Astrogildo Miag desponta como memorialista competente, especialmente neste atraente livro, composto de 13 capítulos, onde confidencia com o leitor o sentimento de infância que o progresso inexorável fincou-lhe na memória. O projeto – a Hidrelétrica de Sobradinho – que se propunha emancipar economicamente aquela pequena urbe Remanso, ainda é promessa, segundo o autor, a arrastar-se na expectativa desesperançada dos habitantes de Remanso. Imagine-se revivendo hoje uma experiência de vida, na infância, de emoções tão fortes e conflitantes que só quem as experimentou foi capaz de recordá-la de forma tão sedutora. O autor retrata com surpreendente detalhe e realismo o severo código de convivência entre a meninada do seu ciclo social, e todo o cotidiano daquela vida de surpreendentes episódios. É um relato de vida sofrida, onde a dor física e o conflito existencial tripudiaram no tenro corpo e mente de uma criança, diante de desafios quase intransponíveis em busca do saber; o desespero e a impotência diante da injustiça truculenta que vitimou o pai. Mas, ao lado de tudo isto, foi ali, nos distantes idos da década de 60 que o personagem-criança também experimentou felicidade, revivida nesta agradabilíssima obra.

O autor guardou da experiência daqueles tempos idos bons momentos de felicidades, pois, para ele, a criança vive contabilizando com alegria o passar do tempo, numa perspectiva de alcançar a etapa adulta, e a felicidade pode vir das coisas simples. Pode estar aos olhos e diante das mãos, mas nem sempre a percebemos.

Memórias de um coroinha, romance, de autoria do remansense Astrogildo Miag, 232 páginas, chancelado pelo FAC – Fundo de Apoio à Arte e à Cultura, Brasília – DF, 2005.

 

Mensagem do Autor

 

Todos têm uma história, alegre ou triste. De vez em quando vem-nos e  transporta-nos a longínquos lugares. Nada traz mais saudades que os bons tempos ao lado dos familiares, junto aos amigos, na cidade perdida no fundo da  alma. Recordar é viver ou sofrer duas vezes? Seja o que for, vou retornar. Beber a água límpida da infância perdida nos distantes grotões. Subir e descer, mergulhar em águas profundas, escalar morros e montanhas mais ou menos íngremes. Toco a mão nos espinhos que doem e trazem febre. Vejo-me deitado, avós na cabeceira, toalha molhada  afugentando a febre que não quer ir embora. Vou mergulhar nas águas correntes de uma fonte sem limites. Ver o sofrimento de meu pai, preso, sem poder comprovar que era um simples cabeleireiro; não um comunista, fichado até na Rússia, como garantiam os delatores. As escarpas de grandes paredões transformarão minhas mãos em sangue. Vou lembrar da labuta da vida. Estudando e estudando,   quilômetros a pé por não dispor de parcos centavos para pagar a condução. As abelhas africanas que me atacarem quando estiver recordando, lembrar-me-ão que a vida é luta só. A abelha que produz mel, o alimento mais nutritivo, é a mesma que aferroa. Recordar é viver, penso. Vou retornar. Recriar o que jamais será. Esta é uma das grandes frustrações do homem. Como diz o poeta Nelson Mota,  “nada do que foi será…”

 Palavras do autor

 É difícil referir-se a si mesmo, reportar-se à vida perdida na alma. Mais difícil é definir as referências básicas. A memória registra quase tudo que marca a vida. São tantas as passagens!

De fato, não sei por onde iniciar. Pretendo um corte vertical, reconstituir a vida num período determinado. Revivê-la na sua integridade e emoção. Literatura é emoção. Arte literária não pode ser relato puro, simples ou rebuscado, de algo que aconteceu. Sem a emoção, sem a realidade recriada na percepção do artista não se constitui literatura, mas, um texto; talvez bem escrito, porém, amorfo; como um relatório técnico; nunca arte literária.

É importante definir a referência temporal da abordagem, e o fazemos agora: Este livro procura ser fiel aos acontecimentos ocorridos no ano de 1967, aos onze da minha vida. Naquela época, todos desejavam que seus filhos fossem coroinhas, ajudassem o padre nas celebrações religiosas. Era a melhor escola, então. Aprendíamos a Amar a Deus Sobre Todas as Coisas, Amar o Próximo Como a Ti Mesmo, Honrar Pai e Mãe, Guardar Domingos Dias Santos e outros Mandamentos da Lei de Deus, como ensinavam os catecismos.

Convém diferençar coroinha e sacristão. Este, geralmente era pessoa adulta, temente a Deus, que tomava para si a responsabilidade de colaborar nas atividades paroquiais, inclusive administrativas. Já o coroinha, era criança, dez anos em média. Por conta da religiosidade da família, ajudava o padre nas celebrações religiosas, muitas vezes contra a própria vontade; como obrigação, para tomar freios na vida. A indumentária do coroinha era a batina: Saiote de elástico, geralmente vermelho, e camisão branco. Permanece inalterada na maioria das paróquias.

 A cidade perdida

O local onde se desenrola esta história é a cidade perdida no fundo da minha alma, na acepção mesma das palavras. Isso, pelo simples fato que, Remanso, no médio São Francisco da Bahia, onde nasci, já não existe, foi tragada pelas águas da Barragem de Sobradinho nos idos da década de setenta. De repente, foi como se acordássemos de um pesadelo. As conversas e boatos deram lugar às máquinas pesadas, invadindo a bucólica e pequena cidade. A compreensão verdadeira de que os boatos de que algo muito grande e grave aconteceria foi a chegada de um caminhão, uma jamanta, com dez eixos e quase cinquenta pneus transportando máquinas nunca vistas pelos moradores da região.

