualquer um.

— Calma, seu Agostinho. Doido também é filho de Deus.

— Estou me referindo ao doido. Entendeu? Ao doido! E não me peça calma, pois não estou nervoso. Não me peça calma! Da próxima vez vou descer o braço! Sabia que já estive internado? Vai me pedir calma novamente? Não me peça calma!

— De jeito nenhum! O senhor não está nervoso.

— Não estou mesmo não! Vou repetir: esse maluco ainda vai fazer uma besteira nesse prédio.

O interlocutor escapuliu sorrateiro para a rua, amedrontado ante a presença forte de Agostinho Maranhão.

Zé Besta tinha a quem recorrer. A mãe não o deixava passar fome. Cedo ainda, mandava-lhe café com pão; comia prazerosamente. Às vezes, quando atacado, lançava a vasilha do café ao pátio: “Não sou cachorro! Quero subir. Quero subir…”.

Não realizou sonho tão pequeno: subir ao apartamento da mãe, egressa da região cacaueira da Bahia. De família de posses, que viveu a época áurea da cultura, quando cinqüenta hectares da lavoura proporcionavam vida fausta e passeio anual pela Europa. Depois veio a vassoura de bruxa, dizimou os cacaueiros e trouxe aos agricultores dificuldades — para muitos, a miséria.

Zé Besta não tinha noção do tempo; dias, semanas ou meses na rotina. Levantava-se do papelão, ia à torneira externa, completava com água pequena lata, à guisa de caneco; e, atrás dos veículos, procedia a higiene matinal. Ninguém testemunhava tal higiene. Após, a irmã o chamava. “Zé! Tome o café!”. Não reagia. Silenciosamente, recebia a comida sem olhar o rosto da irmã. Se esta trouxesse alguma peça de roupa, oferecia: “Tome essa roupa limpa”. Recebia sem agradecer. Não falava se vestiria ou não; se resolvesse, apareceria tomado banho e vestindo a roupa nova. Talvez, na madrugada cerrada de Brasília — quando o frio afugenta os homens, veículos recolhem-se e até as almas dormem — mergulhasse em algum córrego cristalino entre as cidades satélites de Taguatinga, Samambaia e Ceilândia, para livrar o corpo da sujeira.

Uma vez ao ano perdia a noção das coisas. Acordava já urinando, ao lado mesmo da cama improvisada. Decidia tomar banho, nu, naquela torneira externa. Era um vexame.

— Zé Besta está tomando banho pelado na vista das mulheres! Vou embora desse prédio. — Queixava-se Agostinho Maranhão, o primeiro a levantar-se para levar o filho Júlio à escola e, dali, ao expediente no Plano Piloto[1].

— Ainda vou enxotar esse maluco! Se minha mulher o ver nu, vou dar uma surra. Não quero nem saber se é doido. Vou dar uma surra! Vou embora desse prédio a qualquer hora.

Um dia, Zé jogou o grande surrão de náilon nas costas e saiu — quem sabe, até para o banho quinzenal. Alheio ao mundo e aos veículos que subiam e desciam velozes foi atropelado em frente ao condomínio, na perigosa Avenida Samdu Norte, ao lado da Faculdade Projeção, quase no centro de Taguatinga.

Ouviu-se um frear brusco e uma pancada abafada. Nem um gemido. O porteiro Humberto dos Santos, conhecido como Beto porteiro, indagou ao zelador Carlomar, baiano de Santa Maria da Vitória, que batida fora aquela. Foi aqui perto, respondeu Carlomar. Os dois saíram. Quem ficaria na portaria, lembrou Beto; o zelador retornou e assumiu o posto. Beto atravessou o pátio, abriu o portão, rompeu a distância que o separava da Avenida Samdu Norte e deparou-se com a cena.

— Foi atropelamento! Parece que morreu!

O atropelador fugiu sem prestar socorro. Oliveira, piauiense de Oeiras, barraqueiro, há mais de dez anos vendendo doces, salgados, refrigerantes e outras bebidas ao lado do edifício, gritou…

— Vai embora sem dar socorro? Já anotei a placa, seu irresponsável!

O motorista nem ouviu. Engatou a primeira marcha, jogou direto a terceira, atravessou a faixa de pedestres sem parar e quase atropelou um transeunte. Oliveira ainda pediu ajuda ao policial do batalhão escolar que tirava serviço em frente à Faculdade.

— Policial, pega esse carro aí! Acabou de atropelar uma pessoa! Está fugindo sem dar socorro!

Quando o militar terminou de ouvir a história o veículo já dobrava para a grande Avenida Comercial Norte, mais de seis quilômetros de extensão, de onde tomaria o Pistão Norte, uma das saídas de Taguatinga para a grande capital federal.

Todos correram para ver quem era a vítima.

— Quem é, Oliveira?

Oliveira levantou a cabeça do rapaz…

— Não queiram nem saber…

— É conhecido? É morador daqui?

— Como se fosse.

— Mora em que apartamento?

— Em apartamento nenhum.

— Então não é morador.

— É o morador mais conhecido.

— Oliveira, pelo amor de Deus! É gente do prédio? Carlomar, venha me ajudar! Não posso ver sangue. — confessou Beto porteiro — Vou desmaiar…

E desmaiou mesmo.

Paulo Ribeiro, piauiense do 406, escrivão de polícia, olhos com lentes de fundo de garrafa, perguntou o que acontecia. Um ladrão que queria roubar o condomínio, responderam. E roubou? Parece que sim; mas foi pego. Levaram pra onde? Lincharam. Aqui no condomínio? Isso é atitude de animal! A justiça não deve ser feita com as próprias mãos. De tanto apanhar parece que morreu, informaram. Quem foi o responsável? Alguém filmou? Se filmou guarde a fita porque vou denunciar!

Carlomar, o zelador, apareceu com a vassoura na mão. Pra que essa vassoura, idiota! — perguntaram. Pra segurar o atropelador se ele quiser fugir, respondeu o rapaz. Chegou tarde, já fugiu!

Carlomar, ainda com a vassoura, foi interpelado por Paulo Ribeiro.

— Você participou do linchamento, não foi? Negue se puder! Ainda está com a arma do crime!

— Eu mesmo não, seu Paulo. Eu não! Que arma?

— A vassoura usada para abater a vítima. Será arrolado como co-autor. Vai informar o nome de todos que participaram.

— O rapaz fugiu, seu Paulo!

— Foi um só?

— Parece que eram dois.

— Vai ter que dizer os nomes e onde moram. Vou mandar prender você. Aliás, eu mesmo prendo; qualquer cidadão pode prender em flagrante delito. Esteja preso!

