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A SANTA DO PAU OCO
Brasília
Edições: 2003 e 2013.

Apresentação

A Santa do Pau Oco, primeiro romance de Astrogildo Miag, é obra que a mão escreveu e a emoção ditou. Tem a mensagem da gramática do coração. Por isso foge habilidosamente da tirania da objetividade absoluta, deslizando por uma narrativa sem pressa. Flui naturalmente. Às vezes, ingênua e comovedora. Quase sempre brutal e meiga, engraçada e triste, frenética e sentimental. A vida como ela é. Com o autor deixando transparecer uma criatividade que funciona com liberdade, coragem e determinação. A palavra salta, esguicha, ora num grito de alegria, ora num jato de sangue, ora num gesto brusco de soco na cara. É realismo sem retoque, adrenalina pura do cotidiano transformada em ficção. Ou será tudo real mesmo?
De permeio, o autor usa uma doçura persuasiva para atrair o leitor, lançando-o, vez ou outra, na condição de personagem, também. Ou pelo menos é levado a esta ilusão. Com essa técnica o texto é costurado.
A paisagem regional de A Santa do Pau Oco evidencia a intimidade do autor com o ambiente. Terra, povo e costumes vão desfilando como se o romance fosse um agradável passeio descritivo. O padre, o delegado, o prefeito — todos personagens — se mobilizam com graça, pisando no tênue limite entre a realidade e a fantasia. Embalados por intrigas e acontecimentos que fazem a desbotada rotina daquela pequena e viva comunidade do interior baiano, o autor revela habilidade e emoção.
Astrogildo Miag, escritor por vocação e talento, em A Santa do Pau Oco mostra, acima de tudo, que sabe trabalhar com a ferramenta fundamental de sua obra: a palavra. E todos sabem que as palavras dormem ao relento. Leito de terra e teto de céu. Ao sol e à chuva. Alimentam-se de horizontes, de espaços e de tempo. Vestem-se de sonhos, desejos e ilusões. Saber usá-las é o desafio. Nesta obra o autor não vem como promessa, mas realizado e pleno.
Nilo Vaz
Jornalista, escritor e publicitário.

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A Santa do Pau Oco- Resenha crítica
por J. Simões – Doutor em Educação, Presidente da ATL

MIAG, Astrogildo (pseudônimo de Astrogildo Regis Barbosa). A Santa do Pau Oco. Guará Editora, Brasília – DF, 2003, 177p.

Astrogildo Miag é baiano, desses meninos que vieram do interior para as metrópoles à busca de vida melhor, mais digna. Passou pelos percalços de todos os migrantes, geralmente sem muita instrução escolar, sem profissão e sem em que se apegar. Estudou, formou-se, venceu. Hoje é servidor público em função de alta responsabilidade. Escritor, principalmente prosador, mas, também, poeta. Sua última conquista foi tornar-se Membro Titular da Academia Taguatinguense de Letras.
A Santa do Pau Oco, segundo registra o autor, é história verídica, ocorrida em Remanso, cidade que foi alagada pela hidrelétrica de Sobradinho. Sendo, então, um ensaio em estilo memória, aumenta a responsabilidade e a validade do enredo, vindo a ser um documento, uma crônica histórica. O enredo é linear, seguindo a ordem do tempo e do espaço, com uma narrativa carregada de humor, uma sátira ao comportamento humano. Os personagens são tipos, verdadeiros representantes dessas figuras ímpares que vivem no nosso imaginário e nas nossas memórias. Ocorrem fatos os mais variados, sempre envolvendo problemas humanos, o que torna o livro, mais do que um ensaio biográfico, uma análise psicológica e social desses agrupamentos humanos. Há os vencedores e os vencidos, os espertos — ou que se acham iluminados — e tudo isso se emaranha em vivências, atitudes, estratégias políticas e em resistência às fatalidades.
A trama é engraçada, lírica, emotiva. Sobretudo, retrata a alma saudosa do autor ao resgatar suas lembranças de menino, ao recriar casos e causos que ouviu e/ou presenciou. O maior mérito é atribuído à habilidade do autor em trabalhar com as palavras, retratar fatos, reproduzir falas – diálogos que engendram a trama e a tornam envolvente, forte. É uma narrativa fácil, simples, predominantemente dialogada com a expressividade dos personagens interioranos, com um vocabulário limitado, regionalista, mas que demonstra nesses “falares” toda a astúcia, a sagacidade desses “simplórios” que se tornam seres ativos, agentes que constroem suas vidas com muitas dificuldades, mas com energia e trabalho. Tudo aqui se torna hilário: o que é para ser triste, até mesmo um enterro, torna-se cenário de ironia, de comportamentos e ações denunciadoras da brejeirice da alma daquela gente, com seus pensares característicos, suas histórias quase sempre tristes, mas que, pela forma narrativa, tornam-se engraçadas, motivando o riso do leitor.
A paisagem e a linguagem são regionais, mas os fatos são universais. A expressão “santa do pau oco” é de domínio público como qualificação de mulher que se apresenta como santa (pura, casta) e, ao se verificar a realidade, de santa nada tem. Aqui não se faz graça com a desgraça alheia, não se descaracteriza nada nem ninguém. O retrato é real, mas a realidade, por mais simples e dura que seja, é sempre o milagre da vida. Viver, como disse Guimarães Rosas, “é muito perigoso”; mas, para Luiz Gonzaga Jr. (Gonzaguinha), “A vida é bonita, é bonita e é bonita!”
É um livro para se conhecer a alma humana desses brasileiros simples, mas cheios de energia, de poesia e ação. É o retrato de um pedacinho do Brasil. É uma leitura agradável, leve, que leva o leitor ao riso, ao bom humor.

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Livro‏
De: orlando ribeiro de Souza (orlando13galo@gmail.com)
Enviada: segunda-feira, 21 de janeiro de 2008 13:52:43
Para: astrogildomiag@hotmail.com

Caro escritor,

Como disse no e-mail anterior acabo de ler seu livro achei excelente, ha tempos que não ria tanto, Apesar de ser mineiro, adoro os surubins de Remanso, adoro a Bahia e especialmente Salvador onde tenho passado algumas férias. Gostei demais de sua maneira de relatar o dia-a-dia de nossos manos. Apenas não entendi uma parte do livro, que se passa em 1998 e já foi relatado o caso de dólares na cueca. No mais, nota 9,9. Parabéns.
Orlando Ribeiro de Souza
Brasília 21 de janeiro de 2008

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http://www.portaldetonando.com.br/forum/indique-um-livro

Projeto Democratização da Leitura

merjory Assunto do Tópico: Re: INDIQUE UM LIVRO
Enviado: Sáb Abr 04, 2009 7:25 pm

Data de registro: Ter Mar 31, 2009 4:22 pm
Mensagens: 2 A SANTA DO PAU-OCO DE ASTROGILDO MIAG: MUITO CÔMICO!HAUAHUAHUAHUAHA!!!!!!!!!!!!

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Após rápida apresentação, eis A Santa do Pau Oco, primeiro romance de Astrogildo Miag, editado em 2009 pela Editora Guará, Brasília, DF. O livro encontra-se esgotado nas livrarias. Pode ser adquirido no site/loja do escritor: astrogildomiag.com.br ou, em formato e-book, na página da Livraria Saraiva: www.saraiva.com.br

Capítulo I

A seca continuava comendo bicho e gente. Quase todos os barreiros e cacimbas já tinham secado. Os catingueiros fugiam para a beira do rio, acampando na sede do município. Comiam o que encontravam pela frente. O povo tinha medo. O comércio de cereais e alimentos fechava as portas; o risco de saque era grande. O prefeito pouco fazia, dizia sempre:
— Não sou Deus pra fazer chover!
— O senhor não é Deus, mas é a autoridade maior da cidade.
— Mas não sei fazer chover.
— Então vá pra Bahia.
— Na Bahia já estamos.
— Vá pra capital, onde está o governador.
— Fazer o quê, meu Deus do céu?
— Buscar comida e bebida para o povo que está morrendo de fome.
— Essa foi boa, Antônio Souza; você quer que eu traga água de Salvador? Só se encher um bocado de tambor com água do mar, botar em cima do caminhão e mandar deixar em Remanso.
— O senhor é muito cínico, seu prefeito. Água aqui tem demais. Esta cidade só existe porque existe o Rio São Francisco. O senhor precisa ir a Salvador exigir do governador feijão, arroz, farinha e carne seca para esse povo faminto. Foram eles que elegeram o senhor — infelizmente.
— Está pensando que é só assim? Chegar na capital e trazer um caminhão de comida? Pra começar, tenho que marcar audiência com o governador. Depois, não tem verba sobrando. Nem frente de serviço está tendo.
— Frente de serviço não resolve.
— O que é que resolve, vereador Antônio Souza? Me diga, pelo amor de Deus!
— Dar condição ao povo.
— Mas, se não chove?
— Chove e muito. Dê condição ao povo para armazenar água pra beber e molhar as plantas.
— Você está sonhando…
— Ainda vou ser prefeito dessa cidade. Aí o senhor vai ver o que é sonhar.
— Deus não dá asa a cobra…
O dia amanheceu lindo e tenebroso. O sol despontou no horizonte pintando de dourado translúcido as águas do Rio São Francisco. As promessas continuavam acontecendo. Vanderlin Dias, fazendeiro que fez fortuna em Campo Alegre de Lourdes, oferecera cinco bois aos pobres se caísse chuva em oito dias.
— Esse homem é doido. Dar cinco bois de graça a quem nem conhece.
— Dá porque tem. Vai fazer muito bonito. Espero que Deus compreenda a boa intenção de seu Vanderlin e mande chover nesses oito dias.
— Será que está querendo se candidatar a alguma coisa?
— Só se for besta. Rico do jeito que é…
As maiores promessas eram para pagamento em rezas. Dona Miluzinha prometera uma trezena ao Bom Jesus:
— Vamos rezar é uma trezena. Treze dias de reza e foguetes para essa chuva cair logo.
— Por que isso, Miluzinha? A senhora mora na cidade, onde tem muita água e chuva não faz falta. Prometeu logo uma trezena?
— Sou filha de Deus. Amo meu próximo como a mim mesmo. O sofrimento do catingueiro também é meu sofrimento. Minha fome não se saciará se meu irmão da caatinga continuar sofrendo.
Muitos santos foram roubados. Seriam entregues aos donos, em procissão, debaixo de cânticos e rezas, assim que caíssem as primeiras gotas d’água. Mas, nenhuma promessa alcançou a iniciativa das Legionárias Filhas de Maria, da igreja Matriz. A presidente da Legião, Mariinha da Conceição, nascida em oito de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição — daí o seu nome — convidou o padre para falar-lhe da maior promessa de todos os tempos!
O padre atendeu:
— Estamos aqui, dona Mariinha e amigas legionárias, atendendo ao convite. Estou curioso para saber de que forma as senhoras participarão da cruzada cívica contra a seca.
Dona Mariinha ajeitou-se no banco, armou-se dos óculos… — Padre, nossa força é a reza. O apego à nossa mãe Maria. Queremos fazer uma promessa de reza.
— Muito bem, em que participarei?
— Anunciando na missa de hoje e de amanhã. E que nos ceda as instalações da igreja.
— A igreja não é minha, é de vocês. Que promessa é essa?
— Vamos selecionar cinco legionárias. Juntas, rezaremos três mil terços pedindo a intercessão da Virgem Maria para que a chuva caia no Remanso.
— Três mil terços? Não acham demais?
— Vamos rezar em vinte e quatro horas. Começaremos amanhã, depois da novena. Vamos jejuar e dormiremos aqui mesmo. Alguma coisa a acrescentar, legionárias?
Edite Soeiro pediu a palavra:
— Espero que a Mãe do céu nos dê força e saúde para conseguirmos nosso objetivo.
— Será necessário mesmo, dona Edite Soeiro. Três mil terços não são três terços. A responsabilidade é grande, promessa é dívida.
No outro dia, após a novena, as legionárias que pagariam a promessa permaneceram na igreja. De manhã, cedo ainda, comentava-se que já tinham rezado mais de mil e duzentos terços. Zé Revestrés não acreditou:
— Não acredito mesmo. Devem ter saltado a metade dos mistérios. Impossível rezar mil e duzentos terços numa noite só.
— É verdade, Revestrés. Rezaram mesmo. O padre anunciou na missa.
— Anunciou o que não viu. Foi emprenhado pelos ouvidos.
— Olhe o respeito. Todo mundo sabe que você não acredita em Deus.
— Não acredito nesses homens que dizem ter poder de perdoar pecado.
— Todo padre tem. Foi legado pelo papa.
— O papa também é homem. Um homem não tem poder de perdoar outro homem.
A conversa evolui para discussão. Isaías, conhecido como Profeta, conversador e contador de casos, chegou desafiando: — O melhor vocês perderam.
— Vocês quem? — questionou Revestrés. — Eu sou homem de perder nada?
— Pois, perdeu. Perdeu a maior confusão ontem na igreja.
— Confusão na igreja? — admirou-se Pedrinho Teófane. — Que hora foi essa confusão?
— Estava em casa pegando a resenha da Globo quando ouvi gritos vindos da igreja. Percebi que era gente. Desliguei o rádio, apurei os ouvidos. Era gente conversando na igreja mesmo.
— Deviam ser as mulheres rezando os três mil terços. Não sabia, não?
— Guardei o rádio e caminhei para a igreja. A porta estava fechada.
— Lá dentro, trancadas, as legionárias de Maria faziam vigília e rezavam os três mil terços.
— Pra que tanta penitência? Não estão fazendo as novenas, trezenas e outras mais?
— Revestrés, se não acredita, respeite a fé dos outros.
— Posso até não acreditar, mas gosto. Gosto de novena, trezena, missa, benção e tudo mais, porque a Maroca, minha mulher, não perde uma.
— Não entendi…
— Não entendeu? Ela vai pra igreja e eu vou pra rua.
Profeta continuou o relato; Revestrés só falava o que não prestava. Pedrinho Teófanes queria detalhes do ocorrido. Pediu que terminasse a conversa. O conversador atendeu.
— A porta estava fechada. Não podia entrar. Os gritos vinham de lá mesmo. O que fazer? — Isaías tirou uma baforada no cigarro sem filtro… — Só tinha uma saída: entrar pela janela. Mas, também estava fechada. Os gritos ficaram mais fortes. Eram gritos diferentes. Precisava ver o que ocorria. Pedi perdão a Deus e tentei forçar a janela. Não consegui, estava com a taramela. E agora?
— Agora vou tomar uma pra esquentar — cortou a conversa Revestrés.
— Não estou falando com você, depravado! — respondeu Isaías.
— Vá para o inferno!
— Então você acredita no céu! Está me mandando para o inferno…
Isaías Profeta continuou:
— Corri a igreja quase toda, porta por porta. Descobri uma aberta, no fundo da sacristia. É por aqui, pensei. Empurrei devagarzinho. Assustei-me; alguma coisa caiu atrás da porta. Meu Deus, é armadilha…
— Teve coragem de entrar?
— Já estava na chuva… A curiosidade era maior. Empurrei a porta devagar, até abrir. Botei a cabeça, escondendo o corpo. Ninguém na sacristia. Atrás da porta alguma coisa reluziu, brilhou com a luz da lua .
— O que era?
— Não lhe conto, Pedrinho. Alguém tinha escondido uma bandeja, certamente pra pegar depois.
— Fez o que com a bandeja?
— Trouxe pra casa.
— Vai ficar com ela?
— Quero dar de presente à paróquia, através do vigário.
— Se ele disser que foi você que pegou?
— Tenho você de prova.
— Não me bote nessa história, pelo amor de Deus. Nunca fui ladrão.
— Ladrão é sua mãe! — respondeu Isaías Profeta.
— Desculpe, não quis dizer isso. Conte o resto da história. Por que as mulheres gritavam?
— Não vou contar, não! Essa você vai ficar sem saber, como castigo. Da próxima vez preste atenção no que falo e me respeite.
Isaías Profeta saiu derrubando cadeira. Revestrés tomava a segunda dose de cachaça. Cuspiu longe atendendo recomendação de Pedrinho.
A conversa já estava na rua. As legionárias de Maria tinham rezado mais de mil e duzentos terços. À meia noite, em ponto, foram despertadas por uma visagem. Uma mulher toda de branco apareceu na frente do altar-mor. A igreja estava na penumbra, apenas com o fifó do sacrário — aquela luzinha que não apaga nunca, mas, deu para ver: a visagem vestia uma roupa comprida, clara. Com certeza era a Virgem Maria!