A partir dali foi tudo muito rápido. Logo, chegaram os milhares de trabalhadores dos mais distantes rincões, que mudaram a fisionomia do local. Houve uma perversão completa de valores. A comunidade bucólica fincada num lugar distante e isolado, sem estradas, viu-se sacudida nas coisas que lhe eram mais caras. Os costumes sofreram uma revolução brusca. A velha iluminação a motor diesel deu lugar a energia abundante e constante tomada emprestada da Barragem de Boa Esperança, no Piauí. Por ser a maior cidade da região, atraía as levas de trabalhadores sedentos de aventuras e contatos com o sexo oposto. As mulheres, mocinhas e balzaquianas, descobriram a sensualidade e o poder dela oriunda. Algumas seguiram o canto floreado e falso da sereia e perderam-se pela vida. Outras, com estrutura de vida familiar mais sólida, constituíram família com aqueles trabalhadores  da barragem. Não acordaram do conto de fadas e são felizes para sempre.

 Capítulo I

                 Nasci de família pobre. Os utensílios tinham a vida útil prolongada até o possível. Roupa nova, só para a festa da padroeira, Senhora do Rosário, comemorada a cada trinta de outubro. Cada um tinha uma roupa melhorzinha – a domingueira – para vestir aos domingos, dias santos e feriados.  O pouco uso prolongava a vida útil dos sapatos, pois durante a semana calçávamos alpercatas de couro. Uma vez, desejei uma sandália japonesa, de borracha, com correias trançadas, recém chegada ao mercado. Todos da rua já possuíam sandálias japonesas. Minha mãe olhou-me, expressão de nada poder fazer. Não era com ela; fosse conversar com meu pai. Tempo perdido falar com meu pai. A resposta, já sabíamos:  sandália japonesa acaba num instante. E tem mais – reagiu minha mãe – vai perder na primeira semana. Tudo que tem, perde! Cadê o lápis que seu pai deu na segunda-feira? Cadê o lápis?  Guardei; ta bem guardado, respondi. Tá mentindo! Você perdeu. O mesmo vai acontecer com a sandália, se seu pai comprar.  Cadê o lápis mesmo? A situação revertera-se. Esqueci da sandália japonesa e fui procurar o lápis. De fato, tinha guardado; onde, não sabia.

Olegário era o melhor engraxate da cidade. Fazia ponto no oitão, ou seja, na sombra ao lado da casa. Suas gaitadas – risadas – eram ouvidas à distância.  Mascava fumo de rolo, fedorento. As cusparadas empestavam o ambiente com o cheiro nauseabundo do fumo. “Saiam do meio que vou cuspir!”, gritava antes de lançar um cuspo escuro na rua. Alguém pisava no cuspo do engraxate: “Seu Olegário, não cuspa na rua. Cuspa aí, no cantinho, pra gente não pisar nessa imundície”. Não posso cuspir num cantinho perto de mim – respondia Olegário. Não vou agüentar o fedor de fumo mascado. “Então deixe de mascar”, retornava a mulher.

– Acostumei a mascar dia e noite. Se parar, os dentes vão cair.

– Que falta fazem esses dentes pretos?

– São fortes, dona Maria José. Carne? Como é crua mesmo!

– Creio em Deus padre! – falou Maria José, arrepiada. Olegário soltava, então, a mais gostosa gaitada. A mulher interpretava como provocação: – Você vive como bicho! O prefeito devia proibir gente imunda de cuspir na rua.

O engraxate soltou outra risada. Maria José enervou-se:

– Vou chamar a polícia! Não me provoque. Está chegando a festa do Rosário e não quero pecar. Não me provoque.

Olegário espalmou as mãos no rosto, olhava o céu:

– Minha “nossa” Senhora do Rosário, no dia da sua festa vou estar limpo, de roupa nova, ajudando a carregar seu andor.

Maria José perdeu a calma, rogava a última praga:

– Não vai carregar andor nenhum! Não vai conseguir limpar a graxa dessas mãos! Essa você me paga. Essa você me paga. Com fé em Deus…

Olegário continuou o trabalho. Os garotos apreciando. Esse vai ficar brilhando – falava Joaquim. Quem vai brilhar mais é aquele marrom ali, dizia outro. Só porque é do pai dele – intercedeu Gilberto, chamado Bertinho, também apelidado de Coruja-Prenha. Cala a boca! – respondeu Dílton. – Meu pai tem três sapatos! O seu não tem nenhum. Só anda de alpercata.

Coruja-Prenha sentiu a ofensa, mas não podia negar:

– Não sei porque seu pai tem três sapatos, se só pode calçar um de cada vez. Meu pai tem alpercata mesmo. Só pode ter uma porque é pobre; mas é pobre da graça de Deus. O seu, é rico da graça do cão.

– Da graça do cão é o seu. O meu, é da graça de Deus.

– Quem é rico é da graça do cão. Deus não gosta de rico.

Gosta. Não gosta. Gosta, sim. Não gosta. Gosta… Rolaram pelo chão. Olegário soltou um grito medonho: “Parem de brigar ou vai todo mundo embora!” O estrago já estava feito: Coruja-Prenha venceu a briga, mas perdeu a batalha: rasgou-lhe uma das poucas camisas. Furioso, arremeteu: “Rasgou minha camisa. Vai ter que dar outra!” Sua camisa estava boa de jogar fora, respondeu Dílton. Quero outra camisa. Vou dar parte à sua mãe. Quero outra camisa… – Coruja-Prenha, chorando, foi à casa de Dílton. Se chegasse sem camisa, apanharia de chicote de cavalo; questão de sobrevivência.