Carlomar chorou.

— Não fui eu. Não fui eu…

— E quem foi?

— Não conheço.

— E essa vassoura?

— É de lavar roupa.

— Lavar o quê?

— Lavar roupa do prédio.

— Você trabalha no prédio?

— Trabalho, sim, senhor.

— É lavador de roupas? Nunca vi isso. E lava roupa com vassoura?

— Lavo, não, senhor.

— Não acabou de dizer que a vassoura era para lavar roupa?

— É não! Vassoura é pra varrer o chão. Estava varrendo o corredor. Nem terminei. O senhor vai me prender?

— Vou livrar o flagrante porque sei onde encontrar você.

Carlomar agradeceu. Jurou por Deus não ter sido ele. Ainda aos soluços, encontrou sargento Jânio, da Polícia Militar, morador do prédio; branco, forte, cabeça raspada com máquina zero, orgulhoso de ser militar.

— Sargento, me acuda! Mataram um homem, o delegado está dizendo que fui eu!

— Mataram onde, paisano?

— Aí no asfalto. Está lá estirado. O delegado disse que fui eu.

— E foi você? De onde é esse delegado? Então fuja! Se não foi você, fuja. Se pegarem, até se explicar e contratar advogado já apanhou muito.

— Vou fugir como?

— Entre no meu carro e se abaixe. Depois procure lugar seguro para se esconder.

— Vou embora pra Bahia. Vou voltar pra Santa Maria da Vitória.

Carlomar esquivou-se para entrar no Monza vermelho do Sargento Jânio, que perdeu a paciência.

— Anda logo, paisano! Ninguém pode ver. O que estou fazendo é crime. Eu sou militar e estou dando fuga a criminoso!

— Não fui eu, sargento. Juro!

— Já disse: até você se explicar…

Carlomar não conseguia entrar no veículo. Jânio gritou:        — Larga essa vassoura, paisano! Pra que essa vassoura?

— O delegado disse que foi a arma do crime; não vou deixar aqui, não.

— Você matou mesmo?

— Deus me livre! Mas tenho medo do delegado provar que fui eu.

O veículo saiu cuspindo fogo. O zelador abaixado atrás, vassoura sobre o banco. Alguém levantou a mão, pediu que parasse o veículo. O Monza gemeu, mas atendeu à ordem do dono: imprimiu velocidade e obrigou todos a dar passagem. Carlomar apavorou-se.

— O que foi, Sargento? É o delegado?

— Vou me complicar por sua causa. Posso estar cometendo um crime.

Alguém chamou a polícia. Ouviram-se as sirenas intermitentes e os hotlaines de cinco camionetas cabina-dupla, e a polícia compareceu com suas viaturas moderníssimas, de última geração, capacitadas para tráfego até em estradas rurais, acompanhadas por seis motocicletas igualmente equipadas. O povo se assustou.

— Meu Deus, pra que tudo isso? É guerra?

Os policiais desembarcaram como tropa de elite, como de fato eram. Com os cassetetes invertidos no braço, cutucavam o povo enquanto pediam passagem. Os policiais motociclistas avançaram sobre os curiosos e ordenaram:

— Ninguém encosta para não modificar o local do crime até a perícia chegar!

As viaturas recém-adquiridas, que na semana anterior desfilaram pelas ruas do Distrito Federal, provando ao povo a preocupação do Governador com a segurança pública, mostravam os hotlaines grandes e escandalosos, vermelhos, amarelos e azuis, visíveis a quilômetros de distância. Os maliciosos comentavam não saber o objetivo de tantas luzes coloridas: se mostrar a presença policial ou alertar infratores e bandidos para a fuga.

Beto porteiro cruzou a entrada principal do prédio aos soluços. Alguém o interpelou:

— Por que tanto choro, seu Beto? Era parente do ladrão?

— Não era ladrão, não, seu Lúcio. Era pessoa boa, não incomodava ninguém. Uma vez ou outra é que fazia aquilo…

— Ainda tem coragem de defender ladrão? Esse povo é viciado. Rouba uma vez, gosta; não pára nunca mais!

Hélio Idálio, na portaria do prédio, cercou Beto de perguntas. — Mataram mesmo? Sabe quem foi? Chamou a polícia? Foram quantos tiros?

Beto não teve nem tempo de responder. Deparou-se com a irmã de Zé Besta, caneco e pão de sal nas mãos. Ao vê-la, chorou copiosamente. Assustou a mulher, que reagiu:

— Sai de mim! Ando cheia de assombração. — Beto soluçou mais ainda… — Sinto muito; muito mesmo… — Vá caçar o que fazer! Nunca lhe dei ousadia. Comigo não, violão… — O porteiro apiedava-se da moça; aconselhava. — Pelo amor de Deus, tenha calma. O mundo não se acabou. — Se continuar com ousadia vou chamar meu namorado. Aí você se explica a ele. — respondeu a irmã. Beto porteiro estendeu a mão em pêsames; a reação foi enérgica. — Não me toque! Queria que esse meu irmão não fosse maluco. Ia aprender a respeitar mulher dos outros!

Maria do Carmo caminhou ao pátio com o café e o pão, à procura do irmão. — Zé!… O café! Toma seu café. Hoje tem ovo e o pão está com manteiga!

Zé não respondeu, nem poderia; já partira. Ficou o corpo sujo na véspera do banho quinzenal. A irmã ainda o procurou, olhou atrás dos veículos. Chamou várias vezes até desistir. — Não vem porque não está com fome. Agora só amanhã!

Retornou à portaria. Beto porteiro, debruçado sobre a mesa, olhos inchados. A mulher pediu informações…

— Viu Zé, meu irmão?

O porteiro assustou-se: Viu quem?!

— Zé, meu irmão.

— Era o que ia lhe dizer.

— Diga, então! O senhor estava era com ousadia.

— Dona Maria do Carmo, eu gostava muito de seu irmão, apesar de ser um doente.

— Não gosta mais por quê?

— Ele foi embora.

— Tão cedo assim, não tomou nem o café.

— Ele tinha quantos anos?

— Só minha mãe sabe. Foi pra onde?

— Ele morreu, dona Maria do Carmo! Está estirado lá no asfalto da Samdu.

— É uma infâmia! Quem está estirado é o ladrão e meu irmão nunca foi ladrão. Doido era, ladrão nunca!

Das escadas sai Oliveira da barraca amparando a mãe do infortunado. “Por aqui, dona Zilda, devagar”. A mulher, sisuda; Maria do Carmo pergunta-lhe se Zé era ladrão.