***

O padre convocou reunião com as autoridades, do Juiz de Paz ao diretor do Ginásio, para testemunhar o relato das legionárias. A igreja assumiu um ar de alegria. Resolveram fazer a reunião no conjunto dos primeiros bancos, em frente ao altar onde aparecera a visagem. Seria mais fácil demonstrar o ocorrido.
Inicialmente tomou a palavra a autoridade eclesiástica, padre Mário. Agradeceu o comparecimento de todos. Estava ali atendendo a um apelo das legionárias. Solicitaram a reunião com a finalidade de divulgar as últimas ocorrências religiosas. Ele, padre Mário, representava também o bispo de Juazeiro, dom Antônio José, o pastor maior da paróquia de Remanso. Após a abertura o padre solicitou que cada um se apresentasse e ficassem devidamente registradas as presenças. Secretariando a reunião, a professora Beatriz; uma das mais versadas intelectuais da cidade.
O primeiro foi o Promotor Público, guardião dos costumes e da lei: — Todos me conhecem, sou o Promotor Público desta comarca e fui batizado na igreja católica com o nome de José Porfírio. Nasci na região, precisamente em Petrolina, Pernambuco. Minha família assumiu a lei como forma de prestar serviços à comunidade.
Após, apresentou-se o diretor do Ginásio:
— Meu nome é Altamirando Ribeiro. Nasci aqui mesmo, onde ainda moram meus familiares. Tenho visto muitas coisas nesse sertão da Bahia, mas, garanto, o que testemunharei nesta reunião meus olhos e ouvidos jamais conheceram.
O advogado rábula, doutor Tenório, representava a liderança local. Bom orador, discursou:
— Amigos remansenses; talvez tenha chegado a hora de a cidade testemunhar uma grande revelação. Eu me sinto humilde, pequenino até, para merecer ouvir o relato sublime e encantador, que, certamente, teremos aqui. Sou todo ouvidos para o que vier da boca das senhoras legionárias.
O delegado municipal, Protógenes Braga, mais conhecido como Toginho, colocou-se à disposição: — Bem, meus amigos, represento pouco. Não sou rico, não sei discursar. Represento a força policial; os dois soldados que deixei no quartel tomando conta dos presos. Estou aqui para manter a ordem, aconteça o que acontecer.
Zé Mariano da Alda manifesta-se. Ele mesmo se convidara: — Sou apenas um vereador, cidadão remansense. Quero testemunhar o relato dessas nobres senhoras sobre o ocorrido. Me perdoe o reverendo padre Mário. Não sou católico praticante. Faço minhas orações escondido no fundo da alma. A melhor oração sai do coração para o ouvido de Jesus Cristo.
As palavras arrancaram aplausos; Zé Mariano agradeceu. O padre pedia calma; ali não era lugar de comício eleitoral. Magoou Zé Mariano, que revidou:
— Padre Mário, até compreendo o senhor não me convidar. Afinal, nada sou além de um vereador. Quem representa a Câmara Municipal é seu presidente, Antônio Souza, que está presente. Vim por conta própria, preocupado com as coisas da minha terra. Nasci aqui. Tenho o dever de me preocupar com tudo que se refere a Remanso. Peço desculpas se arranquei aplausos das pessoas aqui presentes.
O padre não gostou. Treplicou:
— Para encerrar, seu Zé Mariano, o senhor não está falando como remansense comum. Este está na roça, no mato, nas bodegas da cidade. Fazendo calo nas mãos para garantir o sustento da família. O senhor está falando como político. Todos sabem que o candidato do atual prefeito é o senhor, seu seguidor há mais de vinte anos. Aqui não é palco para político. Mais respeito com o relato que virá. Vamos passar a palavra adiante.
Zé Mariano mudou de cor. De branco-rosado ficou vermelho queimado. Levantou-se. Assumiu posição de ataque, disparou:
— Peço permissão às senhoras da legião para concluir minha apresentação. Parabenizo pela forma corajosa, natural e sublime, de pedir a ajuda de Jesus Cristo. Esta responsabilidade seria da autoridade maior da igreja católica, que está aqui presente. Mas essa autoridade, que é o Reverendo Mário, só cuida dos interesses do grupo político do partido dos batalhadores, aliás, dos trabalhadores. Padre, não sou candidato. Mas tenho o direito de pleitear candidatura a prefeito da minha terra e enfrentar seu partido político, que é o partido do comunismo.
O Padre levantou-se agitado. Percebeu a resistência de Mariano, que continuou:
— Por favor, Reverendo, respeite a casa de Deus. Não se altere. Aproveito para lançar, aqui, nesta casa de oração, minha candidatura a prefeito. Meu partido será o partido do povo, do pobre, do beiradeiro e do catingueiro. Muito obrigado!
Padre Mário empalideceu, da cor de papel branco. Dona Maricotinha o colocou a sentar. Foi à sacristia, voltou com um copo de água: “É água pura. Beba . É bom. Tá sem açúcar.” Do meio dos presentes, alguém balbuciou o suficiente para ser ouvido: “Devia trazer era um pouquinho de vinho.”
O padre bebeu a água, gole a gole. Agradeceu…
— Peço desculpas aos presentes. Aqui é a casa de Deus. Testemunharemos o relato das legionárias de Maria. Alguém mais quer se apresentar para ter o nome na ata?
Levantou-se Nilton Moura:
— Sou Nílton Moura Fé. Gosto desta terra como se aqui tivesse nascido. Fundei o partido de oposição, estou ao lado do povo. Como representante do povo vim para testemunhar.
O presidente da Câmara não gostou da interferência de Nílton Moura: — O senhor não pode dizer que é representante do povo.
— Sou, sim.
— O senhor não é representante do povo porque nunca foi eleito para nada.
— Mas me considero representante do povo.
— Ninguém representa o povo sem que o povo outorgue a representação através do voto. O senhor nunca foi eleito, portanto, não é representante do povo.
— Nunca fui eleito, mas já me candidatei várias vezes, inclusive a deputado estadual!
— Nunca se elegeu, portanto…
— Não fui eleito porque você e outros nunca deixaram.
— Quem elege é o povo. Não somos o povo.
— Faz conchavo com os grandes e poderosos. Saem comprando os votos que seriam meus. Por isso nunca me elegi.
— Na última eleição o senhor só teve doze votos para vereador.
— Porque fui traído. Na véspera você vendeu a honra e o apoio político ao prefeito. Quem lhe deu aquela camioneta nova nas vésperas da eleição? O Remanso sabe que veio do prefeito.
— Se você fosse vereador mesmo, eleito, eu pediria sua cassação por falta de decoro parlamentar.
Doutor Tenório intercede:
— Se estaria faltando decoro numa câmara municipal, um ambiente profano, imaginem o que está faltando aqui, que é uma casa de oração? Só falta chamar a polícia.
O padre tomou para a si a coordenação:
— Não permitirei que se excedam nos comentários. Alguém mais quer se apresentar para o nome sair no livro? Quero lembrar que a ata vai chegar ao Santíssimo padre, o Papa Paulo VI.
Do penúltimo banco manifesta-se Hemitério Santana, Juiz de Paz, dono de bom discurso:
— Amigos conterrâneos, vim com o objetivo de testemunhar o relato das legionárias. Não ia me manifestar. Agora o faço, levado exclusivamente pelo que acabou de dizer o reverendo Mário: a ata dessa reunião chegará ao santo padre, o Papa. Que o meu nome vá até o Vaticano e receba a benção do sucessor de São Pedro.
Do outro lado levanta-se um senhor sisudo:
— Meu nome é Carlos Vicente. Me conhecem mais como Vicentinho. Nasci no município de Sento Sé, localidade de Aldeia. Perambulei por muitos lugares, sofrendo e pedindo para sobreviver. Vim parar aqui, onde vivi anos e anos, morando ao lado do bom amigo Artur Freire, numa casa abandonada. Comia o que me dava de bom coração dona Valdete, sua esposa. Fui motivo de chacota. Recebi pedradas e mais pedradas, de menino e de gente grande também. Andei como um farrapo humano até que um dia sonhei. Uma voz me dizia: vai, Vicentinho, ao Juazeiro! Peça ao doutor Marcelino que interne você num hospital e ficará bom.
E assim fiz. Estou bom, amigos. Já não sou o Vicentinho. Agora sou Carlos Vicente Ribeiro, um cidadão como todos vocês.
Maricotinha assustou-se com o relato de Vicentinho:
— Padre, aquele é o Vicentinho. Ele é doido, não pode participar da reunião. Pra fora, Vicentinho!
Vicentinho ouviu quieto. O padre cruzou as mãos sem saber onde coloca-las. Delegado Protógenes disse em bom som:
— Estou às ordens, reverendo. Se quiser boto pra fora agora!
Vicentinho falou com tranqüilidade:
— Muito obrigado pela acolhida, dona Maricotinha. Continuo a mesma pessoa. Pode me chamar de Vicentinho. Agora mude o respeito. Quanto ao senhor delegado, que tantas vezes me escorraçou, como se faz a um cachorro, ameaçando-me colocar no xadrez, digo: conheço de lei mais que o senhor. Toda sua autoridade não pode colocar-me para fora. A Constituição me garante o direito de ir e vir, mais ainda neste recinto, que é público. Esta casa tem como lema, determinado pelo Pai dos pobres, Jesus Cristo, a humildade. Exatamente o que lhe falta, caro delegado.
Delegado Protógenes procurou a arma:
— Me respeite, maluco! Quem é você para falar assim com uma autoridade?
— Bem disse o delegado no início: sua autoridade só vai sobre os dois soldados que estão na delegacia a olhar os presos. Não sou soldado nem preso.
Maricotinha teve uma crise de tosse; correu a beber água . O delegado danou-se a tremer; sentou para não desmaiar. Padre Mário, mesmo acostumado a situações delicadas, suava. As demais autoridades esperavam o desenrolar dos fatos. Exceção de Artur Freire, elogiado por Vicentinho:
— Amigo, você diz que me deve favor. Perambulou pelo mundo atrás do quê-não sabe, feito farrapo humano. Escorraçado pelos cachorros e até pelo delegado, no cumprimento das suas obrigações de autoridade. Disse também que se arranchou numa casa velha, vizinha à minha residência, onde vivia da comida que lhe dava minha mulher Valdete. Pergunto-lhe do alto da minha ignorância: quem é você?
O senhor barbudo apalpa os cabelos brancos:
— Sou eu mesmo, seu Artur. Sou o Vicentinho. As suas calças usadas cobriram meu corpo por muitos e muitos anos. Da sua família recebia o único afeto durante o tempo que vivi na escuridão. Você para mim foi mais que um pai. Ajudou-me a sobreviver na clausura, encerrado do mundo, sem nada compreender. Sem saber de onde vinha e muito menos pensando para onde pudesse ir. Seu Artur, acredite, estou vivo graças a meia dúzia de pessoas de bom coração. Que me ajudaram a viver como Vicentinho, o maior louco que o Remanso já teve. Hoje já não sou o Vicentinho. Meu nome é Carlos Vicente Ribeiro. Voltei para pagar o que o devo à cidade de Remanso.
Vicentinho falante, bem apessoado, pensamentos claros. Seu Artur continuou:
— Vicentinho, a última vez que nos vimos foi numa manhã ensolarada como hoje. Estava no meu armazém e recebi um recado. Você tinha entrado num paquete e desaparecido rio abaixo. Presumimos que sua morte fosse a alternativa mais concreta. Quanto ao paquete, certamente, teria descido o rio, até ser apossado por alguém. Afinal, que aconteceu?
— Amigo seu Artur, fui embora. Como havia dito, fui ao Juazeiro. Improvisei remos com as mãos. Desci a correnteza. Quase morro na cachoeira de Sobradinho. Dormi pelas barrancas, comendo frutos que desciam pelo rio. O peixe me alimentou quando encontrei uma pequena rede de pesca. Comia cru mesmo, apenas seco pela calor desse sol que todos conhecemos.