Retornou satisfeito: “Falei com dona Edite. Me mandou passar de-tardinha. Vai me dar uma camisa dele”. Se ver você com camisa minha, tomo e rasgo. Não quero nem saber quem deu!, declarou Dílton. Olegário acalmou, conhecendo a situação de cada um: Não faça isso, seu Dílton.  Sua mãe deu porque quis dar. Vá pra casa que é melhor. Dílton obedeceu. Bertinho amarrou a camisa rasgada na cintura. Apareceu Maria, irmã mais velha:

– Bertinho, venha pra casa. Mamãe não quer você brigando que nem cachorro. Vista a camisa. Apanhou?  Se apanhar na rua, apanha em casa também. Apanhou?

– Apanhei não.  Fiz foi bater.

– Vista a camisa.

– A camisa rasgou na briga. Já fui dar parte a mãe dele. Vai me dar outra.

– Rasgou sua camisa? Pois vá buscar. Só chegue em casa com outra camisa. Não deixe mamãe saber, seu descarado!

A tarde continuava ensolarada. Nicinha de Sátiro mandou os calçados de toda a família. Olegário devolveu; não daria tempo lustrar. Continuou polindo os sapatos…  Cuidado com esse, Olegário – falou meu irmão Fernando, apelidado de Fefé.

– Esse eu conheço não é de hoje. Mais de três anos que limpo esse sapato. Pergunte a seu pai o que faz pra durar tanto.

– Agora você errou. Esse foi meu; não é mais. Agora é do Tugido; ficou apertado pra mim.

– Ganhou um novinho?

– Fiquei com o que era do Tal, meu irmão.

– Conte essa estória direito. O Raulzinho ficou com o seu e você ficou com o do Tal. O Sibute, seu irmão, ficou com o do Raulzinho, o Raulzinho ficou com qual? Já me enrolei todo…

– É fácil, Olegário. O Cenço, o mais novo, apelidado de Sibute, ficou com o do Raulzinho. O Raulzinho, com o do Tugido.  O Tugido ficou com o meu. Eu fiquei com o do Tal, que tem o pé maior.

– O Tal vai ficar descalço?

– Meu pai vai comprar um sapato fiado, mas ele não quer. Vai pra procissão descalço, mas não quer fiado. Ele acha que seu Zebinha vende com a cara feia.

– Aí ele se engana. Sabe quanto custa um sapato fiado em seu Zebinha? Um dinheirão! É juro de arrombar. Termina pagando três pares. E quem fica com o sapato do mais novinho?

– Minha mãe limpa pra o que vai nascer já ter um sapatinho pronto.

O sol preparava-se para dormir. Mais da metade da tarde fora embora. Manuel da Isa perguntou quem iria tomar banho no rio. Bertinho esperaria dona Edite, para receber a camisa. Também não vou, alertou Bira do Valdemar. Iria jogar bola, no pneu de couro novinho, de Zezinho. A bola viera de São Paulo: “Hoje é a inauguração. Mas de graça só eu, porque sou bom de bola. Quem quiser jogar tem que pagar. Estou falando o que ouvi. Quem não pagar não joga”, alertou Bira. Manuel da Isa não aceitou: “Então não vai ter jogo. Ninguém tem dinheiro, ele não pode jogar sozinho”.

Zezinho acabava de encher a bola, vermelhinha. Pedi pra ver. Respondeu-me, grosseiro: “Ver, pra que? Pra ralar?”. Pegar não rala, respondi. “Não está à vista, não. E tem mais: quem quiser jogar vai ter que pagar”. Se ninguém tiver dinheiro, perguntei-lhe. Paga em tampa de garrafa ou dinheiro de cigarro – respondeu Zezinho. Não recebo Continental. Só de BB pra cima.

Quem não tiver tampa de garrafa nem dinheiro de cigarro? – interviu Sarambica. “Paga com dinheiro de verdade. Se não tiver, não pega na bola nem como gandula. Se pegar, apanha!”. Sarambica pediu, humilde: “Eu queria jogar. Posso pagar depois?”. Pode, sim; de noite, respondeu Zezinho. Quando for jantar traga um pedaço de pão com ovo, definiu o dono da bola.

– Não posso. O pão é contado e não tem ovo.

– Não tem ovo? Ninguém come ovo em sua casa?

– Só meu pai. Não vou pegar o ovo dele pra dar a você.

– Não quero o ovo do seu pai. Deus me livre! O que vocês comem?

– Um pão com farofa de peixe.

– Só come isso todo dia? Estou sentindo um fedor de peixe… – Zezinho abana a mão na frente do nariz. – Não sabia que na sua casa só se comia peixe.

– Meu pai é pescador. Nem todo dia pode comprar carne ou ovo. Tem dia que não tem nem pão…

– Que pai é esse, Sarambica? Deixar a família comer só peixe? E peixe, porque é só chegar no rio e pescar. Se tivesse que comprar, comia era farinha seca mesmo.

– Diz isso porque seus parentes de São Paulo são ricos. Meu pai não tem trabalho.

– Fale com ele pra arranjar um emprego. Seu Elias Rosal, os Castelo, os Ribeiro devem estar precisando de gente.

– Quer saber de uma coisa, Zezinho? Fique com sua bola. Não quero mais jogar. Não vou trocar meu de-comer por jogo.

Vandir entrou na conversa: – Zezinho, é pecado. Quer tirar o pão de Sarambica em troca de uns dois chutes nessa bola? A bola sem a gente não vale nada. Se Sarambica não jogar, ninguém joga.

– A bola é minha! De graça, ninguém. Vai estragar e não vou poder comprar outra. Se não quiserem, não tem problema. Vou guardar meu pneuzinho novo.

Intercede Aílton, de boa condição financeira. Pagaria por Sarambica. Paga o quê? – perguntou o dono da bola. – Não quero nem dinheiro. Quero um pão com ovo, de noite. Se não tiver pão com ovo, traga o que tiver, menos peixe.