— Seu irmão era um santo! Nasceu pra sofrer. Quando tinha dez anos notei alguma coisa errada. Na seção espírita fiquei sabendo que a missão dele era sofrer até completar as obrigações de outra vida, quando foi padre. Descanse em paz, meu filho!

— Era ladrão ou não era? O povo está falando que um ladrão morreu; esse moço aí, o porteiro Beto, disse que foi Zé que morreu. Por isso estou perguntando. — Sem resposta às indagações, Maria do Carmo continuou a cantilena. — Quem começou o linchamento foi o zelador Carlomar que trabalha no prédio. Fugiu com o porrete usado para matar o ladrão…

O oficial militar comandante da operação dirige-se a Maria do Carmo, irmã do atropelado:

— A senhora não pode viajar; está à disposição do delegado responsável pelo inquérito policial. O rapaz foi linchado mesmo? — Oliveira intercedeu. — É mentira, tenente. O rapaz foi atropelado em frente da minha barraca. Era conhecido. Nunca foi ladrão!

— A informação era que ele ia com vários sacos de mercadoria.

— Os sacos eram a vida dele. O rapaz era maluco! No saco carregava todas as suas posses: pano, papelão e outras coisas. Essa é a irmã — vira-se a Maria do Carmo. — E a mãe do morto vem chegando aqui.

Zilda rompe a pequena multidão ao encontro do filho. As pessoas já cobriam o corpo do morto com folhas de jornal. Coincidentemente, utilizavam folhas de um tablóide sensacionalista dedicado só à cobertura da violência que tanto tem crescido no Distrito Federal. A primeira página estampava um corpo em chagas e coberto de sangue. Zilda assustou-se:

— É meu filho que está nesse jornal? Não é possível meu Deus!

Oliveira pediu calma. A fotografia não era do filho dela, pois ainda não dera tempo de sair no jornal. Mas, a senhora se prepare porque vai sair no jornal de amanhã, preveniu o barraqueiro enquanto completava o raciocínio: — Onde houver sangue esses jornais estão em cima. Parecem urubus. E são vários, cada um mais cheio de sangue que o outro. Se apertar, espirra sangue pra todo lado!

A mulher resignara-se. Limpou as lágrimas com uma camisa de malha branca como se lenço fosse. Pediu licença para aproximar-se do corpo. Ajoelhou-se…

— Meu filho, finalmente Deus lembrou de você. Trouxe-lhe o descanso eterno. Vá com Deus, meu filho…

As lágrimas brotaram abundantes dos olhos da mãe. Molham o rosto de Zé Besta, despertando-o. Abriu os olhos, olhou em volta. Oliveira levantou os braços e gritou com todas as forças.

— Milagre! Milagre! Chamem o padre Moacir Simões, pois aconteceu um milagre!

A mãe chora mais ainda. O barraqueiro, emocionado, faz coro com o chororô de Zilda. Beto porteiro, católico praticante, freqüentador fervoroso das pregações do padre Moacir Simões, contagiado pela alegria joga-se sobre o corpo de Zé Besta. Este o repele energicamente:

— Sai pra lá que não gosto de veado!

— Um milagre, minha gente! Zé Besta ressuscitou!

A mãe pedia, aos prantos, pedia…

— Zé, fale com sua mãe! Terá sido milagre, meu Cristo Redentor? Fale com sua mãe, meu filho! Fale com sua mãe!

O povo participava da emoção. Êxtase. Um clima sobrenatural circulou sobre a pequena multidão. Os policiais, também envolvidos na emoção do momento, ligaram as sirenas e os hotlaines das viaturas. O pisca-pisca vermelho-amarelo-azul decorou o ambiente e chamou a atenção de toda a área de influência das avenidas Comercial Norte e Samdu. Da QNL de cima, também chamada “L” norte, avistava-se o reflexo das luzes dos hotlaines. Os discentes[2] de cursos profissionalizantes que aguardavam o horário de abertura dos portões da escola do SESI, no início da ladeira da chácara Onoyama, perguntaram-se, admirados, a razão de tantas luzes coloridas. Muitos deliberaram verificar pessoalmente os acontecimentos. E fizeram fila rumo à Samdu Norte, origem do burburinho. A grande ladeira coloriu-se com os tops e roupas de ginásticas de pessoas que caminhavam nos calçadões em busca de saúde e de beleza. Uma Van do transporte alternativo, oportunista, parou no meio da ladeira; o cobrador, após falar todo o itinerário do veículo, perguntava…

— Quem quer subir a ladeira pagando apenas cinqüenta centavos?!

Logo o veículo estava lotado. Mesmo sem lugares, muita gente queria entrar e vencer a grande ladeira pagando apenas cinqüenta centavos. Um outro veículo do transporte alternativo parou incontinente, certamente com a intenção de também se beneficiar. E deu certo. Quando o terceiro veículo manobrou para encostar-se ao meio fio, ouviu-se uma pancada forte. Um velho caminhão sem freios, carregado de entulhos, chocou-se violentamente na traseira de uma das Vans e os dois rolavam pelo precipício lateral. Após, um clarão seguido de grande explosão. O sangue manchou de vermelho a vegetação. Acontecia grave acidente, talvez com vítimas fatais.

O grande estrondo foi ouvido na Avenida Samdu, inclusive no local onde a mãe de Zé Besta glorificava a Deus e agradecia o milagre da ressurreição. Emocionada, pedia ao filho que falasse algo que lhe trouxesse a certeza que tudo era real; não um sonho ou pesadelo.

— Meu filho, fale com sua mãe. Pelo amor de Deus, fale com sua mãe.

Zé Besta, atordoado, sem juízo para entender, abriu os olhos e respondeu com uma interrogação:

— Falar o quê?

— Que aflição, meu filho! Achava que Deus tinha lhe dado o descanso dessa vida.

O atropelado resmungou para si mesmo, como era bem do seu feitio…

— Tou cansado, não; tou é com uma dor nos peitos.

— Onde?

— Nas costas.

— Onde?

— Nos braços

— Onde está doendo? No peito, nas costas ou nos braços? — e concluiu preocupada como todas as mães — Vou levar você ao médico!

A reação de Besta foi imediata. Enrijeceu o rosto magro e falou seguro:

— Médico, não! Vai querer me internar.

— Está doendo onde mesmo, meu filho?

— O corpo todo. Parece que tomei surra de porrete.

— E a cabeça?

— Meio zonza com esse povo todo em cima.

— Vamos para casa.

— Não! A senhora vai me internar.

— Vamos tomar um banho.

— De jeito nenhum! A senhora quer me internar.