— Foi fazer o que no Juazeiro?
— Buscar minha cura. Tinha uma pequena lembrança de Juazeiro, terra onde morei. Procurei doutor Marcelino Ribeiro. Não acreditou que fosse eu: “Você desapareceu há mais de vinte anos! Já devia estar morto”.
Convenci o grande doutor que não estava morto. Estava louco, sem juízo, queria me curar. Fui internado. Passaram ferros na minha cabeça. Choques e mais choques. Sofria, mas não me queixava. Queria me curar e me curei, seu Artur. Depois de quase dois anos de tratamento, coordenado pelo próprio Marcelino, virei outro homem. Um dia ele me disse: “Você vai voltar a ser o bom advogado que era”. Fiquei sabendo que fora um dos bons advogados de Juazeiro. Estudei para recuperar a sabedoria jurídica. Voltei, seu Artur, a Remanso, como advogado. Quero retribuir o que essa cidade fez por mim, aconchegando por mais de dez anos um débil mental.
Delegado Protógenes aos poucos recuperava as emoções. Balbuciou ao ex-louco:
— Me desculpe, seu Carlos Vicente. Se quiser pode me prender.
— Em absoluto, delegado. Pode continuar me chamando de Vicentinho, é assim que quero. Depois, não tenho nenhuma razão para prender uma autoridade. Não tenho poder para tal.
Artur Freire fez mais uma pergunta:
— Vicentinho, veio aqui fazer o quê?
— Amigo Artur, permita a intimidade, aqui nada vim fazer. Voltei para morar. Minha intenção é estabelecer-me como advogado e trabalhar para retribuir um pouco do carinho recebido.
Uma voz, a mesma voz, soou atrás:
— Ele veio pra ser político! Vai ser candidato a prefeito!
Zé Mariano estremeceu-se. O padre assustou-se. O Promotor abriu os ouvidos . O delegado virou-se para reconhecer o dono da voz. Maricotinha benzeu-se:
— Cruz credo, aqui na igreja não é lugar de falar em política.
Vicentinho permaneceu tranqüilo, como se as palavras não lhe fossem dirigidas.
— Reverendo, autoridades e amigos; da minha boca não saíram palavras que, pelo menos, indicassem pretensão de candidatar-me a qualquer cargo eletivo. Mas não ficarei de fora; ajudarei o candidato que tiver condições de servir a esse município, meu por adoção.
Padre Mário pediu a palavra:
— Amigos, depois de muita conversa proveitosa, chamo a atenção para o objetivo da reunião. Peço encarecidamente à secretária Beatriz que não registre todos os diálogos na ata, que irá, repito, ao conhecimento do santo Papa. Certamente ficará intrigado com os assuntos que foram, até o momento, aqui tratados. Mais alguém quer se apresentar?
Da platéia um jovem magro e tímido:
— Padre, autoridades presentes, meu nome é Raulzinho. De batismo, Raul Borges Barbosa Júnior. Nasci em Remanso, sou filho da Adinólia e do Raul Barbosa. Meu pai queria vir. Estava muito ocupado, cortando cabelo na barbearia. Vim por conta própria. Ainda não sou adulto, pretendo acompanhar tudo que acontece no Remanso, pois quero ser um cidadão participante. Gosto muito de música. Sou compositor, tenho mais de cinqüenta músicas já prontas. Vim para ouvir o relato das legionárias. Terminei presenciando uma das partes mais bonitas da minha vida, que foi o reaparecimento do maluco Vicentinho, agora vestido de advogado, como de fato é. Seja bem vindo, Vicentinho! Essa cidade precisa de gente que tenha amor no coração. Você sentiu a necessidade de retribuir o que Remanso lhe ofereceu. Vou fazer uma música para você. Se se candidatar a prefeito vou ser seu eleitor. Aliás, ainda não voto. Mas vou arranjar muito voto para você.
As palmas vieram após a manifestação do menino Raulzinho. O padre inquietou-se; era arriscado não concluir a reunião. Já passava das onze, quase a hora do almoço. Resolveu apresentar as legionárias de Maria, todas com a medalha da protetora no peito, roupa azul marinho e véu sobre a cabeça. Um missal de orações enfeitava a mão de cada uma. Virando-se para as legionárias, falou:
— Este é um momento solene. Pela primeira vez uma reunião para relatar um acontecimento espiritual relevante. O município vive a pior seca do século. Os animais estão morrendo. Pessoas estão sendo comidas pela fome e pela sede. Nossas irmãs legionárias não poderiam ficar alheias ao sofrimento do povo. Resolveram, por conta própria, fazer promessa a Jesus, com intercessão da Virgem Maria, para que as chuvas voltem a molhar nosso chão. Em troca deliberaram rezar três mil terços — ouviram? três mil terços! — não parando nem para comer ou beber. Ofereceram o sacrifício às três pessoas da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, para que se apiedem e mandem chuva para nosso sertão. — E continuou. — Entretanto, amigos, nessa madrugada, por volta da meia-noite, aconteceu um fato inusitado enquanto as legionárias rezavam. Não vou contar-lhes. Quero chamar dona Mariinha Conceição, presidente das legionárias, para que proceda ao relato. Por favor, dona Mariinha, queira chegar a frente.
Mariinha atendeu ao chamado. Professora de profissão, sua escola era reduto do bom aprendizado. Sempre com o missal à mão, iniciou:
— Autoridades civis, eclesiásticas e militares, senhores e senhoras. Minha vida mudou a partir dessa madrugada. Tive a felicidade eterna de presenciar uma passagem que marcou profundamente. E marcará a própria cidade, quando for divulgada pelos meios de comunicação. Sugeri ao padre convocar os jornais da capital e a Emissora Rural de Petrolina, para este momento tão solene. Merece ser do conhecimento de todos que amam a Deus e a Virgem Maria. Infelizmente o telégrafo está quebrado. As chuvas devem ter derrubado os fios da transmissão telegráfica. Cabe a nós registrarmos tudo e passar, fielmente, aos meios de comunicação, ao bispo, e, daí, ao Papa. Por isso o padre convocou todos vocês. Para que testemunhem e assinem a ata, o documento mais importante jamais produzido em Remanso. Quero chamar Edite Soeiro para iniciar a apresentação, ela, que primeiro percebeu a visagem.
Edite Soeiro caminhou, devagar, terço na mão e véu sobre a cabeça:
— Querido padre, autoridades, meu nome é Edite Soeiro. Nasci aqui no Remanso mesmo. Sou de família pobre, mas ilustre; que muito já contribuiu com esta terra. Meu pai foi prefeito duas vezes, no tempo em que era função de responsabilidade. Não igual a hoje, quando prefeito só pensa em se locupletar de dinheiro. Comprar fazenda, apartamento, carro e até barca grande para passear no rio São Francisco. Ser prefeito hoje é o início da degradação. É logo chamado de ladrão, como de fato quase todos são. Não existe mais aquela responsabilidade. Quando meu pai era prefeito nossa casa andava cheia de gente, matando a fome com comida comprada com dinheiro do bolso dele mesmo. Queria ver meu pai, quando era prefeito, não estar presente em todo batizado, casamento ou formatura. Hoje, não; nem para esta reunião o prefeito foi convidado.
Padre Mário tossiu. Permaneceu olhando Edite Soeiro, que percebeu o recado:
— Senhoras autoridades, eu estava terminando o quarto mistério, um pouco cansada, pois já tinha rezado duzentos e sessenta e dois terços, quando alguma coisa me mandou olhar o altar. Percebi algo diferente. O missal estava em cima do altar. Quem trouxe aquele missal, se o padre não estava na igreja? Fiquei olhando. Vi uma sombra cruzar e ajoelhar-se em frente ao altar. Fiquei toda arrepiada. As legionárias continuavam rezando de olhos fechados. A sombra então desapareceu. Fiquei com medo de ser um mau elemento, com intenção de se apoderar das relíquias da nossa paróquia. Procurei me esconder atrás da pilastra. Esperei um pouco e caminhei ao centro do salão em busca de melhor visão. Deparei com o vulto branco no altar-mor, onde fica a imagem da Virgem Maria. Desmaiei na hora. O barulho da queda despertou as legionárias da vigília. Encontraram-me no chão, com o braço desmentido. Me levantaram pelos braços. Gritei de dor. Disse-lhes que tinha quebrado o braço. Por que você caiu? — perguntaram-me. Respondi que tinha ido ver uma visagem branca em frente ao altar-mor.
— Que tipo de visagem? Quer detalhar, por favor? — interferiu o reverendo. — Quero pedir à professora Beatriz que não deixe passar um só detalhe do relato, o mais importante na história de Remanso.
A legionária continuou, emocionada. Os presentes ouviam atentamente. Vicentinho demonstrava interesse. Zé Mariano escutava com o lenço na mão, enxugando as lágrimas que lhe desciam a face de vez em quando. Chamava a atenção do vereador Antônio Souza, presidente da Câmara Municipal, que nunca admitira que homem chorasse. Mandava recado baixinho:
— Ele está querendo aparecer. Disse que é candidato a prefeito, já está agindo como político em campanha. São lágrimas de crocodilo.
O menino Raulzinho arranjou papel e lápis. Anotava e rabiscava algumas frases ditas pela legionária. Dali sairia uma música, no mínimo um poema. O Juiz de Paz, Hemitério Santana, preocupava-se com o tempo. Deixara seu armazém entregue aos empregados. Fora informado que a reunião não duraria mais de uma hora; já tinha três horas. Impaciente, procurava um relógio. O padre o repreendeu:
— Olha o silêncio… Vamos prestar atenção. A responsabilidade de vocês é muito grande.
O padre, então, repetiu a pergunta a Edite Soeiro:
— Responda, dona Edite: que tipo de visagem a senhora teve? Seja o mais clara e fiel possível.
Edite fechou os olhos buscando concentração:
— Padre, sinceramente, no início, logo depois que me pegaram, não via quase nada. Na queda meus óculos quebraram. Perguntei logo por eles. As legionárias me deram só a armação: “Estão aqui seus óculos. Quebraram as duas lentes. Leve a armação para mandar fazer em Juazeiro. Sua sorte é ter outro em casa” – disseram. E tenho mesmo, este que estou usando.
O padre continuou a interrogação:
— Dona Edite Soeiro, por favor, seja clara e se apegue aos detalhes.
— Que detalhes, padre? O senhor acha que não estou sendo clara? Mais clara é impossível.
— Dona Edite, por favor, compreenda; este é um momento muito importante para a cidade.
— Por acaso estou dizendo que o momento não é importante?
— A senhora viu o que?
— Como ia ver sem óculos? Sem óculos não enxergo nada.
— A senhora não viu absolutamente nada?
— Vi sim, senhor. Vi muito claramente.
— Viu o quê?
— O que já falei. Vi a sombra ajoelhando em frente ao altar da missa.
— E o que mais?
— Um vulto branco em frente ao altar, perto do lugar onde fica a imagem da Virgem Maria.
— Viu mais alguma coisa?
— Padre, já disse que só vi isso. Não vi mais porque fiquei sem óculos. O senhor quer que eu minta? Acabei de rezar mais de duzentos terços. Mentir não posso.
— A senhora ouviu alguma coisa? Não podia ver, mas podia ouvir.
— Ouvi os morcegos voando e soltando aqueles gritos finos. Ouvi também uma coruja piando no coro da igreja. Uma “rasga-mortalha” cantou lá fora. Pensei comigo: deve ser o agouro que desmentiu meu braço.
— A senhora ouviu alguma coisa da visagem?