Saímos, Zezinho abraçando a bola. Adiante, Paulinho do Artur perguntou aonde íamos. Pra várzea, jogar bola; vamos fazer dois times. Zezinho ganhou uma bola novinha, profissional, veio de São Paulo. Venha ver – convidou Dílton.  Não posso; sou intrigado com ele – respondeu Paulinho. Mas pode jogar na bola, insistiu Dílton. Como, se a bola é dele? – conformou-se o outro.

Dílton cochichou com Zezinho, que balançou a cabeça afirmativamente.  Dílton, então, concluiu: “Pode jogar. Só tem um problema. Vai ter que pagar. Zezinho não faz nada de graça. Até Sarambica vai pagar”.

– Vou pagar o quê?

– Vou perguntar… – O grupo esperou a resposta… – Tá resolvido! Pode jogar, mas com uma condição. Você chuta muito forte. Zezinho não quer que chute forte. A bola é nova, pode estourar os pontos.

– Assim não dá – respondeu Paulinho. Tenho culpa se chuto forte com os dois pés? Bolinha nova é boa, pra amaciar.

Dílton dirigiu-se a Zezinho. O dono da bola franziu a testa e respondeu. O interlocutor transmitiu: “Zezinho aceita. Pode jogar. Agora vai ter que pagar. Ele não quer nem dinheiro. Depois você paga. No armazém de seu pai tem demais, não vai fazer falta. Chegam caixas e mais caixas de Santa Maria da Vitória”.

– É cachaça? O que tem muito no armazém de meu pai é cachaça.

– Se fosse vinho, garanto que queria. Cachaça não sei, não. Vou perguntar… – O interlocutor falou ao ouvido. Transmitiu a resposta: – Cachaça não quer, não. Quer comida.

– Esse sacana é guloso. Diga logo o que quer.

– É comida gostosa. Quer uma rapadura das grandes.

– Rapadura? Ele vai fazer o que com rapadura?

– Cocada-puxa pra vender. Aceita? Da pequena não quer porque é dura.

– Das grandes, não dou. Dou das médias.

– Certo; dá que dia?

– Amanhã. Mas vou descontar na bola.

Prosseguimos ao campinho da várzea. Zezinho, compenetrado, a bola entre os braços. Pedro da Júlia perguntou aonde íamos. Quem respondeu foi Sarambica: “Jogar bola; quer ir?”. Zezinho repreendeu: “Você é dono da bola, Sarambica? A bola é sua”. Não acho nada demais chamar ele, respondeu cabisbaixo Sarambica. Todo mundo pagou; você não vai pagar e ainda convida como se fosse dono da bola?, tornou Zezinho.

– Só chamei porque ele é bom de bola. Você mesmo diz.

– Dê seu lugar a ele.

– Dou mesmo. Pedro, pode ir. Eu vou pra casa.

Pedro não aceitou. Vandir repreendeu. Aquilo não se fazia. Humilhar Sarambica, que era o próximo… “Você nunca leu o catecismo. Não sei nem se fez a primeira comunhão”. Zezinho mandou Vandir à porra. Quem se doera que tomasse as providências…

– Se quiser pode ir embora. Aliás, quem vai embora sou eu. Vou guardar meu pneu. Pelo menos não ralo ele hoje.

Apareceu Bostê, de batismo Wilson Café, valentão da rua de Cima. Era espírito de porco, alcunha para pessoas malvadas. Vão pra onde, tropa de frouxo? – perguntou. Frouxo é a mãe, responderam. Quem? não ouvi direito – tornou Bostê. Frouxo é a mãe; quem falou fui eu. Quer que repita?- desafiou Aílton. Você não é homem pra me bater, seu bosteiro.  Sabe o que vai perder… Merenda nunca mais.

– Quem sou eu pra bater no meu amigo-quase irmão?  Só queria saber pra onde vocês vão.

– Jogar bola. Zezinho ganhou um pneu número dois.  O irmão mandou de São Paulo. Vamos inaugurar. Só tem um porém, Bostê. Só joga quem pagar.

– Vou de qualquer jeito. Pedro da Júlia vai também. Pode vir, Pedro – dirigiu-se ao outro. Você não vai pagar nada. É meu convidado. Vai jogar no meu time, não é Zezinho?

– O time é seu, Bostê. Bote quem quiser. Vai jogar com que bola? Para a minha bola nova já está completo. Se pagar, posso até abrir duas vagas.

Bostê chegou-se a Zezinho, acintosamente…

– Vou jogar sem pagar. O Pedro vai ser meu ponta-direita. Se conversar muito vou dar coroão pra cima. Tou ressecado por bola. Vamos logo, está escurecendo.

– Ah Bostê, lembrei de uma coisa. Não vamos jogar mais hoje. Esqueci de passar sebo de bode pra amaciar os gomos.

– Tá querendo correr? Vai ser hoje, agora! A bola vai sem sebo mesmo.

Zezinho disse não; a bola era dele. Bostê decidiu: “Se não for, pode esquecer em casa. Se sair com ela, vou furar. Com pau mesmo eu furo. Você escolhe”. Vandir chamou Zezinho. Confabularam. Expressou o resultado:

– Tá certo, Bostê! Você vai jogar de graça. Pode vir também, Pedro. Vamos depressa. Está escurecendo e hoje é o primeiro dia de novena. Não quero perder de jeito nenhum!

Chegamos ao campo. Despimo-nos das camisas para não suar nem rasgar. O par-ou-ímpar foi ganho por Aílton, que escolheu Vandir. Zezinho escolheu Pedro da Júlia. Sarambica provocou: “E não queria deixar o Pedro jogar…”. Cale a boca ou deixo você de fora – respondeu o dono da bola.

Foi dada saída. A bola saltava apressada pelo chão batido. Pedro driblou Danton, lançou Zezinho que, mascarado, quis colocar e chutou devagar. O goleiro Haroldo devolveu a bola com um chutão ao alto. Zezinho não gostou:

– Assim não, Haroldo! A bola nem amaciou ainda.