— Vamos tomar um copo de leite, pelo menos?

— A senhora quer que eu durma pra me internar. Prefiro morrer.

— Não fale em morte, você acaba de ressuscitar.

A notícia já corria a vizinhança. Até o expediente da agência CNB-12 do Banco do Brasil foi suspenso. O gerente não entendeu a razão dos clientes evadirem-se ao mesmo tempo do estabelecimento. Amedrontou-se. Pensou na possibilidade de um grande assalto, igual ao que a Televisão mostrara na noite anterior, quando mais de quinze ladrões invadiram pequena cidade de Goiás, próxima a Brasília, e assaltaram a agência do mesmo banco. A televisão mostrou a crueldade dos bandidos, armados com fuzis e metralhadoras.

Ainda com a imagem na mente, o gerente da agência deliberou encerrar o expediente externo. Imediatamente, telefonou à Central de Polícia e pediu reforços policiais no limite máximo, para enfrentar quinze ladrões armados até os dentes!

Após o encerramento, formou-se pequena confusão entre funcionários e clientes, principalmente os apressados em realizar depósitos para cobertura de cheques que entrariam pela compensação bancária, logo mais à noite.Todos discordavam do fechamento da agência antes do horário de lei. Neste sentido, Leonardo Pedron, concluinte de Direito na Universidade Católica de Brasília, socou a porta de vidro, exigiu que fosse aberta para acesso do mesmo à agência, sendo-lhe negado. O futuro advogado, dedo em riste, prometeu processar a Banco do Brasil.

— Vou processar esse banco! O horário de funcionamento tem de ser cumprido. Quem vai pagar os prejuízos que cada um incorrerá? Me digam: quem vai pagar meu prejuízo?

Alguém achou por bem perguntar qual o prejuízo do futuro advogado. Pedron, investindo-se na condição de aluno aplicado desde a escola primária, manifestou a razão do seu prejuízo.

— Vim pagar um boleto do concurso para Procurador da República. E hoje é o último dia! Não vou poder participar do concurso, que estou estudando pra caramba e ia passar! Sabe qual o salário de um Procurador? Mais de vinte mil reais! Esse será meu prejuízo. Vou entrar com uma ação de reparação de danos materiais, cujo valor será o salário mensal multiplicado pela quantidade de meses até a minha morte. E ainda vou requerer danos morais. Me aguarde, Banco do Brasil!

Aos presentes na porta da agência bancária só restou aplaudir a confiança do concluinte de Direito e ex-futuro Procurador da República. Que entrasse mesmo na justiça!

Como sempre acontece nessas ocasiões alguém achou por bem convocar a imprensa para flagrar possível agressão aos direitos da coletividade. Pelo celular, ligou para a emissora de televisão de maior audiência em Brasília, que não demonstrou interesse em razão da cobertura de um torcicolo que acometera dona Maria Silva, cidadã brasileira e italiana, esposa do presidente de uma república.

A emissora de segunda maior audiência não garantia enviar reportagem, por conta da chegada do Bispo Valdir Alfredo para inauguração dos novos transmissores, que colocariam a emissora em primeiro lugar na audiência dos brasilienses.

Ante tantas negativas e já com os créditos do celular se esvaindo, deliberou, então, solicitar mesmo a presença da emissora local, que desfrutava até certa aceitação na preferência popular. E tinha uma programação boazinha, principalmente o programa de Valdete Silva, coluna social eletrônica escancarada pelos lábios vermelhos e carnudos da apresentadora.

Aguardaram então a chegada da reportagem para flagrar o desrespeito ao público.

Na Avenida Samdu, local do acidente que vitimou Zé Besta, um veículo estaciona próximo à multidão. Era o padre Manoel Moacir Macedo Simões, mais conhecido como Moacir Simões, vigário da Paróquia Cristo Bom Pastor, com a estola sobre o pescoço e batina branca, que só vestia para ministrar um santo sacramento. Na mão esquerda, pequeno balde com água benta; importante, considerando que faria encomendação da alma do morto. Conduzido ao local onde prostrava o corpo de Zé Besta, o padre anunciou o motivo da presença.

— Vamos encomendar a alma do cristão que morreu!

A mãe arregalou os olhos. Estaria sonhando e seu filho teria morrido mesmo? O providencial Oliveira adiantou-se e fechou a passagem ao padre, enquanto falava em bom som…

— Morreu não, padre!

— Como não morreu? Fui chamado para dar a extrema-unção.

— Mas não morreu, não.

— Me disseram que o corpo estava estendido no asfalto. Foi linchado pela multidão.

— Foi atropelamento, não foi linchamento.

— Levaram pelo menos ao hospital?

Não houve tempo para resposta. Ao ouvir a palavra hospital, Zé Besta levantou-se num pinote! A mãe ainda tentou acalmá-lo.

— Meu filho, tenha calma! Ninguém vai levar ao hospital.

Era tarde. Zé virou-se, mostrou a grande chaga nas costas causada pelo atrito do corpo com o asfalto. Em carne viva! Tentou pegar o saco com suas coisas inválidas. Era pesado, teve dificuldades; deixou o surrão, e, correndo, rompeu a multidão. Atravessou a calçada, desembestou subindo em direção à Avenida Hélio Prates, que dá acesso à cidade de Ceilândia, a maior e mais populosa do Distrito Federal.

Corria sem olhar os lados. Invadiu um cruzamento perigoso, obrigou um automóvel a frear bruscamente para lhe dar passagem. Um ônibus vinha em alta velocidade, o motorista ainda tentou brecar, mas… Impossível! O veículo arrastou os pneus pelo asfalto no barulho característico da frenagem. Ouviu-se uma pancada seca, morta… De morte mesmo!

O povo acompanhava. A mãe desmaiou. Beto porteiro, sem ação, rezou o Pai Nosso. Padre Moacir Simões pediu clemência e louvor. — Tende piedade, tende Piedade, Senhor! Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

Oliveira da barraca viu o motorista do ônibus fugindo. Não tivera culpa; mas, era errado negar socorro. Repetiu a mesma frase: “Não vai dar socorro não, irresponsável?”. Beto porteiro, vendo Zé Besta caído, sentenciou:

— Agora morreu mesmo.

A mãe perdeu os sentidos. Foi amparada por Oliveira, que a conduziu às dependências do condomínio.

Padre Moacir Simões, sem ação, repetia para si mesmo não ter sido o culpado pelo atropelamento. Rezou baixinho o creio em Deus Pai.