— A visagem branca não falou nada que eu ouvisse. Tive a impressão de ter ouvido um barulho de porta abrindo, no lado da sacristia.
— Tem certeza?
— Certeza, não; tive a impressão. Certeza de jeito nenhum.
A plateia inquietou-se. Raulzinho rabiscava, rápido como jornalista antes de aparecer gravador-miniatura. O Juiz de Paz, Hemitério Santana, toda hora mudava a posição de sentar. O presidente da câmara, vereador Antônio Souza, acompanhava atentamente o relato. Zé Mariano, chorando, chamava a atenção de todos. Maricotinha trouxe-lhe água:
— Tome um copo de água. Mas está sem açúcar.
O nobre vereador bebeu devagar. Agradeceu, enxugou o rosto suado. Vicentinho, com semblante tranqüilo. Moreno, cabelos esbranquiçados, não lembrava a figura maluca a cortar as ruas, dia e noite, sem parar. Não raramente, totalmente nu por não ter juízo. Reapareceu doutor.
O padre, na sanha inquiridora, cobrando definição de Edite Soeiro, que diminuía mais ainda de tamanho frente à pressão do vigário: — Dona Edite Soeiro, a senhora não viu mais nada? Não ouviu mais nada? Quem mais viu alguma coisa?
Da platéia levanta a mão Isaías Profeta. Queria falar. O padre fez que não o viu. Repetiu a pergunta. Isaías Profeta levantou o braço novamente. Continuou com o braço levantado. O reverendo sem dar atenção. Intercede o vereador Antônio Souza:
— Reverendo, o senhor ali — como é seu nome amigo? — Isaías Gonçalo. — O senhor ali quer usar da palavra.
A contragosto o padre respondeu:
— Agora é impossível. Estamos apenas começando o relato. Peço ao senhor Isaías, vizinho que pouco freqüenta esta igreja, esperar o momento oportuno para se manifestar.
— Mas padre, eu queria…
— O senhor vai querer depois; por enquanto o relato. Dona Edite, me responda: quem mais viu alguma coisa?
Edite não respondeu. Voltou ao seu lugar e sentou-se. O padre não gostou.
— Dona Edite, este é um momento muito importante na vida de todo nós. A senhora já ouviu falar na santa inquisição?
— Cruz credo, satanás! — respondeu benzendo-se com o sinal da cruz.
O padre levantou-se, dedo em riste:
— A senhora está blasfemando!
— O senhor me respeite! Tenho mais de trinta anos de Legião. Nunca blasfemei.
— A senhora acabou de blasfemar, todos são testemunhas. Se fosse no tempo da inquisição a senhora, dona Edite Soeiro, ia limpar a alma na fogueira.
— O senhor me respeite, já disse. Quem ia pra fogueira era o senhor, me condenando pelo que não fiz.
— Como não fez? A senhora acabou de blasfemar.
— O senhor me diga onde blasfemei.
— Acabou de pronunciar o nome de satanás dentro da casa de Deus, numa reunião tão importante.
— O senhor é que está blasfemando, querendo que eu minta. Que fale do que não vi.
— Amanhã quero a senhora no confessionário.
— E o senhor vai se confessar a quem?
— Se continuar com esse comportamento vou excomungar a senhora.
— Quem é o senhor pra me excomungar?
— Sou o pastor desta paróquia. Basta fazer uma carta ao santo padre, o Papa, falando os motivos e as graves acusações que pesam sobre a senhora.
— Se o senhor me acusar, acuso o senhor.
— A senhora vai me acusar de quê?
— O senhor sabe muito bem. Aliás, sabe melhor do que eu.
— Minha vida é um livro aberto, todo branco. Não tem mácula nem pecado. A senhora está me caluniando e calúnia é pecado, dona Edite.
— O senhor pare com isso.
— Quero a senhora amanhã, aliás, hoje mesmo, no confessionário. Caso contrário vou pedir sua excomunhão.
— Se o senhor pedir, peço também a do senhor. Sou capaz de ir ao bispo em Juazeiro e até ao Papa, contar tudo a eles.
— Contar o quê? Já disse que minha vida é um livro aberto. A senhora não tem nada pra contar.
— O senhor quer que eu conte aqui e agora?
O reverendo empalideceu, parou no tempo. Edite Soeiro repetiu a pergunta:
— O senhor quer que eu conte aqui e agora?
O reverendo respondeu:
— Não permitirei que esta reunião perca seus objetivos. Não misture coisas pessoais com a sublimação desse momento. Vamos continuar ouvindo o relato.
Hemitério Santana, Juiz de Paz, impacientou-se de vez. Saiu de fininho.
— Vai para onde, senhor Hemitério? — O homem assustou-se. O padre continuou: — Se vai a procura de água aqui na igreja não tem.
Hemitério vislumbrou a saída. De fato ia correndo para seu armazém, que ficara na mão dos outros. Mas não caia bem declarar tal coisa. Respondeu ao reverendo:
— Padre, com licença da palavra, não agüento mais.
— Não agüenta mais? O senhor como Juiz de Paz é autoridade no município.
— Sei disso, padre, mas não agüento mais.
— O senhor não está gostando do relato? Ainda estamos na metade.
— Estou gostando. Mas não agüento mais.
— Senhor Juiz de Paz, nem a ata vai assinar? o seu testemunho é importante.
— Posso assinar depois.
— Como vai assinar, ou seja, se responsabilizar por algo de que não participou?
— Eu participei, padre.
— Mas está indo embora.
— Não fico porque não posso. Não agüento mais.
— Não agüenta o quê, homem de Deus?
— Estou com vontade…
— Vontade de que? Pode se expressar melhor?
— Estou com vontade daquilo…
— De comer? Já está com fome, seu Juiz de Paz?
— Tou não, seu padre. Não estou com fome, não.
— E está com vontade de quê?
— De ir na privada. Não agüento mais.
— Na privada, seu Juiz? Como uma autoridade é capaz de misturar tanto as coisas?
— Não estou misturando, não. Estou com vontade mesmo.
— Espere só um pouco mais.
— Não aguento. Se aqui na igreja tivesse uma privada…
O Padre, semblante agressivo, investiu contra Hemitério Santana: — Vai-te embora, satanás! Respeite a casa de Deus. Acha que vou permitir colocar uma privada aqui na igreja? Essa é maior depravação que já ouvi. Vá embora para a sua privada.
Hemitério Santana escapuliu correndo, segurando as calças. Foi para o armazém, tomar conta do que era seu. O padre continuou falando e falando. Por fim a secretária da reunião, professora Beatriz, interviu:
— Padre Mário, o senhor quer que coloque essas coisas na ata?
— A senhora é maluca, dona Beatriz?
A professora baixou a cabeça. Maricotinha chegou com mais um copo com água: — Toma, padre. Para o senhor se acalmar. Só não tem açúcar.
— Não estou nervoso, Maricotinha. Já sei muito bem que não tem açúcar.
— Meu nome não é Maricotinha, padre. É Maria. O nome da mãe de Jesus.
O padre bebeu compassadamente. Respirou fundo, arrotou alto. Assustou-se com o ato, pediu desculpas. Maricotinha falou-lhe ao ouvido. O padre franziu a testa:
— Não tem, dona Maria, vou fazer o quê?
Maricotinha voltou a falar-lhe ao ouvido. O pároco reagiu: — Dona Maricotinha, não me fale em segredo. É falta de educação.
— Já lhe disse, padre, meu nome é Maria. O mesmo nome da mãe de Jesus.
— Tá certo, dona Maria. Agora peço: não me fale em segredo. Fica parecendo fuxico. Ainda mais numa reunião como essa, com todas as autoridades.
— Não estou vendo autoridade nenhuma. Nem o prefeito está aqui.
— A senhora respeite as autoridades aqui presentes.
— A autoridade maior não está aqui.
— Quem é essa autoridade maior?
— Ora, padre, o prefeito.
— A senhora sente falta de um homem daqueles? Deve estar em casa de pijama.
— O maior prefeito que Remanso já teve.
— Todo mundo sabe, dona Maricotinha, que a senhora mata e morre por esse homem. O que foi que ele já lhe deu?
— A mim não deu nada. Deu ao povo. Distribui todo dia muito saco de cimento, bloco, tijolo, telha e até caixão de defunto. E prometeu dar cinqüenta cruzeiro por mês a cada família, para que no Remanso ninguém passe fome. Acha pouco? O senhor é que não precisa. Tem o povo pra dar. Recebe tudo em casa.
— Quer dizer que recebo tudo de graça, sem trabalhar?
— O senhor celebra missa, faz batizado, casamento quando tem…
— E não é trabalho?
— Acho que não, padre. Isso é graça. É o senhor aplicando os santos sacramentos para graça do povo e honra e glória de Jesus.
— A senhora está me deixando nervoso. Respeite as autoridade aqui presentes.
— Que autoridades? Estou vendo é fofoqueiro, como o Isaías Profeta. Mora vizinho da igreja e nunca vem à missa. Não sei o que faz nessa reunião.
— Ele não foi convidado. Veio porque quis. Aqui é a casa de Deus e não vou botar ninguém pra fora.
— Então…
— Continuo dizendo, respeite as autoridades. O juiz, o Promotor…
— Justo. Esses são autoridades. Mas o que dizer do maluco Vicentinho, que já desfilou nu pelas ruas? Uma vez ele quis entrar na igreja e o senhor não deixou. Expulsou como se expulsa um cachorro.
— Dona Maricotinha, a senhora está me desmoralizando dentro da minha igreja.
— Não estou não, padre; apenas falo a verdade e a verdade dói.
— O que quer afinal de contas?
— Queria dizer uma coisa, o senhor não deixou. Ordenou que falasse alto pra todo mundo ouvir.
— Então fale de uma vez, alto ou baixo.
— Já que o senhor insiste, vou dizer: Não tem farinha de trigo pra fazer as hóstias da missa de amanhã cedo!
Todos os presentes gargalharam. O Promotor Público preparava-se para sair do recinto, tal a degradação. O Juiz já redigira uma ordem de prisão. O delegado com o papel na mão, sem saber o que fazer.
— Dona Maria, pelo amor de Deus, deixe as hóstias para depois. Estamos aqui há quase quatro horas e não conseguimos chegar a nenhum termo. Todo mundo tem suas atividades para dar conta. Vamos deixar as hóstias para depois. – pediu o padre. Maricotinha não aceitou a orientação. De pronto respondeu:
— Padre, todo mundo sabe que a responsável pelas hóstias sou eu. Amanhã na missa vai ter gente pra comungar.
— Não vai ter gente pra comungar, não. Vou dizer que não tem comunhão.
— Agora o senhor saiu da linha mesmo. Uma missa sem comunhão?
— Qual o pecado?
— A missa é a reprodução do Santo Sacrifício. A transformação do pão em corpo de nosso senhor Jesus Cristo. Daí, padre, o que o senhor vai transformar em corpo de Jesus se não tiver hóstia?
— Transformo outra coisa.
— Padre Mário, pelo amor de Deus… O senhor falou como se fosse um bruxo. Transformo outra coisa…
— Dona Maria, entenda…
— Entenda o senhor. Minha obrigação é fazer as hóstias e vou fazer.
— Faça então.
— Como, se não tem farinha de trigo?
— Arranje um pouquinho emprestado.
— Arranjar aonde? Os donos de padaria não se dão bem com o senhor, devido a problema político.
— Danou-se. A senhora só falta dizer que sou comunista.
— O senhor é quem disse. Eu não disse nada. Se bem, é o que todo mundo acha.
— E a senhora acha?
— Não vou responder. Minha obrigação é fazer as hóstias. Quero cumprir a obrigação.
— Quem lhe deu essa obrigação? Por que essa obsessão em fazer hóstia?
— Não é obsessão. É obrigação. Uma obrigação que herdei dos meus avós. Desde o primeiro padre minha família tomou para si a obrigação de fazer as hóstias. Essa obrigação virou uma devoção. Virou promessa e dedicação de vida. Minha obrigação é fazer as hóstias e vou fazer.
— Então, dona Maria, eu lhe retiro a obrigação. A senhora não está mais obrigada a fazer as hóstias.
— Quem é o senhor pra determinar isso?
— Eu sou o padre, o chefe da paróquia.
— Essa obrigação não tem nada a ver com o senhor. É obrigação com nosso Senhor Jesus, que está acima de mim, do senhor e de todo mundo aqui.