– Jogo é jogo. Se não passou sebo não é problema meu. Se jogar perto você pega e faz o gol. Vou jogar para o alto. Goleiro joga é assim. Fico no gol, parado, esperando uma bola de vez em quando. Não tenho nem direito de chutar?

– Jogue com a mão, como fazem os goleiros profissionais.

– Não sou profissional e gosto é de chutar mesmo!

Vandir pede pressa, jogo é jogo: “Anda, rapaz! Tá ficando tarde. Joga essa bola”. Haroldo lançou pelo alto. Zezinho zangou-se mais ainda: “Está fazendo de propósito, não é Haroldo?”.

– Tou não. Se quiser, pode vir para o gol.

Bostê deu uma entrada bruta em Camerindo.  Dílton reprovou: “Pra que isso, Bostê? Quase quebra a perna do rapaz”. A resposta veio imediata: “Não tou vendo rapaz nenhum. Se é Camerindo, pior ainda. Não agüenta o vento do meu soco. É melhor deixar de manha” – completou. Camerindo levantou-se num salto!

Pedro novamente pela direita. Driblou Bertinho. Chutou certeiro no canto esquerdo. A bola ultrapassou a marca do gol, quicando para o lado do Capão de Cima. Os meninos de lá também jogavam num campinho de areia. Zezinho arregalou os olhos: “Minha bola! Por que deixou passar? Corra, Haroldo! Vá buscar minha bola ligeiro. Os do Capão vão pegar minha bola!”.

Dito e feito. Juvenal, o mais valente, deu o maior chutão para cima. A bola subiu tanto que diminuiu de tamanho. Nego do Barqueiro também deu coroão. O Gorolha, idem.  Zé Resseca, também. Haroldo corria atrás da bola, que subia ante sua chegada. Zezinho apavorou-se: “Vão estourar minha bolinha. Me ajudem! Você, Bostê, que é valente e não apanha de ninguém, venha me ajudar”.

– Zezinho, não vou não. Os do Capão de Cima só andam armados. Não tenho barriga pra isso, não.

– Pelo amor de Deus, Bostê! Vão acabar com meu pneu novo. Dou o que você quiser. Prometo! Tudo o que quiser.

– Dá mesmo? Olhe lá… Ainda vou dizer o que quero.

– Pode pedir. Ande depressa, se não vão acabar com minha bolinha.

– Eu vou, mas não vou só. Vou na frente, todo mundo junto atrás. Eles são muitos. Tá certo, turma? – concordaram. Só faltava Bostê dizer o que queria: – Meu pagamento vai ser o dinheiro que todo mundo pagou pra jogar. Aceita?

– Isso não! O dinheiro é pra comprar outro pneu quando esse acabar. Aí não pode!

– Então fique com seu pneu velho e acabado, se sobrar alguma coisa.

– Não posso dar o dinheiro. Prometi que ia guardar.

– Pode guardar. Já vou…

– Venha cá! Dou o dinheiro. Só não dou duas coisas. O pão com ovo que Dílton vai me pagar e a rapadura do filho do Artur. Certo assim?

– Quero tudo! O pão com ovo vai ser meu café hoje de noite. A rapadura, vou adoçar café amanhã cedo. Quero tudo.

– Não recebi tudo ainda.

– Ainda quer discutir, rapaz? Você recebeu. Só falta o pão e a rapadura. Esses eu mesmo recebo. Quanto mais demora mais difícil fica.

– Tá certo; pode ir.

– Pode ir, não: pagamento adiantado.

Zezinho enfiou mão no bolso, triste… O dinheiro do outro bolso – cobrou Bostê. Esse é meu, vaticinou Zezinho. – Agora é meu. Se quiser seu pneuzinho de volta. Ligeiro ou o bicho vira pó.

Bostê dirigiu-se ao grupo: “Esse dinheiro é pra chupar picolé depois da novena. Agora vamos tomar a bola!”. Bostê na frente, como prometera, camisa amarrada na cintura pra não rasgar na briga. O sol se punha vermelho, mesma cor do sangue que poderia correr. O comandante Bostê com a cara mais feia! Aproximou-se; tropeçava quem encontrava pela frente: “Que porra é essa? Compraram bola pra dar coroão? Se pedissem pra jogar, a gente arranjava um lugar. Podia marcar até uma partida valendo ponto. Querem esculhambar!”.

O destemido Bostê derrubou Gorolha. Investiu contra Zé Resseca. Chegou tarde, a bola já tinha subido às nuvens. Esperou a queda, disputava com Nego do Barqueiro quando Juvenal aplicou-lhe uma rasteira. Bostê foi ao chão, entupiu a boca de areia. Botou fogo pelas ventas de tão zangado! Investiu contra Juvenal. Aplicou-lhe um pontapé na altura do baço. Juvenal recuou. Bostê acertou dois socos no rosto do inimigo: “Fi-de-rapariga! Vou botar pra comer terra na porrada!”. Juvenal sentiu a veneta de Bostê. Escondeu-se no seio do grupo. O adversário foi atrás: “Deixe de ser covarde. Venha brigar. Seja homem!”.

– Cuidado, Bostê! O Gorolha tá de canivete, gritou Sarambica. Bostê respondeu, incontinente:

– Eu sabia! Aqui só tem covarde. Por isso trouxe minha viana. Pode puxar o canivete, fio-de-uma-égua! – Bostê arrancou uma faca de dentro das calças: – Acham que ando sem minha viana, tropa de covarde? Vou cortar o bucho de todos, um por um. Podem entrar!

A turma do Capão recuou. Bostê continuou ameaçando. Os da rua de Cima admirados com a coragem do amigo. A bola, novinha, relegada num canto. Sarambica a pegou, como um troféu: “Já peguei a bola, Bostê!” Zezinho correu a tomar-lhe. Sarambica não gostou:

– Calma, Zé. Parece que sou do Capão de Cima. Vou devolver sua bola.