Beto porteiro arriscou aproximar-se um pouco do corpo moribundo. Arrependeu-se ainda em tempo; não viu a grande poça de sangue manchando o asfalto, e livrou-se de mais um desmaio. Não acostumado a cenas tão fortes, escorregou direto ao banheiro e danou-se a vomitar.

O povo cercou o corpo estendido no asfalto.

Surgindo do nada, o veículo de um jornal sensacionalista, especializado em sangue, estacionou sobre a calçada lateral. Dois repórteres iniciaram a sessão de fotos já para a próxima edição, logo mais. Procurando melhor ângulo para mostrar o estrago da morte, tentaram até mudar a posição do corpo. Conseguiriam não fosse a posição firme de Oliveira, que impediu a movimentação do corpo, capaz de gerar perda do direito à indenização do seguro obrigatório.

O trânsito ficou lento desde o início da avenida, ainda no centro de Taguatinga. A curiosidade obrigava os motoristas estacionarem nas imediações do acidente, tornando mais lento a fruição do tráfego. Logo, prepostos da fiscalização de trânsito ameaçaram com multa e perda de pontos na carteira nacional de habilitação a quem insistisse parar nas imediações do acidente. Mesmo assim, não conteve a curiosidade de muitos motoristas.

Um veículo preto e luxuoso, do Senado Federal, chapa preta, cortou a multidão. Alguém gritou:

— Está maluco, ladrão! Corre assim porque o carro não é seu. Tira o jornal para a gente ver a cara!

Certamente não era um senador da República. Ou talvez fosse, tudo é possível quando se refere ao Brasil “do faz de conta”, que, infelizmente, é real.

Temendo represálias, o motorista, terno preto, acelerou e o veículo “comeu asfalto”. No banco traseiro, lado direito, indiferente ao murmurinho da morte, o passageiro continuou lendo o jornal. Afinal, precisava chegar ao plenário da casa bem informado.

O ônibus da viação Planan com destino a Águas Lindas, no Goiás, quase não consegue frear. Por pouco não atropela a multidão. Alguém grita filho da puta! O motorista pede desculpas, e segue para a cidade que mais cresce no Brasil. Em pouco mais de dez anos a população pulou de dez mil para cem mil habitantes, trazendo todas as mazelas de um crescimento urbano desordenado. Quem quiser posgraduar-se em urbanização deve fazer estágio em Águas Lindas. Sairá doutor em situações urbanísticas inusitadas.

Uma vendedora de mingau de milho assentou o tabuleiro próximo à multidão. Colocou o cartaz: “Promoção — ingau, só cinqüenta centavos”, esquecendo a primeira letra da palavra. Várias pessoas acorreram ao ingau de cinqüenta centavos. Alguns não sabiam nem o que era; indagavam: “O que é ingau, que a senhora está vendendo à cinqüenta centavos?”. Mingau, ora… — respondia a mulher. Está escrito ingau, informou a cliente. A do mingau pediu desculpas; culpa da neta que ainda não sabia escrever direito.

A senhora que vendia cuscuz-com-ovo ao pé de um canteiro de obras, cuja clientela era trabalhadores nordestinos apreciadores da iguaria, parou ao lado. Perguntou se podia também vender ali. O chão é público, minha filha, respondeu a do mingau. “Vou atrapalhar? Por que esse povo todo?”. A do mingau respondeu desinteressada…

— O que é, não sei; vi o povo e parei pra vender meu mingau. Hoje está ruim mesmo…

Aparece a irmã de Zé Besta, Maria do Carmo. Meu irmãozinho… Debruçou-se sobre o corpo duplamente atropelado. Como é grande a dor de perder um irmão querido, confessou.

Lúcio Vargas, residente no condomínio Juscelino Kubistchek, saia ao trabalho, cumpridor dos deveres de servidor público. Antes foi conferir a tragédia. Assustou-se ao saber ser a vítima Zé Besta, a quem conhecia e via passar diariamente com o grande saco de molambo nas costas.

— Um bom rapaz. Ninguém falava mal dele, fora o fato de tomar banho nu de vez em quando.

— Muito errado, seu Lúcio; cometia atentado ao pudor.

— Mesmo assim, só tomava banho nu de madrugada.

— Conheço gente que prometeu surra a ele.

— A vida já o maltratava demais. Veja aí o resultado… Se o governo de Brasília fosse outro, esse coitado não ficaria à toa na vida. Queria que o Presidente Lula tomasse conta também de Brasília. Com certeza criaria um bolsa família só para Brasília, que, afinal, é a capital federal. Pelo menos quinhentos reais por família para moradia, alimentação, saúde e escola. Esse coitado não seria um doutor; mas, pelo menos o nome assinaria. Estudar é terapia, não sabia? É a vida, seu moço. Esse já se foi. Quantos ainda morrerão pelos caminhos empedernidos da vida?

Lúcio Vargas despediu-se. Era petista doente, capaz de fechar os olhos às mazelas de um partido político que de vez em quando pisava na bola. E os outros partidos que pisaram na bola por mais de quinhentos anos? Defendia com unhas e dentes o direito do homem errar de vez em quando. E um partido político era como se fosse uma pessoa!

Quando Vargas iniciava a preleção política era momento dos ouvintes cuidarem de outras obrigações. Em pouco tempo o petista perdia a platéia, o que não o incomodava. Sabia que a insistência era virtude importante. Quer exemplo melhor que o próprio presidente da república, que não desistiu nunca de ser o mandatário do país, elegendo-se só depois de três derrotas? Não fosse a insistência e o Brasil ainda estaria sob o jugo imperialista. O Brasil ficou livre do FMI, minha gente!

Quem o ouvisse naquele dia o chamaria de doido. E era mesmo: doido pelo partido, pelo presidente, pelo Brasil! O dia em que o Brasil pagou o último “tostão” ao FMI foi um dia de glória para Lúcio Vargas. Manhã cedo, assim que ouviu o barulho das portas da igreja Cristo Bom Pastor abrindo-se, caminhou para a oração matinal; desta vez com muito mais afinco e satisfação porque agradecia a libertação do Brasil da maior praga do mundo: o famigerado FMI.

Uma vez lhe perguntaram o que achava de George Bush, presidente dos Estados Unidos da América. Vargas respondeu bem ao seu modo: “Não quer perguntar também o que eu acho do Chávez, da Venezuela, ou do Evo Morales, da Bolívia?”. Ante a estupefação do interlocutor, Vargas respondeu solene e forte: “Meu amigo, eu gosto é do Brasil, é do Lula!”. E encerrou a discussão. Pegou o guarda chuva, recolheu na pasta e partiu para o cumprimento das obrigações de servidor público federal.