Criou-se o impasse. Maricotinha não arredou da determinação. O padre sem ter como prover a farinha de trigo. Os presentes já impacientes, aproximando-se a hora do almoço. Raulzinho rabiscava e rabiscava. Vicentinho continuava impassível, apreciando o diálogo. Isaías Profeta, o vizinho que não freqüentava a igreja, não entendia a razão para tanta discussão.
Zé Mariano, com candidatura lançada, ouvia preocupado. Lenço na mão, já ensopado de lágrimas e a suar. Resolveu pedir a palavra. O padre não concedeu:
— Seu Zé Mariano, por favor, não entre nessa discussão. O senhor não entende de hóstia nem de consagração. Já estamos atrasados.
Mariano não gostou:
— Reverendo, isto é uma afronta à democracia. Quero falar e o senhor não deixa.
— Como, se o senhor já está falando?
— O senhor é democrata no discurso. Na prática é um ditador. Quero expressar minhas idéias. A Constituição diz que a manifestação das idéias é um direito inalienável.
— O senhor assumiu ligeirinho a condição de candidato. A discussão com dona Maricotinha nada tem a ver com a importância da reunião.
— O que sei, padre, é que o senhor me negou o direito de expressão.
Maricotinha continuava à frente do padre. A figura da mulher, de pé, enervou mais ainda o vigário:
— Dona Maricotinha…
— Já disse, padre, meu nome é Maria. O mesmo nome da mãe de Jesus.
— Dona Maria, pelo amor de Deus, saia da minha frente.
— Vou sair sem a decisão das hóstias?
— Decida você mesmo. Com hóstia ou sem hóstia vou celebrar a missa amanhã cedo.
— Aí o senhor vai estar errado. Sem hóstia não pode ter missa.
— Minha senhora, a hóstia é apenas o símbolo que vai ser transformado em corpo de Cristo.
— Disso todo mundo sabe.
— Então vou trazer um pedaço de pão, benzer e transformar em corpo de Cristo.
— O senhor me desculpe, mas o povo não vai gostar.
— Não vai gostar por quê? O pão não é a mesma farinha de trigo?
— Mas foi feito por um padeiro, sem ninguém saber nem como foi feito.
— Como a senhora faz as hóstias? Alguém já viu a senhora fazer?
— Nunca viu, não. Mas faço com muito respeito.
— Não sei não, dona Maricotinha; esse negócio de só a senhora fazer as hóstias… E faz sem ninguém ver? O padeiro pode fazer também o pão com muito amor e dedicação, não pode?
— Olha, padre, se o senhor rezar a missa com um pão não piso mais os pés na igreja. Já pensou, assistir a missa e depois comungar recebendo um pedaço de cacetinho?
Delegado Protógenes levantou-se. Olhou o Juiz; a autoridade judicial nada falou. Postou-se na frente de Maricotinha e deu a ordem:
— A senhora está presa!
Maricotinha ficou aérea, sem entender a situação. O delegado repetiu:
— Teje presa, Maricotinha!
— Não me chamo Maricotinha. Meu nome é Maria, o mesmo da mãe de Jesus.
— Maricotinha ou Maria, teje presa.
— Teje-presa por quê?
— Desacato à autoridade. Acha pouco o que disse ao padre?
— Não disse nada que qualquer pessoa sã não pudesse ouvir.
— Você desacatou a autoridade.
— Desacatei como?
— Desacatando, ora. Indo de encontro ao que a autoridade falava. Negando a autoridade, falando mais alto que a própria.
— Quem é a autoridade que desacatei?
— O padre Mário, vigário de Remanso. Representa no município o bispo Antônio José. Aliás, representa o próprio Papa, a autoridade maior da igreja. Teje presa.
Ninguém esperava esse desfecho numa reunião religiosa. E pior, dentro da própria igreja. Antônio Souza, presidente da câmara, solicita um aparte, não concedido pelo delegado:
— Aqui não existe aparte. Ninguém está discursando.
— O senhor está com a palavra. É uma questão de educação. E educado sempre fui. Posso até não ser católico, mas educado sou até a alma.
— O que quer?
— O senhor está praticando uma ação ilegal e imoral.
— Imoral é sua mãe.
— A resposta dou depois. Mas como dizia, a situação é ilegal e vai de encontro ao que rege a máquina pública brasileira. O que o senhor está fazendo se chama abuso de poder e pode ser punido com pena que vai até a cassação.
— Só faltava essa. Quero ver alguém me cassar. Como vão cassar um mandato se não tenho mandato?
— O senhor não está entendendo. Cassação não é apenas o ato de retirar o mandato de quem o tenha. Cassação também é retirar um cargo público de alguém.
— Mas não sou funcionário público. Sou é delegado.
— O senhor é um cidadão no exercício de uma função pública. Tem os mesmos deveres de um funcionário público, enquanto estiver no exercício do cargo.
— Nunca fui funcionário público. Fui alfaiate a vida toda. Quem me deu esse cargo espinhoso de delegado foi o prefeito, que o senhor tanto se preocupa em denegrir.
— Em absoluto, delegado. Nada tenho contra o senhor prefeito. Ele é que tem contra ele mesmo. É o maior inimigo dele mesmo, pelo comportamento e postura. — Antônio Souza completou de pronto: — A vida particular dele não me diz respeito. Mas a vida pública é da conta de todo mundo.
— Você não conhece a vida pública do prefeito. Se entoca naquela câmara…
— Ledo engano, delegado; acompanho tudo. Até as negociatas que o prefeito faz para aprovar as contas. Se não correr dinheiro não aprova.
— Isso acontece desde que me entendo por gente. Um dos poucos trabalho de vereador é aprovar as contas do prefeito. Não é nada demais receber uma gratificação pelo bom serviço.
— Essa pequena gratificação é dinheiro pra vereador comprar casa, boi ou fazenda. Tudo sai do cofre público.
— Não é da minha conta.
— É da conta de todo mundo.
As pessoas transformaram-se em plateia. O delegado estava armado. Vicentinho interfere:
— Por favor, amigos, prestem atenção. São dois pais de família no exercício de funções públicas. Diz o Direito que os dois são passíveis de punição enquanto tal. Prestem atenção: se não acabarem agora com essa discussão, entro com uma ação na justiça para cassar os dois das funções publicas pelos motivos necessários. Estamos aqui com a finalidade de testemunhar o relato das legionárias. Parece que alguma força estranha não quer que cheguemos a tanto!
Vereador Zé Mariano levanta-se, ergue os braços e, com postura e tom de voz característicos…
— Senhores vereadores, peço silêncio! A mesa pede silêncio.
O delegado respondeu:
— Está ficando maluco. Não somos vereadores. Nem o senhor está na câmara. O senhor está na igreja, casa de oração e de respeito.
Padre Mário tomou para si as palavras do delegado:
— O senhor não está na câmara municipal. Está na igreja, casa de oração e de respeito. Peço que se recolha ao seu lugar. Igualmente solicito ao delegado e ao senhor Vicentinho. Recolham-se aos seus bancos para que possamos prosseguir a reunião.
Maricotinha permanecia de pé. Virou-se ao padre:
— E eu, padre? Como fica minha situação? Vou presa ou vou fazer hóstia?
— Acho melhor a senhora ir presa. Foi responsável pela complicação toda.
— Se for presa não vou fazer hóstia.
— E se não for presa também não vai fazer hóstia.
— Por que, santo padre?
— Não me chame de santo padre.
— Por que não vou fazer hóstias?
— As razões já sabe: não tem farinha de trigo.
Raulzinho continuou rabiscando. Anota tudo em verdadeiros garranchos. Zé Mariano chorava novamente. Antônio Souza, seu inimigo, não se contém:
— Esse candidato a prefeito que lançou candidatura na igreja chora é de frouxidão.
Zé Mariano soou o nariz, vermelho de tanto lenço:
— Você não tem coração, Antônio Souza. Só tem olhos para dinheiro. Não vê que estou com pena dessa pobre senhora, Maricotinha, desamparada frente à sanha do delegado?
Maricotinha do meio do salão responde:
— Meu nome não é Maricotinha. É Maria, o mesmo nome da mãe de Jesus.
— Seu nome é Maria, um nome santo. Mas frente aos seus agressores transforma-se numa Maria pequena. Por isso a chamei de Maricotinha. Deus a proteja, dona Maricotinha!
O delegado conversa com o Juiz da comarca. Depois mostra uma folha de papel:
— Não tem jeito não, dona Maria, vulgo Maricotinha. A senhora está presa mesmo.
— Se estou presa, delegado, me leve. Deus está vendo. Enquanto estiver presa não terá hóstia na igreja de Remanso.
— Pela hóstia, não; o padre manda buscar em Juazeiro.
— O Juazeiro é longe, delegado. Pelo menos dez dias para ir e vir. O rio cortou a estrada na altura de Pau-a-Pique.
— A mim não interessa. Estou prendendo a senhora cumprindo ordens superiores.
— Que ordens o senhor está cumprindo, delegado? — perguntou Vicentinho.
— Estou cumprindo um Mandado Judicial.
— Quem outorgou esse mandado, delegado?
— O Juiz da comarca, aqui presente.
— Quais os argumentos que compõem esse mandado, delegado?
— O senhor pode perguntar diretamente ao Juiz.
— Peço ler o que está descrito, delegado.
— Só leio com ordem do próprio Juiz. Ele está aqui presente.
— Caro delegado, esse documento é público. Seria publicado, inclusive, no diário oficial, se aqui tivesse. O senhor quer fazer o favor de ler o documento?
O delegado resolveu tornar público o documento tido como mandado judicial.
— Comarca de Remanso, Estado da Bahia, poder judiciário…
— Delegado, o escrito na cabeçalho não interessa. Isso chama-se papel timbrado. O senhor está lendo o timbre do papel. Solicito que leia o teor, o conteúdo da mensagem.
O delegado pôs-se a tremer. O papel caiu-lhe das mãos. Maricotinha foi pega-lo. O delegado não gostou:
— Deixe isso aí, Maricotinha. Se não, vai piorar mais ainda a situação. Não toque nesse papel!
Maricotinha recuou amedrontada. Vicentinho continuou.
— Por obséquio, seu delegado, pode ler a mensagem?
O delegado iniciou a leitura:
— Protógenes, o senhor é delegado ou não é? Não está vendo o claro desacato que a senhora Maria está cometendo com o reverendo? Prenda ela por desacato à autoridade. Depois mando redigir um mandado de prisão.
Após a leitura o delegado olhou o Juiz. Raulzinho copiava ardorosamente o que se falava. A professora Beatriz, ao contrário, apesar de secretária da reunião, há muito não escrevia uma linha. Como poderia mandar tais obsessões ao santo Papa?
Vicentinho voltou a incomodar o delegado:
— Quem assina este bilhete, delegado?
— Quem mandou foi o Juiz da comarca. Está ali sentado.
— Pelo que percebi ninguém assina esse papel, que diz ser uma ordem. Tem o número da ordem? Tem o carimbo?
— Tem não .
— Então não tem força de mandado judicial. Está destituído das variáveis intrínsecas de uma ordem judicial. Não apresenta o que deve apresentar todas os mandados judiciais. Portanto, não tem validade. E seu conteúdo é dúbio, para completar minha interpretação.
— Então o senhor acha que não houve desacato à autoridade?
— Quem vai responder é o reverendo. Devo lembrar que ele é uma autoridade espiritual. Não uma autoridade legal. É o chefe do rebanho da igreja católica. Quem quiser segui-lo que o faça. Mas não tem poder de coerção sobre as pessoas, capaz de obriga-las a seguirem-no. Não é autoridade no sentido formal. Não existindo autoridade no sentido formal não pode existir o desacato.
— Mas foi desacatado, todo mundo viu.
— Não existe o crime sem a existência do prejudicado. Ela não desacatou a autoridade porque não existia essa autoridade.
O delegado ficou possesso:
— O padre estava certo quando não convidou você. Veio de enxerido. Pra mim você ainda é o mesmo maluco que andava nu pelas ruas botando as mulheres pra correr. Sorte você não ter passado nu na frente de minha mulher. Dava uma surra e ainda jogava sal, pra demorar a sarar.
Vicentinho dirigiu-se aos presentes:
— Amigos, perdoem a insanidade. No fundo, no fundo, é uma pessoa honesta. Tem dificuldade para compreender as coisas, mas a culpa não é dele.
A reunião perdera o significado. O relato nem começou e já estavam desmotivados. Isaías Profeta quis retirar-se; a consciência não deixou. Mariinha, a presidente, pediu ao padre que contornasse a situação. Maricotinha permanecia de pé, esperando a decisão:
— Como é delegado… Vai me prender ou não?
— Não sei. Estão dizendo que a ordem não vale. Agora quem decide é o padre.
Maricotinha virou-se ao pároco:
— Vai mandar me prender, padre?
— Você quer ser presa?
— Se for pra comungar hóstia de pão amanhã na missa, prefiro ser presa.
— Pois então, delegado, pode prender. E de noite dê para comer pão cacetinho e água.
— Só pão e água? — perguntou o delegado.
— Amanhã quando ela acordar — se conseguir dormir — dê, como café, pão e água.
— É castigo, reverendo?
— Não é da sua conta. E tem mais: só solte amanhã depois da missa.
Maricotinha jogou-se ao chão, de joelhos:
— Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!
Ela mesma respondeu:
— Para sempre seja louvado! Vou presa como uma mártir, por amor a você, meu Jesus. Que o povo de Remanso saiba que Maria dos Santos, conhecida como Maricotinha, está sendo presa. Talvez até apanhe, se não for jogada no covil dos ladrões. Mas não arredei pé do amor declarado a Jesus, presente na forma de hóstia consagrada. Louvado seja nossa Senhor Jesus Cristo!
A secretária Beatriz sugeriu suspender a reunião. O sacerdote não concordou. Respondeu na linguagem bíblica:
— Nem só de pão vive o homem, mas também das palavras do senhor.
Mariinha expressa-se com seu sotaque de gente letrada:
— Caro reverendo, o senhor pode me dizer que palavra de Deus estamos a ouvir?
— Que quer dizer, dona Mariinha?
— Que, de Deus, aqui, não ouvimos nada. Quem está se expressando e de forma muito depravada, é o homem. Um homem desrespeitador e despreocupado com o próximo.
— Dona Mariinha, me desculpe, estamos aqui para o relato da visagem. Nem começou e já querem ir embora? Estão com fome, embebedem-se nas palavras de Cristo quando disse: “Homens de pouca fé, acham que os deixarei morrer de fome?”
— Não existe esta passagem na bíblia sagrada, padre Mário.
— Ora, dona Mariinha, as palavras não são ao pé da letra. Interessa o sentido. Vamos adiante com nossa reunião. Quero chamar para depor a terceira representante da Legião de Maria, Adinólia Barbosa. Estava presente quando esta igreja teve a felicidade de ver a força da Virgem Maria.
Adinólia levantou-se, semblante cansado. Quem agüentaria quatro horas sentado, sem direito nem de ir ao sanitário? Atravessou o grande corredor, pôs-se à frente da banca, aliás, da mesa, onde estavam já Edite Soeiro, Mariinha, o próprio reverendo e a secretária professora Beatriz. O padre iniciou a inquirição:
— Dona Adinólia Regis Barbosa, legionária de Maria, senhora de bom coração, esposa do cabeleireiro Raul Barbosa, jura, neste momento, frente às autoridade presentes, perante ao Deus vivo no sacrário, falar a verdade e somente a verdade?
Adinólia encarou o padre, mãos postas sobre o peito:
— Reverendo, o que o senhor pede é impossível.
— Impossível, por quê? Será que não pode falar a verdade e somente a verdade? É mentirosa por acaso?
— Dessa boca nunca saiu uma mentira, mesmo que fosse para beneficiar o próximo necessitado.
— Então por que o que peço é impossível?
— O senhor está querendo me colocar no pecado.
— Logo eu, dona Adinólia, que tenho o poder de perdoar os pecados com intercessão de nosso senhor Jesus Cristo?
— Santo padre, o senhor está me pedindo que use o seu santo nome em vão.
— Primeiro, não sou santo; depois, eu pediria à senhora para usar meu nome para quê?
— O senhor está destrambelhado, padre.
— A senhora dobre a língua!
— Não dobro se a intenção for defender o nome do Senhor e a minha própria honra.
— Por acaso estou ofendendo sua honra?
— Está querendo me levar ao pecado. Quer que eu jure que só vou dizer a verdade. Primeiro, só falo a verdade. Depois, jurar é pecado. É nesse pecado que o senhor quer que eu caía.
Padre Mário veio à razão. Fechou os olhos por alguns segundos:
— Desculpe, dona Adinólia. Minha intenção não foi essa. A senhora não precisa jurar. Também não precisa falar só a verdade. Fale o que a senhora quiser.
— O senhor está me ofendendo novamente. Não sou mentirosa.
— Vai, vai, vai! Fale o que quiser.
— Não vou falar o que quiser. Vou falar o que mandar minha consciência em testemunho do que presenciei, com a graça de Deus.
Professora Beatriz perguntou se colocava na ata todos os diálogos. O padre mal respondeu. Sentou-se desalentado. Atrás, Raulzinho copiava tudo. Zé Mariano já ensopara o lenço de tanta lágrima e suor. Alguém bate à porta e pergunta se tem alguém. A porta foi aberta. Era Tezinho; de batismo, Venâncio. Tinha o péssimo hábito de viver embriagado. O padre fez muxoxo. Dona Mariinha também não gostou. As autoridades preocuparam-se ante a presença inesperada. Tezinho vestia calça surrada, camisa velha e limpa. Tinha mãos de trabalhador. Manifestou-se:
— Meu nome é Venâncio, Venâncio Viana. Sou filho de Maria Amélia e de Antônio Viana. Nasci aqui em Remanso há quase quarenta anos. Tenho as mãos calejadas pelo trabalho. Não dei pra estudar, mal assino o nome. Sonho um dia ser, pelo menos, vereador nesta terra que amo.
O presidente da câmara, Antônio Souza, chama a atenção de Tezinho:
— Tezinho, por favor, estamos numa reunião secreta. Pode se retirar?
— Amigo vereador, reunião secreta só da maçonaria. E a maçonaria não ia se reunir na igreja. Maçom não gosta de igreja. Entrei porque é a casa de Deus. Aqui o pobre é tido como rei, todos são iguais. A única diferença é a roupa que cada um usa. Mas a terra há de comer todo mundo um dia. Então, vereador, não vou me retirar.
— Essa reunião é secreta.
— Reunião secreta com a porta aberta? Por falar nisso, o senhor sabe por que cachorro entra na igreja? Porque encontra a porta aberta. Não sou cachorro, mas sou filho de Deus. Entrei porque encontrei a porta aberta. Não quero ouvir segredo de ninguém. Entrei para orar pela alma do meu amigo Araújo, que Deus a tenha em paz.
Tezinho soluçava alto. Reclama da sorte, inconformado:
— Tem hora que acho Deus errado.
Mariinha não gostou:
— Pare com isso, Tezinho. Ninguém pode dizer que Deus é errado.
— E não é não, dona Mariinha? Com tanta gente ruim pra morrer e a morte leva um inocente? Que Deus levasse um como eu, que não tenho nada nesse mundo. Nem pai nem mãe.
— É assim mesmo, Tezinho.
— Não é não, dona Mariinha. Vivo chorando nessa vida.
— Um dia muda, Tezinho.
— Quando esse dia chegar já estarei velho. Não me conformo, dona Mariinha. Deus podia ter me levado no lugar do compadre Araújo.
— Levado pra onde, Tezinho?
— Pra qualquer lugar, pra onde vão as pessoas depois de mortas. Queria que me levasse e deixasse meu compadre Araújo.
— Onde está seu Araújo?
— Entrei na igreja, minha querida dona Mariinha, para rezar pela alma dele, que Deus levou de ontem pra hoje.
— Levou como, Tezinho? — admira-se Mariinha.
— Não se sabe direito como aconteceu.
— Ele estava doente?
— Estava são, alegre e satisfeito. Me chamou para correr os fios do telégrafo com ele. Sabia que tinha caído algum poste. Era seu trabalho. Como funcionário do telégrafo tinha a obrigação de fazer vistoria nas linhas. Eu sempre ia com ele. Dessa vez não fui, dona Mariinha.
— O que aconteceu, afinal?
— Um morador do pé da serra, dez léguas de Remanso, encontrou o corpo do meu compadre Araújo caído em uma loca da serra.
— O que é loca?
— Caverna, lugar onde se acoita bicho.
— Como estava ele?
— Morto. Não tinha mais nada. Só o couro. O bicho tinha comido tudo.
— Que bicho foi?
— Pelo que conheço foi onça — e das pintadas!
— Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo — manifesta-se Mariinha temerosa.
— Pois, dona Mariinha, foi onça mesmo. Vou caçar essa bicha que matou e comeu meu amigo.
A informação foi chocante. O primeiro a se pronunciar foi o vigário:
— Me diga pelo amor de Deus, como está a viúva?
— Desesperada, padre. Chora o tempo todo. Já desmaiou três vezes.
Presidente da câmara pediu desculpas a Tezinho pela forma como o recebeu.
— O senhor não me deve desculpas, vereador Antônio Souza, foi nossa Senhora do Rosário que me fez vir aqui. Ela que o desculpe.
O delegado falou ao padre que precisava ausentar-se para receber o morto. O reverendo perguntou onde estava Maricotinha.
— Está presa, o senhor não mandou prender?
— Queria apenas dar-lhe um susto, delegado. Pode soltar.
— Agora é tarde, padre. Quem tem a chave da cadeia é o carcereiro Sinval. Ele viajou e só volta amanhã. Dona Maricotinha dorme hoje lá. O senhor, por favor, providencie o pão e a água.
Dona Mariinha falou baixinho ao padre. Este balançava a cabeça, concordando. Virou-se à professora Beatriz. A professora também concordou. O padre, então, tornou público:
— Queridos fiéis e autoridades, encerraremos temporariamente essa reunião para que possamos levar forças à família de seu Araújo, barbaramente assassinado por um animal selvagem.
— Não foi bem assassinado, padre — falou Antônio Souza.
— É como se fosse, pois foi morto de morte matada. Amanhã quero que estejam aqui às nove horas em ponto. Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.
Antes que o padre se retirasse, Edite Soeiro perguntou-lhe respeitosamente:
— Padre, de sua sabedoria responda: continuaremos a rezar os terços?
— Já rezaram quantos?
— Pelas contas, quase três mil.
— Então já pagaram a promessa.
Da igreja o grupo tomou o rumo da casa de Araújo, responsável pela conservação das linhas telegráficas. O relato de Tezinho deixou todos com um nó no estômago. Comida só amanhã, quando o corpo do finado fosse enterrado e bem enterrado. Ao passar pelo beco da Sinhazinha presenciou-se um espetáculo da indignidade humana. Mariinha chamou a atenção:
— Padre, não quer dar a benção à dona Sinhazinha?
— Quem é?
— A senhora que mora nessa casa. Está tuberculosa. Não tem ninguém por ela. Nem caminha mais. Vive acocorada na entrada de casa, onde recebe as migalhas para se alimentar.
O vigário parou admirado. Franziu a testa, questionando Mariinha: — Como pode não ter um parente?
— Ter tem, mas não ligam para ela.
— Ela está muito doente?
— Não disse ao senhor que nem caminha mais?
— Escarra muito?
— Colocaram uma escarredeira perto dela. Mal tem forças para tirar o cuspo do boca.
— Ela quer o que de mim? Não sou médico.
— Padre, o senhor não cura doença do corpo, mas tem poder de curar doença espiritual através das palavras.
— Ela ainda ouve?
— Nunca lhe disseram que tuberculoso ouve mais que gente sã?