Zezinho pegou a bola e saiu na carreira. Dílton ainda pediu para esperar, irem todos juntos. Era tarde: Zezinho já chegava, ofegante, ao beco da Fadinha.

O sino, o grande sino da matriz, toca as ave-marias. Início de mais uma noite calorenta. O serviço de alto-falante anunciava a hora do ângelus. A bela cantiga do sino misturava-se ao coaxar dos sapos. A cigarra despedia-se de mais um dia de cantiga. Os pescadores retornavam das águas. Monsenhor Nestor declamava uma passagem da bíblia: “Queridos irmãos – voz entoada – a Virgem Maria está no nosso meio. Vem assumir seu reinado na comunidade. Sabedora que, nesta terra, ela é rainha suprema. O remansense ama sua mãe. Prepara-se nove dias para recebê-la no dia trinta de outubro de  todos os anos. Hoje é o primeiro dia da novena. Vamos esquecer desavenças, unir as vozes pedindo melhoria das condições de vida do povo. O senhor esteja convosco e permaneça para sempre, amém”.

O sino repicava. As duas turmas preparavam-se para o ataque final. Bostê com a faca, Gorolha com o canivete. O sol já se escondia mesmo. Cenário para uma carnificina. Foi aí que se adiantou a figura de Vandir:

– As coisas estão erradas. Vocês não prestaram atenção, mas monsenhor Nestor acabou de fazer uma pregação pedindo a paz. Hoje é o primeiro dia da novena de Nossa Senhora do Rosário. Querem derramamento de sangue nesse dia? Puxem as facas! Se não quiserem, vamos resolver essa questão na bola. Marcaremos uma partida para o primeiro domingo depois da festa do Rosário. Vocês arranjem uma bola. Cada um entra com sua bola um tempo. Vamos embora que já vai começar a novena.

O apoio a Vandir foi irrestrito. Marcamos a revanche, na bola, para o primeiro domingo depois da festa. O juiz seria Valdir Marques, o próprio delegado de polícia. A intenção era cercar o evento de cuidados para não redundar em violência. Os da rua de Cima voltaram comentando a ocorrência: “Nunca pensei que Bostê fosse tão valente e retado”.

– Foi quem salvou. A turma de lá não alisa.

– Sorte foi Neguinho do Jerônimo ter viajado pra Lapa.

– Que lapa? A do jegue?

– Bom Jesus da Lapa, ora.

– Foi fazer o quê lá?

– E eu sei? Sou mulher dele?

– Deve ter ido pagar promessa – ajudou Bertinho. Pra ficar livre dos pecados vai carregar muita pedra na cabeça.

– O mal de vocês é a língua – observou Chiquinho do Oscar.

– Papel feio mesmo fez Zezinho. Pegou a bola e abriu na carreira.

– Se não fosse Bostê, adeus bolinha.

– Bostê ganhou pra isso.

– Mas Zezinho não gastou nada.

– Não gastou, mas pagou. Pagou na hora, todo mundo viu.

– Quem pagou fomos nós.

– O dinheiro que meu padrinho Antônio Coelho me deu passei direto pra ele, por cinco minutos de jogo – queixou-se Sapatão.

– Pior foi Haroldo. Como goleiro, sem ter direito nem a um chutão! Ainda engoliu um gol.

– Engoliu, não: deixou a bola passar para os do Capão. É arriscado Zezinho querer bater nele.

Bostê interviu:

– Ninguém perdeu nada. O dinheiro está aqui no bolso.

– Bem lembrado. O que vai fazer dele?

– Chupar todo de picolé.

– Todo mesmo? – perguntou Sarambica admirado.

– Duas rodadas de picolé pra cada. Com o resto vou comprar uma garrafa de cachaça. Não mereço?

– Cachaça? Quando minha mãe souber que bebe cachaça, não vai deixar mais eu sair com você – registrou Aílton.

– Não é homem, não? O que é que tem? Parece que quanto mais rico mais besta…

– Ela não quer que eu beba. Quando chego em casa cheira minha boca.

– Fumar, pode?

– Só se cigarro não fedesse.

– Está enganado. Cigarro não fede, cheira.

Todos caíram na risada.

O sol escondeu-se completamente. Dezoito horas, Ave Maria. Hora das almas saírem em peregrinação. Apressamos os passos, com medo. Diziam que a alma do finado Nozinho, que morrera tuberculoso, perambulava pela várzea. “É mesmo, Bostê? Vai pra várzea atrás de quê?”. Esse Sarambica não tem jeito – falou Bostê. Sabe de que ele morreu? De doença feia. Até hoje ninguém mora nem vai morar na casa dele. Jogaram dois sacos de sal pra matar os micróbios.

– Que é isso?

– Esse Sarambica é demais – reiterou Bostê. – Micróbio é um bichinho que vive no chão e sobe pelos pés da gente. Entra no Cu, na boca. Enquanto tiver buraco vai entrando. Até matar a pessoa.

– Foram esses bichinhos que mataram o finado Nozinho?

– Se foram, não sei. Sei que morreu de micróbios.

Vandir intercedeu:

– No fundo, no fundo vocês não sabem de nada.

– De nada como? – pronunciou-se Coruja-Prenha.

– Bertinho, é você? Pensei que tivesse ido embora. Nunca mais abriu a boca.

– Você esqueceu, sacana, que já briguei hoje? Que perdi minha camisa, rasgada? Que minha irmã Maria falou que sem outra camisa eu não entro em casa?  Não fui buscar a camisa por causa da porra desse jogo. Vou apanhar de chicote de cavalo. O pior não é isso; vou perder o picolé que Bostê vai pagar. A não ser que dê minha parte pra eu chupar amanhã. Pode, Bostê?