O vento frio indicava passagem de uma nuvem carregada. A mãe implorou compaixão.

— Meu Deus, não deixe chover agora. Meu filho no asfalto quente, com essa chuva fria vai estuporar.

— Dona Zilda, Zé já descansou dessa vida, lembrou Oliveira da barraca.

— É uma injustiça, seu Oliveira. Meu filho tinha problema da cabeça, mas era muito jovem. Por que não me levou, que sou velha e só ando doente?

Uma sirene anunciava a chegada de algum carro oficial. Como a polícia militar já tomava conta do local, identificaram a chegada da polícia de trânsito. Do veículo desembarcam mais autoridades do trânsito com os talões de multa ostensivamente à mostra.

— Não estão vendo que o trânsito está obstruído?

— A culpa não é nossa; é de quem matou, responderam.

— E quem matou?

— O ônibus.

— O ônibus não tem culpa; culpado é o motorista. Onde está ele?  Vamos tirar o corpo do asfalto.

A reação foi imediata.

— Não pode, o morto vai perder a razão!

— Amigo, a autoridade de trânsito aqui sou eu.

— Autoridade de quê? É polícia? Autoridade só policial. Não mecha no corpo. A família do morto vai perder a razão — decidiu Oliveira da barraca, que concluiu o raciocínio — E dinheiro também!

— O senhor está enganado. Não há dinheiro em jogo, replicou o agente de trânsito.

— E o seguro? O seguro obrigatório vai indenizar a família e pagar os funerais. O advogado disse que não deixasse mexer no corpo antes da perícia. A mãe do morto, inclusive, até já assinou procuração em branco para ele correr atrás da indenização.

— Quem é o advogado?

— Ela não conhece; mas mostrou os documentos; é advogado mesmo. Assinou a procuração em branco. Ele disse que quando encaminhasse os papéis telefonaria.

Maria do Carmo aproxima-se chorosa.

— Que aconteceu, meu irmão? Foi embora tão novo! E nós, como ficaremos? Nunca mais vou levar seu café. Prometi que seu pão ia ser com manteiga todo dia. Muita manteiga mesmo, com requeijão cremoso, ovo…

Oliveira chama a atenção da irmã. Para que dizer essas coisas? Maria do Carmo responde que perdeu o irmão querido e quer desabafar. E diz mais:

— O senhor sabe quem cuidou dele quando era menino? Essa irmãzinha aqui! Fazia xixi no meu colo! Todo dia eu lavava fraldas. Era muito trabalho, mas fazia com satisfação. Teve uma diarréia, quando menino, que quase morre.

— Maria do Carmo, não diga essas coisas.

— Digo, sim! Falo mesmo, pra desabafar. O sarampo quase mata Zé. Ficou couro e osso, cagando sangue de dia e de noite. Pensei que fosse morrer. Obrava era sangue mesmo!

— Maria do Carmo, o que é isso?

— É pra desabafar. Minha avó curou a obradeira de sangue com chá de umburana de cheiro. O café dele era umburana. Meio dia, antes do almoço, umburana; de noite também umburana. Lembro que Zé pedia: “Deixe eu ficar cagando sangue mesmo; não quero mais tomar umburana. Já estou com a barriga toda furada por dentro de tanto tomar umburana”. Minha avó ordenava: “Vai tomar, é pra seu bem. Menino teimoso apanha de chicote”. Zé se encolhia e bebia o chá. Mais tivesse! A avó aparecia com o chicote de cavalo, perguntava se Zé não ia tomar o chá. Ele, amedrontado, respondia: “Tem mais, vinha? Traga logo; mas não me bata com esse chicote”. Coitado… Mirrava na frente do chicote. Ficava mais miúdo ainda.

A mãe intervém:

— Do Carmo, está me fazendo passar vergonha.

— Mãe, quero desabafar, me deixe falar. A senhora também tem culpa. Deixava minha avó tomar conta da casa, bater na gente. Meu irmão ficou doente da cabeça por causa dela. Uma vez, só porque chegou tarde para almoçar, tomou surra. Não agüentando a dor, pediu socorro. Eu já era mocinha; abri os braços para amparar aquela criança, mas foi tarde. Escorregou num cocô de galinha…

— Não foi numa casca de banana?

— Num cocô de galinha! Naquele tempo, banana era raridade e se comia até a casca. Escorregou no cocô daquela galinha preta de pescoço pelado.

As pessoas ouviam. Sargento Jânio, valente e sempre superior aos paisanos, sentia-se desencorajado para se manifestar. Beto porteiro usava pedaço de toalha velha como lenço; soava o nariz. Após uma forte soada, declamou:

— Está parecendo filme. Será que foi assim mesmo?

Falou tão baixo que ninguém ouviu.  Soou o nariz novamente. Carlomar, o zelador, informou-lhe que o síndico o chamava, pois a bomba d’água do edifício apresentara defeito. A resposta foi lacônica.

— Só vou quando o corpo de Zé sair do asfalto.

— Ele não era nem morador do prédio — argumentou o zelador.

— Morava lá, sim; dormia e comia lá, escovava os dente e tudo.

— Mas não morava em apartamento.

— Não adianta; pode dizer: só vou depois!

A irmã soluçou. Alguém sugeriu baixinho que fosse para casa, descansar. A reação foi pronta:

— Descanso, pra mim, agora, só o eterno. Quero me desabafar.

— Desabafe em casa. Vá dormir um pouco.

A irmã nem ouviu. Prosseguiu no relato fantástico:

— Meu irmão nasceu doente, não; era menino gordo, saudável. Inteligente. Brigão que só ele. Tinha coração bom. Dava o que tinha. Dividia comida e até os brinquedos. Era mais moço do que eu, mas não mijava na cama. Minha mãe dizia: “Não tem vergonha? Moça já, ainda mija na cama? Seu irmão menor não mija”. Minha avó saltava lá, bruta que nem ela: “Quer que eu tire essa mania dela, agora? Quer saber como?”. Eu não deixava minha mãe responder; gritava: Não deixe não, mãe! Ela quer me bater com chicote de cavalo. Antes de fechar a boca, a avó já empunhava o chicote: “É isso mesmo! Vai apanhar de chicote! É uma mijada e uma chicotada!”.

A mãe, em frente ao corpo, implora:

— Minha filha, pelo amor de Deus, pare.

— Quero desabafar. Não agüento ficar com isso no juízo. Meu irmão não nasceu doido; ficou doido! Acho que também vou ficar.

Beto porteiro, após retirar a toalha do nariz, arrisca um conselho:

— Maria do Carmo, gosto muito de você. Vou lhe pedir uma coisa.