Como respondendo ao Padre, Sinhazinha falou da sua porta: — Quem está aí no oitão de casa? Que converseiro é esse?
A comitiva adiantou alguns metros, suficientes para ver a senhora doente acocorada sobre os próprios pés. Mariinha falou: — Somos nós, Sinhazinha.
— Nós quem?
— A Mariinha e …
— Vem trazendo alguma coisa? Não comi nada hoje. A barriga está doendo de fome.
— Estou com o padre Mário, o vigário da igreja matriz.
— Esse padre Mário não conheço, não; quando ele chegou eu já estava doente sem caminhar. Não pude mais ir a missa.
— Ele veio conhecer você, Sinhazinha. Veio lhe dar a benção.
— Louvado seja Deus, padre Mário. Jesus Cristo lhe proteja e dê sabedoria, para que possa diminuir o sofrimento das pessoas que precisam do senhor.
— Amém, dona Sinhazinha. Deus lhe dê saúde e muitos anos de vida.
— Não creio não, padre. Sou temente a Deus, mas nesse sofrimento, tenho certeza, Ele não demora a me levar. É um bom pai. Não há de querer ver uma filha sofrendo como estou.
— A senhora parece uma pessoa esclarecida.
— E sou, padre; fui professora a vida toda. Boa parte desses homens, que hoje são doutores e moram aqui, em Juazeiro, Petrolina, Salvador, São Paulo e até em Brasília, foram meninos um dia. Foram meus alunos. Aprenderam a ler e a escrever nesta casa. Fervilhava de menino. Muito me honra ter colaborado com a vida deles.
— Por que a senhora ficou tão sozinha?
— Eu era uma mulher feliz. Tive tudo que a vida pode dar. A felicidade de ver meus alunos progredindo nas letras era completada em casa. Ao chegar encontrava meu santo esposo de braços abertos. Eram seis nossos filhos, hoje são dois.
— Onde estão esses dois filhos da senhora?
— No mundo. Um se formou em médico, outro é advogado. Há mais de dez anos não os vejo. Devem ter vergonha da mãe pobre e doente.
— A vida dá muitas voltas, dona Sinhazinha.
— É o ditado mais certo, reverendo. Comigo continua dando voltas. Fiz o bem a vida toda. Nunca esperei recompensa, nem estou me queixando. Mas certas coisas doem no fundo da alma.
— A senhora não tem nenhum parente aqui, em Remanso?
— Tenho, sim. Um irmão, era o caçula. Se apossou de tudo que nosso pai deixou. A grande fazenda, berço da cidade de Remanso, virou pó na mão dele. Vendeu o gado. A fazenda foi virando loteamento. Fez muita casa para aluguel. Até esta, que comprei com minha renda de professora, diz que é dele. Só não toma porque não tenho para onde ir. A comida que me mantém viva não vem da casa dele. Vem do povo. Das filhas de Maria, das pessoas que freqüentam a igreja. Acham por bem matar a fome dessa velha professora.
O movimento de gente aumentou. A curiosidade trouxe as pessoas. Muitos achavam que o padre viera dar a extrema-unção à velha Sinhazinha. Jorge da Martinha, gritou à tia Maria José:
— Tia, venha depressa! O padre veio benzer dona Sinhazinha. Peça pra benzer minha mãe também, pra ver se ela fica boa.
Maria José aproximou-se do grupo. Deu boa tarde, só Mariinha respondeu. Sinhazinha não parou a conversa. Raramente alguém a visitava. Mesmo quem lhe trazia comida derramava esta na cumbuca e saia correndo com medo da doença. Maria José dirigiu-se à Mariinha:
— Dona Mariinha, o padre está fazendo visita de caridade?
— O que é visita de caridade, Maria José?
— Visita aos enfermos e adoentados. Queria que fosse até minha casa e desse a benção à minha irmã Martinha, que está muito doente. Começou pela cabeça. Era uma dor de cabeça que não passava. Depois veio uma lerdeza, a coitada perdeu a vontade pra tudo. Não gosta nem de falar. Está ficando amalucada. A vida é dizer que qualquer dia sai voando pelo mundo.
— Maria José, sou sua amiga, mas acho que o padre não vai poder ir, não.
— Aqui pertinho, dona Mariinha?
— O padre até agora não comeu nada. Está nervoso. Quando fica nervoso passa pito em todo mundo. Eu mesma não vou falar com ele. Se você quiser falar…
Maria José caminhou até o reverendo. Saudou-o; este respondeu-lhe mantendo a distância. A mulher buscou forças no fundo da alma:
— Seu padre, me desculpe. Sei que o horário não é o mais …
— Pode falar, senhora.
— Sei que o horário não é o mais …
— Pode falar, senhora.
— Quero falar, o senhor não deixa.
— Pode falar, senhora. Pois fale…
— Para o senhor ir lá em casa abençoar minha irmã, que está em cima da cama há mais de sessenta dias. Garanto que com a fé que tem em Deus e com a benção do senhor, ela vai melhorar.
Dona Mariinha afastou-se para não ouvir a resposta. O reverendo respondeu:
— A senhora acha que sou curandeiro?
— Acho não senhor. O senhor é padre e tem a palavra de Deus.
— A palavra de Deus se refere à salvação espiritual. A pregação da palavra é para obter a salvação da alma. Não para curar um corpo enfermo. Esse, quem cura são os médicos.
— O senhor ia ajudar e muito, levando um pouco de água benta para a coitada que padece feito farrapo humano. Jesus sempre acatou os miseráveis e sofredores. Por que não o senhor?
— Minha senhora, não tenho água benta aqui comigo. Leve-a até a igreja.
— Mas padre …
Mariinha tentou argumentar. O reverendo não deixou a professora concluir:
— Dona Mariinha, estamos aqui com o objetivo de visitar a família do rapaz que foi assassinado pelo animal selvagem.
— Padre, não custava nada. A casa da coitada é ali.
Sinhazinha estende a mão para receber a benção do vigário:
— A benção, padre…
Este não retribui. Afasta-se um pouco, fez o sinal da cruz e, de longe…
— Deus te abençoe. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tenha um bom descanso eterno, filha do pai…
Afastou-se incontinente. Jorge Luís, sobrinho de Maria José, indignou-se. Do alto dos seus dez anos pegou uma pedra e lançou de encontro ao padre, com fúria:
— Padre fila da puta, fi-de-rapariga. Vou rachar sua cabeça!
As pessoas esquivaram-se das pedradas de Jorge Luís. Este só queria acertar o padre. Uma pedra foi de encontro à cabeça do vigário. O sangue desceu na hora. O menino correu e o padre iria ao chão não fosse o adjutório das pessoas:
— Rachou a cabeça do padre. Menino danado. Vou meter bala nele! — gritou o delegado.
Vicentinho intercedeu com a tranqüilidade característica:
— Tenha calma, delegado. Não aconteceu nada. Esse padre não merece coisa melhor. Será que você não enxerga um palmo na frente do nariz? Esse padre precisa aprender a ser um guia espiritual.
— Padre é padre.
— Esse não merecia nem ser coroinha. Não tem sensibilidade.
— Vou prender o menino.
— Não vá, delegado. O pai dele não vai deixar.
— Meto bala.
— O senhor já pensou na aflição de um pai de família vendo sua mulher definhar, morrendo, sem nada poder fazer?
— Mas padre não é doutor
— Pode ter o remédio espiritual. Acalmar o espírito é bom para o corpo. O remédio da alma é bom para o corpo. Outra coisa: o menino é menor. Não se pode prender um menor de idade, muito menos bater.
As palavras acalmam o delegado. Alisou a careca, suada. Ele próprio transformou-se num monte de roupas ensopadas. Trouxeram o padre para a sombra. Uma cadeira e uma vasilha de água. Vomitava. Mariinha convocou Adinólia Barbosa, preocupada:
— Adinólia, vá atrás de um médico para o padre. Ele está vomitando. A pancada foi muito forte. Pode ter tido congestão.
— Não acredito, não, dona Mariinha; congestão só quando a barriga está cheia. A senhora mesmo disse que o padre hoje não comeu nada. Então não pode ter sido congestão.
— Faça o que mando, Adinólia. Sou a presidente da Legião de Maria. Faça o que mando.
Dona Mariinha voltou-se ao padre. Olhos fechados, com gastura, acabava de vomitar. Edite Soeiro segurava um pano molhado sobre a testa do reverendo. O sangue parou de correr. O ferimento fora superficial graças a pouca força de Jorge Luís.
Da porta, Sinhazinha presenciava tudo, acocorada sobre os calcanhares. Uma criança chegava, comida na bacia e um caneco com água. Anunciou:
— Sinhazinha? É da casa do seu Raul.
— Obrigada, minha filha. Já estou que não agüento com tanta fome. Demorou hoje, hem?
— Faltou carvão pra fazer a comida. Trouxe até um pedaço de doce de umbu que dona Nelcina mandou.
— Diga a ela que muito obrigada. Deus dê muito mais. Vou comer agora mesmo.
Mal Sinhazinha acabou de falar o reverendo teve um acesso de vômito. Quem viu jurava que foi em conseqüência da comida da mulher. Raulzinho continuava na fúria de anotar tudo. Já tinha gasto mais de cem folhas de papel. A quem perguntava para que tanta anotação, respondia:
— Pra nada, pra mim mesmo. Lembrar depois que Remanso já viveu esse tempo.
— Você está é doido! Inteligência demais também é doidice.
Isaías Profeta continuava com a comitiva, sem saber muito porquê. Vereador Antônio Souza, presidente da câmara, amargava o prejuízo:
— Perdi o dia. Deixei de ir ao Marcos fazer um comício. E o pior: fui obrigado a presenciar o lançamento da candidatura de um adversário. Talvez até de dois, se esse Vicentinho sair candidato mesmo.
— É assim mesmo, Antônio Souza, política se faz tecendo como rede. Do meio para o fim é que toma forma. Quem sabe se essa conversa não serviu para aproximar você, Zé Mariano e esse Vicentinho? — o delegado tentou confortar.
— Delegado, me desculpe, mas de política o senhor não entende nada. Acho que entende mesmo é de alfaiataria.