– Dinheiro não dou, não. Guardo pra outro dia. Palavra de amigo. Sei que você gosta de chupar…

– Quem gosta de chupar é sua mãe, sacana.

– Mudando de assunto, Vandir, você sabe de que micróbio seu Nozinho morreu?

– De tuberculose, uma doença forte. Morreu tossindo e escarrando sangue. A pessoa fica fraca, vai ficando mais fraca até morrer de fraqueza. Assim foi com seu Nozinho.

– Que foi feito da farinha, do açúcar, arroz e feijão que seu Nozinho vendia?

– Ninguém quis. Despejaram no rio de Cima. Mais de cinqüenta sacos. Ninguém quis olhar, quanto mais comer.

– Por que a alma de seu Nozinho perambula pelo meio da várzea?

– Atrás do que comer. Seu Nozinho morreu foi de fome.

– Não acabou de dizer que morreu de tuberculose?

– A doença botou ele tão fraco, que não podia fazer comida. Como ninguém cozinhava de caridade, morreu de fome mesmo. Tinha farinha, feijão e arroz, mas a fraqueza não deixava ele cozinhar.

Zé Sarambica murmurou “coitado do seu Nozinho”. O sino da igreja badalava a primeira chamada para a novena. Os garotos apressaram o passo: “Já é tarde. Bateu a primeira chamada”.

– Foi a briga. Se pudesse nem tomava banho. Jantava e ia direto pra novena.

– Eu posso ir sem tomar banho. Mãinha foi pra casa da minha avó. Só vem depois da novena.

– Vai mesmo pra igreja sem tomar banho, Sarambica?

– Depende. Se a roupa estiver bem limpinha, não vou, não; vai sujar. Se estiver já um pouco suja, vou lavar só o rosto e as pernas.

– Não acredito que vai pra casa de Deus todo sujo.

– Não vou sujo, não. Vou lavar o rosto e as pernas.

– Você jogou, suou, caiu no chão… Ainda diz que não está sujo?

– Só caí no chão uma vez. Não suei muito porque joguei na defesa. Defesa não corre muito.

A igreja estava bem iluminada, com lâmpadas florescentes. O povo caminhava como desfile. Os moradores da praça, então!, estavam orgulhosos. Cadeiras na porta, respondiam à saudação dos que passavam. O sino grande badalou a segunda chamada. Uma pequena multidão aglomerava-se fora da igreja. Eram os que iam para conversar, ver os belos representantes do sexo oposto. As senhoras idosas levavam as próprias cadeiras para ajoelhar e pedir anos de vida. Famosa ficou a cadeira de Alice Carneiro, em Jacarandá talhado, possante e acolchoada. Pesava muito e a dona encontrou a solução: Acorrentava a cadeira na grade lateral da igreja.

A igreja fora pintada para a festa. Senhoras e mocinhas saíram a pedir  contribuições para as obras. O comércio colaborou, cada um dentro da sua condição. Chocou a todos a contribuição do maior comerciante da cidade. O nome não interessava, dizia um membro da comissão, mas seu Carlito Sobrado tinha a obrigação de uma contribuição maior.

Uma comissão deslocou-se aos municípios vizinhos.  Alguns diziam que não contribuíam para a festa de outra cidade. Não adiantava dizer que a festa era de Nossa Senhora, a mesma em todo o mundo. A pessoa estaria contribuindo com a mãe de Jesus. Os argumentos foram insuficientes até para convencer o deputado Carlos Viana Magalhães Alcântara Simões e Braga – mais nome que representação. Não contribuiu no Livro de Ouro: “Por que, deputado? O senhor não é o representante da cidade?”, perguntaram.

– De certa forma, sim. Represento uma parte do eleitorado. Recebi duzentos votos em Remanso. Atingi o mínimo e ainda me sobraram cem. Ou seja, precisava apenas de cem votos.

– Então assine o Livro de Ouro em pagamento aos cem votos.

– Fica difícil, minha filha. Não fica bem assinar um livro que vai ficar para a posteridade doando apenas alguns cruzeiros.

– Contribua com o que puder. Pelo menos não perderemos a viagem. Representamos os quartanistas do Ginásio Rui Barbosa. Lá estudam mais de trezentos alunos. Quem sabe…

– O fato é que não posso assinar. Não tenho dinheiro.

– O senhor não tem dinheiro?

– Algum, tenho; ou não seria um político.

– Então ofereça um pouco a Nossa Senhora do Rosário. Deputado, pela última vez, vai contribuir com as obras de recuperação da igreja de Remanso?

– Não vou não, minha filha. Não tenho dinheiro. Já ouviram falar de cheque especial?

– Se é especial, deve ser muito bom.

– Tudo que recebo cai naquele saco sem fundo. Gostaria até de contribuir. Recebo menos de dez mil por mês e devo no cheque mais de quarenta! Não tenho nem o que vender pra cobrir. Eu peço, me perdoem. Não colaboro porque não posso. Espero que vocês garantam pelo menos os duzentos votos que lá recebi. Prometo uma coisa: no dia da festa lá estarei abrilhantando. Mais um favor: passem ali na sala do meu assessor pra anotar o nome e endereço de vocês. Servirá para mandar um cartão de Natal.

A comissão voltou com as burras, aliás, com os bolsos vazios. Nivalda Regis reiterou na reunião de avaliação:

– Disse que não compensava sair para outros municípios. Nosso comércio não é forte, mas o espírito varonil dos comerciantes garante renda para uma festa bonita.  Pintamos a igreja, recuperamos os confessionários, envernizamos os bancos. Trocamos todas as vestimentas das santas imagens. Fizemos um andor novo para a padroeira. Será a melhor festa de todos os tempos, principalmente por ser a última. A próxima já será na nova cidade.