— Deixe de ousadia, cachorro! Vai pedir o quê? Sou moça. Vivia pra dar comida a meu irmão.

— Não é isso. Eu queria…

— Queria nada. Se tivesse aqui o chicote de minha avó, você ia ver. Me respeite! Saia de perto de mim.

— Maria do Carmo, por favor…

— Não me peça nada, seu Oliveira. Quero desabafar. Me deixe desabafar.

Padre Moacir Simões aproxima-se com o missal na mão…

— Louvado seja Deus! Cada um tem seu momento. Deus faz o momento de cada um. Descanse em paz, à direita de Deus Pai. A senhora era o quê dele?

— Eu? Era mãe dele.

— E eu, irmã, padre.

— Aceitem as determinações de Deus.

A mãe resignou-se… “Assim seja, padre”. A irmã arrebitou o nariz.

— Não posso entender… Tanta gente ruim, e levou logo meu irmão que não fazia mal a ninguém. Tanto ladrão por aí, chamou logo meu irmão que era tão bom.

— Qual a idade dele? Trabalhava em quê?

— Em nada, padre. Vivia da ajuda de Deus.

— Era desempregado?

— Nunca trabalhou. A vida não deixou.

— Mas procurava emprego?

— Era fraco do juízo. A família o sustentava. Não tinha vício. Não fumava nem bebia — interferiu Oliveira.

— Louvado seja Deus.

Alguém respondeu com voz limpa para sempre seja louvado!

Um senhor alto, cabelos penteados, camisa social; perguntou como tudo acontecera.

— Agora há pouco. Foi um ônibus, mas o motorista não teve culpa. Quem é o senhor?

— Não está me reconhecendo? Você votou em mim — torna o distinto.

— Eu? Votei mesmo! Como é o nome do senhor?

— Sou o deputado…

— É o senhor? Como soube que votei no senhor?

— Quase todos os moradores de Taguatinga votaram em mim. Quero saber se precisam de alguma coisa. — Maria do Carmo solicita a volta do irmão. — Impossível! Só Cristo ressuscita. Seu irmão ressuscitará, sim; mas não agora.

— Quando então?

— No dia do juízo final. Diz a bíblia, ninguém morrerá eternamente. Pelo contrário, após a morte é que começa a vida eterna, a que nunca terá fim.

— Então ofereça o que pode dar.

— Temos carro para transportar o caixão, serviço de som para anunciar a morte e tocar músicas fúnebres.

— O senhor dá o caixão?

— Posso tentar junto à Administração Regional, mas, não garanto. Com essa nova lei de responsabilidade fiscal…

Chegaram outros moradores do prédio. Hélio Idálio não se conformava… — Bom menino, sim; morreu de graça.

— Chegou a hora dele, seu Hélio — retruca Beto porteiro.

— A hora quem faz é Deus, seu bestão. Quando Deus faz a hora ele mesmo leva. Atropelamento não é chamado de Deus. Sabe o que acho mesmo? Culpado foi o síndico. Se deixasse o rapaz subir ao apartamento da mãe, nada teria acontecido.

— Mas seu Hélio…

— Proibiu ou não proibiu?

— O síndico proibiu foi cachorro subir pelo elevador.

— Então me informaram errado.

A irmã desperta da latência…

— Como é a história? O senhor está chamando meu irmão de cachorro?

Beto porteiro conhecia a sanha de Maria do Carmo; cuidou de remediar.

— Deus me livre, dona Maria do Carmo! Eu chamar seu irmão, meu amigo, de cachorro?

— Acabou de dizer que o síndico proibiu cachorro subir de elevador, por isso meu irmão não ia até a casa dele. Pois se era da mãe dele, era dele também! Era doido, mas muito digno. Nunca quis subir porque não trabalhava. E achava que, sem trabalho e sem dinheiro, não tinha direito de morar em casa. Foi só por isso.

A mãe, Zilda, desilude-se.

— Do Carmo, por favor… Que sina, meu Deus! Foi um e ficou outro.

— A senhora quer me proibir de defender a memória de meu irmão? Ou quer que eu vá também? É fácil; quer?

— Pare com isso. Respeite seu irmão.

— A senhora é que não está respeitando. Ouve falar mal dele e nada diz. — Beto escapuliu feito cachorro medroso, esquivando-se de Maria do Carmo; esta não o perdoou. — Cachorro é você! E não venha com ousadia, nunca olhei pra você.

Da caminhoneta branco-suja do Instituto Médico Legal saem dois peritos.

— É o rabecão!

Deram passagem. Os homens, macacões cor cinza, traziam a morte no semblante.

— Dá licença!

O de bigode tomou a frente, descobriu o corpo. Virou o rosto para não ver…

— O negócio foi feio…

A mãe chora novamente.

— Que triste fim, meu filho. Criei com tanto mimo. Freqüentou as melhores escolas. Mal aprendeu a escrever o nome…

O chefe da equipe, registrando na prancheta, pergunta o nome; ninguém respondeu. Perguntou novamente. Carlomar, o zelador, não compreende…

— Nome de quem? Pergunte à mãe dele. Está sentada ao lado.

O perito preferiu localizar os documentos no bolso do defunto… — Ele deve ter documentos. — Enfiou a mão num dos bolsos traseiros; traz um pedaço de tecido…

— Que diabo é isso!

Retira a mão, amedrontado. A irmã reprova.

— Está metendo a mão no bolso do meu irmão? Ele não é um joão-ninguém. Tem mãe e irmã!

— Senhora, eu só queria os documentos dele.

— Por que não pediu?

— Pedir documentos a morto? Ele não daria. Os documentos devem estar no bolso. Posso procurar? Sou um funcionário honesto.

— Disso não sei, não o conheço.

— Aí fica difícil! Vou embora e o corpo fica aí. Então a senhora retire os documentos, por favor.

— Quer saber o quê?

— Nome.

— José de Arimatéia Gusmão. Era conhecido como Zé Besta.

— Nome da mãe.

— Zilda de Gusmão.

— Idade…

— De quem? Dele ou da mãe?

— Da mãe.

— Mãe, quantos anos a senhora tem?

A mãe levantou a vista…

— Se quiser a idade do meu filho morto, 46 anos. A minha, esqueci.

O legista contorna. — Deixe pra lá. Número da carteira de identidade.

— De minha mãe?

— Do defunto.

— Aí só com ele. Aliás, nem ele.

— Então, teremos mesmo que procurar no bolso.

O perito amarrou o lenço no nariz, como máscara. A irmã reprovou.