Zé Mariano mandou buscar outro lenço. Mandaram um cor-de-rosa, que mais combinava com o sexo feminino. O ilustre vereador e futuro candidato a prefeito devolveu o lenço:
— Diga a Alda que só uso lenço azul. Esse deve ser do Paulinho do Popô, irmão dela.
O sol continuava forte, em plena seca. O calçamento faltava pouco para soltar fogo. O reverendo sentado, cabeça baixa. Sinhazinha devorava sofregamente a primeira refeição do dia. Por um momento esquecia a tuberculose; saciava a fome e a sede. Lambuzava-se tanto que alguém chamou-lhe a atenção:
— Tenha educação, Sinhazinha. O povo está aqui.
O padre vomitou mais uma vez. Provava-se que a gastura era por conta de Sinhazinha. Estava com nojo da coitada. Esta, continuou devorando a comida utilizando as mãos como colher.
A comitiva aguardava a recuperação do padre. De pavio curto, Edite Soeiro falou baixinho: — Vamos, padre, já é tarde. Todo mundo sem comer, morrendo de fome. Até o senhor mesmo.
A resposta do padre foi um vômito escuro. Apareceu Maria Vitoria, costureira da praça da igreja. Trazia uma bacia com chá. Entregou à Mariinha:
— É chá de umburana para o estômago. Curei meu neto, que obrava sangue, com esse santo remédio. Basta tomar que faz logo efeito.
Dona Mariinha chegou pacientemente ao vigário, tocou-lhe o braço:
— Padre Mário, padre Mário. Tome aqui um chazinho. É de umburana, feito agora mesmo.
O padre apenas gemeu. Não respondeu sim nem não. Dona Mariinha insistiu:
— Padre, é chá. Bom para o estômago…
O padre abriu lentamente os olhos. Semicerrados, perguntou dengoso de que era o chá.
— Chá de umburana, padre. É bom para o estômago.
— É bom mesmo?
— É ótimo.
— Tem açúcar?
— Não precisa, não.
— Vou tomar na bacia?
— Vou providenciar um copo.
Correram à procura de copo. Antes o padre exigiu:
— Na casa da Sinhazinha não…
— A coitada não tem nem copo, padre. Só um caneco amassado.
Procuraram Maria José, que acabava de dar banho e trocar as roupas da irmã doente. Abriu a porta com a toalha na cabeça:
— Sou eu! A Duquinha. Faça uma caridade, Maria José. O padre está se sentindo mal.
— O que foi que ele teve?
— Você não soube? O Jorge Luís arrumou uma pedra na testa do padre .
— Meu sobrinho Jorge Luís jogou pedra no padre?
— Rachou a cabeça. O padre está sangrando e vomitando. Parece que teve congestão.
— O que quer de mim? Não sou mãe dele, não.
— Sei disso. Queria que emprestasse um copo para o padre beber um chá de umburana.
— Não posso emprestar, Duquinha.
— Por que, Maria José? Você é tão caridosa.
— Primeiro, aqui em casa não tem copo sobrando; cada um tem o seu. Depois, só tem copo de alumínio. Você acha que ele ia beber água num copo de alumínio usado?
Duquinha saiu, cabeça baixa. Aproximou-se de Mariinha; esta pediu o copo. À Duquinha restou uma mentira:
— Só achei de alumínio. Nesse o padre não bebe, tem nojo.
— Como é que você sabe?
— Até na casa dele só bebe água em copo plástico descartável. Bebeu jogou fora. Ele acha que a água que lava o copo pode trazer contaminação.
— Então peça ali na casa de seu Ademar Soares. Dona Clarissa tem copo de vidro.
Duquinha arribou para a casa de Ademar Soares. Bateu palmas, chamou os de casa:
— Ô de fora. Já vai! — Logo dona Clarita abria a porta, enxugando as mãos no avental. — Que foi, Duquinha?
— Vim pedir uma caridade. O padre está doente, vomitando e sem forças, ali perto da casa da Sinhazinha. Preciso de um copo de vidro pra ele tomar um chá de umburana. Depois devolvo. Agora, dona Clarissa, me faça o favor de trazer já lavado. Esse padre é todo cheio de nove horas.
Clarissa retornou com o copo ainda pingando água.
— Tome. Cuidado! Tirei do meu conjunto na cristaleira.
Duquinha agradeceu. Logo Mariinha despertava o padre para tomar o chá:
— Pronto, padre; aqui está o chá de umburana. Beba devagar.
O padre perguntou na agonia:
— De quem é esse copo?
— Mandei tomar emprestado na casa de dona Clarissa.
— Esse nome não conheço.
— É uma senhora distinta. Mulher de seu Ademar Soares. Pouco sai de casa.
— Esse copo foi lavado?
— Foi, sim senhor. Duquinha pediu que dona Clarissa lavasse.
— Foi lavado com que sabão?
— Aí não sei, padre. O senhor gosta que lave com que sabão?
— Lá em casa só se lava prato com sabão de coco do bom.
— Dona Clarissa não usa sabão de coco. Só usa sabão em pó, que vem da capital.
— Então o copo deve estar bem limpo.
O reverendo bebeu o primeiro gole. Fez cara feia, lançou o remédio longe. Falou grosseiro:
— A senhora disse que era bom…
— Bom não, é ótimo.
— Mas é ruim. É amargo.
— Eu disse que era bom pra curar a doença.
— A senhora disse que tinha colocado açúcar.
— Eu disse ao senhor que não precisava de açúcar.
— Mas é ruim…
— É ruim de gosto. Tome de gute-gute. Vou botar o dedo no seu nariz pra não sentir nem o gosto.
E assim foi feito. O padre bebeu o chá amargo de umburana. Depois queria vomitar, botar tudo para fora. Mariinha não alisou:
— Se vomitar toma tudo de novo.
O reverendo acalmou-se. Fechou os olhos e serenou durante cinco minutos, tempo suficiente para a comitiva recuperar as forças. Comeram alguma coisa. Um menino passou vendendo manga; compraram todas as mangas. A mulher do “quebra-queixo” quase vende seu estoque. Na mastigação Mariinha quebrou a prótese:
— Meu Jesus, quebrei minha chapa. Má hora que comi esse quebra-queixo. O bicho tava duro demais. Passou do ponto.
Edite Soeiro veio acudir:
— Mariinha, manda fazer outra chapa. Eu também não quebrei meus óculos?
— Mas você tinha um de reserva.
— Você não tem outra chapa?
— Tenho não.
— Manda fazer uma ligeiro.
— Quem vai fazer? Seu Nildo, o dentista, está viajando ao Piauí. Só volta no fim do mês. Vou ficar banguela. Não posso nem cantar a missa.
— Manda fazer uma chapa no Juazeiro. Entrega no outro dia.
— A estrada tá interrompida. A chuva cortou a estrada lá no Pau-a-Pique. Não passa ninguém.
— Então cola. Chegou uma cola maluca aí.
— Aí, aonde?
— No armarinho da Hilda.
— Como é essa cola?
— Basta triscar que cola na mesma hora. Cola tudo, até pedra.
— Graças a Deus. Vou lá antes que o padre acorde.
Mariinha fechou a boca e o padre suspirou. Suspirou e soltou um peido — como dizem — pegando todo mundo desprevenido. O delegado não se conteve:
— O que é isso, padre?
Levaram a mão ao nariz. A professora Beatriz manifestou-se:
— Como está fedendo!
— É efeito do chá — observou Marieta, que se juntara ao grupo.
— Se fosse num quarto fechado matava todo mundo — completou o delegado.
O reverendo mudou de posição. Tossiu, balançou a cabeça a procura de posição melhor. Balbuciava palavras. Aumentou a voz, todos ouviam:
— Ai, ai, ai. Não me bata mais. Esta doendo muito. Não me bata mais. Socorro, me ajudem…
A comitiva não sabia o que fazer. O delegado iniciou a reação:
— Estão batendo no padre. Sou delegado, o que devo fazer?
— Entra no sonho e investigue quem está batendo nele — respondeu Zé Mariano.
— Estou falando sério. Estão batendo no padre, o que faço, seu Promotor?
— O Promotor foi em casa tomar banho. Disse que volta já.
— O que é que eu faço mesmo? Estão batendo no padre; como delegado faço o quê?
— O senhor não é delegado; continua sendo um alfaiate, um reles alfaiate.
— Alfaiate é sua mãe! Sou é delegado. Fui nomeado no diário oficial. Recebi arma, bala e a chave da delegacia. Depois que fui nomeado nunca mais trabalhei de alfaiate. Por isso me respeite, vereador Antônio Souza. Eu sou o delegado.
— Você é mata-cachoro do prefeito — arriscou Isaías Profeta.
O delegado perdeu a compostura. O padre a gritar e a gemer. Falou à dona Mariinha:
— A senhora, como presidente da Legião, me diga: o que faço pra salvar o padre?
Dona Mariinha, segurando a chapa com as mãos, falou quase sem abrir a boca:
— Acorda ele…
O delegado sacudiu o reverendo pelos ombros:
— Padre, Mário; padre, ô padre, acorde. Sou eu, o delegado.
O padre assustou-se, empurrou o delegado que quase vai ao chão:
— O que foi? O que foi?
— Acorda, padre.
— Não estou dormindo. Que aconteceu?
— O senhor estava apanhando.
— Apanhando de quem?
— Não sei. O senhor é quem sabe.
— Como é que eu sei? O senhor disse que eu estava apanhando?
— O senhor estava gemendo e pedindo socorro.
— Não lembro de ter pedido socorro nenhum. Quando foi isso?
— Agora há pouco.
— Eu não saí daqui, delegado.
— Foi no sonho. O senhor estava sonhando.
— Como sabe que eu estava sonhando?
— Estava dormindo. Começou a gritar e a pedir socorro.
— Não devia ter me despertado. Estava dormindo. Só durmo falando.
— O senhor me desculpe.
— Agora vai ser difícil pegar no sono novamente nesse calor.
— O senhor me desculpe, já disse.
— Há dias não durmo quase nada. Quando consigo um pouquinho o senhor vem e me acorda?
— Já disse, padre, me desculpe.
O padre virou a cara. Todos sentiram o mesmo odor do efeito do chá. Mariinha não resistiu:
— Êta! assim não. Acompanhamos o senhor, mas não somos obrigados a sentir esse cheiro horrível. Pior que ovo goro.
O reverendo olhou pra si, batina suja de vômito; passou a mão, tentou limpar…
— O que é isso? Essa sujeira em minha batina.
— É vomitação, padre.
— Quem vomitou?
— O senhor mesmo.
— Eu? O que estou fazendo aqui?
— Descansando de uma pedrada que tomou na cabeça.
O reverendo levou a mão à testa. Pegou o lenço com nojo, jogou longe:
— O que é isso? pano imundo!
Zé Mariano, que emprestara o lenço para estancar o sangue, não gostou:
— Mal agradecido. Emprestei para estancar o sangue. Agora joga meu lenço no mato. Fez isso porque sabe que é meu. Não gosta de mim. É o pior adversário que tenho.
O reverendo soou o nariz externando os resíduos da vomitação. Levantou, sacudiu a batina, perguntou para onde iam. Mariinha respondeu:
— Estávamos indo para a casa de seu Araújo. Aliás, do finado Araújo, pois morreu comido por uma onça. Ainda vai?
— Minha obrigação é confortar quem precisa de conforto. Para levar a palavra de Deus vou até o fim do mundo. Até onde derem as minha forças. Fica muito longe a casa?
Seguiram pelo beco do Artur. O padre não se conformou:
— A casa do coitado fica longe, dona Mariinha.?
— Não é muito longe, não; fica no Capão. É só atravessar a várzea e estaremos lá. Só tem um problema, padre… O choveu muito e água da várzea se juntou com o Barreiro da Beata. Não dá para atravessar a pé. Mas a gente arranja uma canoa emprestada.
— Dona Mariinha… Tanta gente para atravessar numa só canoa? Eu não sei nadar.
— Não se preocupe, reverendo…

* * *

Foi mostrado o primeiro capítulo dos nove que compõem A Santa do Pau Oco, uma história inusitada que acontece em Remanso, BA. Inimaginável o enredo e o desfecho de A Santa do Pau Oco.
Em formato papel já não está disponível nas livrarias, pois esgotou-se a edição. Pode ser adquirido neste site/loja do Autor: astrogildomiag.com.br.
Em formato e-book, disponível nas páginas da Livraria Saraiva: www.saraiva.com.br


One comment

    • admin

    • 31 de julho de 2013

    • 16:01

    teste

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