— Pra que esse lenço, moço? Meu irmão está fedendo?                   — Um pouquinho só; o uso da máscara é normal — respondeu o legista enquanto calçava as luvas. A mulher reagiu: — Não quer nem pegar? Está com nojo?

— Fazemos perícia em muitos cadáveres, inclusive portadores de doenças contagiosas.

— Quer dizer que meu irmão está tuberculoso?

— Não sei disso, não. AIDS é doença contagiosa; nem por isso afirmei que seu irmão está com AIDS.

Retira da caixa grande lâmina, amedrontando a irmã:

— Pra que essa facona? Vai acabar de matar.

 

Após alguns procedimentos o corpo foi engavetado e enfiado na caminhoneta. Portas fechadas, Zé Besta foi encerrado no compartimento escuro do rabecão. As pessoas acompanhavam atentas. Oliveira lacrou a barraca e foi prestar solidariedade cristã, a muitos surpreendendo. Poucos supunham tão intensa a amizade que o ligava a Zé Besta. Não era bem amizade, confessaria depois, era solidariedade cristã mesmo:

— Os ensinamentos de Cristo sempre mostram o caminho de ajudar ao próximo como a nós mesmos.

Beto porteiro acompanhou o trabalho dos peritos. A intenção era provar a si mesmo que podia ver sangue sem desmaiar. Que era capaz de ver um defunto, um cadáver, sem que, à noite, a insônia lhe tomasse a vontade de dormir.

Permaneceu sempre bem próximo ao cadáver. Então, observou que defunto é diferente de gente viva. — É mesmo, seu Hélio Idálio! — reafirmaria depois em conversa com o morador. — Mal a pessoa morre o corpo se transforma, fica cor de cera, sem vida. — Hélio Idálio achou engraçado, sorriu e perguntou se algum dia Beto já vira um cadáver com vida. Depois da pilhéria, concordou; de fato, processava-se grande mudança no corpo assim que se esvaía o último suspiro de vida. Beto perguntou por que isso acontecia. A Hélio Idálio restou justificativa bem concreta para a percepção semi-analfabeta de Beto:

— O sangue pára de correr, coalha nas veias. Sangue é a vida, Beto!

E lembrar que ele, Beto, não podia ver a vida, aliás, ver sangue, que é vida, pois desmaia. Prometeu ficar bom, curar-se desse mal. Para demonstrar que evoluíra permaneceu ao lado do cadáver até os últimos momentos.

A irmã Maria do Carmo continuou a cantilena do desabafo. E desabafou mesmo, relatando a vida familiar antes do domicílio na capital federal. Quem diria que José de Arimatéia Gusmão, o Zé Besta, fosse neto de fazendeiro de gado, dono de roças de cacau, de carnaúba e de mamona? Morar na capital do país foi um acidente. O avô vendera duas fazendas e comprara um apartamento em Brasília por ser eleitor e defensor ardoroso e perpétuo de Juscelino Kubistchek, o maior presidente que o Brasil já teve!

A finalidade do apartamento era alojar Zilda na capital para que pudesse tratar a doença de Zé Besta. A loucura o acometera menino ainda, no interior da Bahia, onde morava. A vinda a Brasília tinha como objetivo a cura do desequilíbrio mental.

O efeito foi contrario; o tiro saiu pela culatra, como dizia o avô nas poucas visitas aos netos, na capital federal. A grande bruaca[3] de couro cru, abarrotada de beijus, rapaduras, doces e mel de abelha, trazia a fartura do sertão chuvoso para o Distrito Federal. O velho, cujo nome era João Gusmão, não saia do apartamento nem para a igreja, que ficava a duas quadras. Era o medo de morrer atropelado, não acostumado com tantos veículos indo e vindo sem bater um no outro nem subir nas calçadas. Gastava o tempo assistindo televisão. Dormia sentado, à frente do aparelho; depois acordava, assistia; depois dormia; depois acordava… A quem lhe dissesse que dormira, negava sempre. Nunca dormia durante o dia, pois o dia dele era para o trabalho!

Quando menino, no interior da Bahia, Zé de Arimatéia gostava da companhia do avô. Ás vezes, inventava doenças para não ir à escola e gozar a presença de João Gusmão. À troco de surras a mãe não o deixava faltar sequer a um dia de aula. — Já viu filho de pobre não querer estudar? Vai virar carroceiro! — e tome-lhe chicote!

Com a morte do velho pai, Zilda concordou vender as propriedades rurais e mais alguns terrenos urbanos. Apurada sua parte no espólio, mudou-se definitivamente para Brasília, arranchando-se em Taguatinga, uma cidade alvissareira. O dinheiro da herança permitiu-lhe comprar três apartamentos, inclusive esse, onde mora. A manutenção familiar provém dos aluguéis; embora defasados, permitem sobrevivência digna.

Anos depois, a filha Maria do Carmo enfrentou concurso público e assumiu vaga de atendente na administração pública distrital, quando a concorrência pelo emprego público ainda não era tão absurda. Bastava submeter-se ao concurso e esperar ser chamada, nem que fossem dez anos depois. A Constituição Federal de 1988 é que criou esse negócio de validade de concurso público.

A filha colabora nas despesas domésticas com o pagamento das contas de luz e do condomínio residencial.

Do Carmo não resistiu quando o corpo do irmão foi recolhido pelo IML. Acometeu-lhe grave crise nervosa. Pedia que não o levassem. Gritava, uivava, arrancava os cabelos! Não levem meu irmão! Oliveira tentou confortá-la, foi repelido. Beto porteiro nem pensou aconselhar ante o estado da mulher. Padre Moacir Simões, ainda presente, orou em voz alta, pedindo a Deus que confortasse a família aqui na terra. Mas não houve meios de acalmar o histerismo da irmã.  Cada vez mais descontrolada, arrancava os cabelos e azunhava o rosto. Por fim, levantou o vestido e mostrou as roupas íntimas em ritual histérico nunca visto. A mãe determinou:

— Pare, do Carmo!

A resposta veio imediata:

— Até isso, minha mãe? Nem chorar a morte do meu irmão eu posso?

— Você não está chorando a morte do irmão; está levantando a roupa. Não tem vergonha? Baixe essa roupa!

Maria do Carmo assustou-se e foi chorar nos ombros da amicíssima e colega de trabalho, Maria dos Anjos. As más línguas afirmavam que dos Anjos tinha caso com ela, Maria do Carmo.

[…]

Essa é apenas uma amostra de O Legado da Loucura. Uma leitura célere em busca do final da trama.

Adquira o Livro nas principais livrarias ou diretamente no site/loja do Autor: astrogildomiag.com.br


Deixe uma resposta