Doutor Délio, da Comissão do Vale, pediu a palavra:

– Amigos, não nasci aqui nem aqui me criei. Vim de longe, do Rio de Janeiro. Desde menino convivo com um dos maiores volumes de água do mundo: o Oceano Atlântico. Estou aqui no desempenho da função de Médico-Veterinário na Comissão do Vale. Que tem o deputado Manuel Novais como representante maior no Congresso Nacional. Nossa instituição, e eu particularmente, contribuiu para o brilhantismo da festa. Conseguimos, com a Empresa da Barragem, a restauração da imagem de Nossa Senhora do Rosário. Levamos a um grande restaurador do Pelourinho, em Salvador. Cobrou uma fortuna para recuperar a doce imagem de quase cem anos. Quero convidar a comissão organizadora, e toda a comunidade, para receber a imagem santa e bela que chegará amanhã, segundo dia de novena. Chegará de avião, porque é no céu que a santa milagrosa vive. Muito obrigado!

– Doutora Maria José, do SESP, Serviço Especial de Saúde Pública, pede a palavra que eu concedo – participa Doutor Libório, coordenador da reunião.

– Amigos remansenses; presidente da comissão da festa; vereador Tonico Mocher, representante do prefeito; secretário municipal da educação, professor Joel Andrade; é com orgulho que profiro essas palavras. Como doutor Alberto da Comissão do Vale, não nasci em Remanso. Mas casei com Remanso, na pessoa do meu esposo Júlio Castelo. O SESP contribuiu e muito, preparando a comunidade para a festa.  Os senhores sabem quantos remansenses salvamos da tuberculose, hanseníase e de outras doenças, durante os meses que antecedem a festa? Foram muitos! Pedi a palavra para lembrar que continuaremos presentes na vida do remansense. Ao contrário de algumas pessoas que só vêm quando querem aparecer.   Peço às autoridades que reivindiquem em Salvador e Brasília mais verbas; para que possamos prestar um serviço digno e a altura do povo. Muito obrigada.

Mal a representante do SESP fechou a boca, Tonico Mocher manifesta-se: – Você é comunista mesmo! Veio fazer campanha pra deputada. Quer ser deputada. Mas a Bahia, muito menos Remanso, não vai eleger mulher deputada; pode esquecer. Você não contribuiu com a festa. Só fez falar e falar. Nem uma palha de coqueiro carregou. As roseiras da sua casa não estão enfeitando o altar. Quer saber de uma coisa? Nossa Senhora do Rosário lhe dê juízo. Muito Juízo!

 Capítulo II

 Depois do jogo tomei banho e fui à igreja. Padre João pediu que não chegássemos após a segunda chamada. Na sacristia  encontrei Joaquim, que  me lembrou estar atrasado. Justifiquei-me: Nem tomara café; fora inaugurar a bola do Zezinho. Os do Capão de Cima tomaram a bola e lascaram a dar coroão. A sorte foi Bostê estar lá. Puxou até peixeira pra tomar a bola.

– Se soubesse tinha ido. Pelo menos ia ajudar o Bostê.

– Zezinho cobrou de todos que queriam jogar. Mas deu ao Bostê, pra tomar a bola de volta. Quem gostou foi ele – Bostê. Mas vai gastar de noite, depois da novena. Duas rodadas de picolé pra cada um. O resto vai comprar cachaça pra quem quiser.

– Vou querer.

– O quê? Picolé ou cachaça? Você não estava no jogo.

– Não fui porque estava viajando com o padre.

– Depois dizem que sou filho do padre. Você não sai da casa dele.

– Ia passando, ele me chamou. Ajudei a carregar umas caixas de livros. Depois me deu um guaraná geladinho.

– A mim ele não dá nada, só pito.

– E os sanduíches de pão de sal?

– Pão com carne como até em casa. Guaraná, só quando fico doente. Mesmo assim, quente; lá em casa não tem geladeira.

– Que horas vai ser a farra? Vai pedir ao Bostê pra eu também participar?

– Peço pra picolé. Pra cachaça de jeito nenhum.

A janela mostrou o padre chegando. Magro e alto, aparentava bem menos que os cinqüenta anos. Joaquim disse que ia bater a terceira e última chamada. Não bata não; o padre ainda não está na igreja, sugeri. A terceira chamada significa o padre já pronto.

– São sete e meia em ponto. Aliás, sete e trinta e um.

– O padre ainda vai se arrumar. Deixe ele chegar.

O padre chegou avexado procurando os paramentos. Respondi estarem no mesmo lugar. E o vinho? Esperando o senhor, pra ver se está bom mesmo, respondi. O castiçal, a água, o cálice? No mesmo lugar; estamos aqui só esperando o senhor.

– Atrasei hoje. Fui levar comunhão a um doente e o pneu furou.

– É difícil trocar pneu, padre?

– É até fácil. Difícil é a coluna agüentar. Já não sou criança.

O padre conferiu os paramentos. Foi à janela. Fechou o armário. Demonstrou impaciência: “Pensei que estivesse mais atrasado”. Apareceu Carlotinha, encarregada pelas chaves da igreja e arrumação da casa paroquial:

– Não vai ter terceira chamada? Muita gente está indo embora.

Acordamos: eu, Joaquim e o Padre. Este se virou a mim:

– Não bateram a terceira chamada?

– Bateu não, padre. Pedi ao Joaquim pra só bater quando o senhor chegasse.

– Cheguei há mais de quinze minutos! Estou impaciente esperando essa terceira chamada e me diz isso?

– Desculpe, padre; não fui só eu. O Joaquim esqueceu e o senhor também.

– Não quero saber quem foi culpado. Corra já pra bater a terceira chamada.

Saí correndo. O que foi? O que foi? Respondendo a todas as perguntas invisíveis, falei: Esquecemos de bater a terceira chamada! Subi as escadas rumo ao sótão, onde ficavam os sinos. O local era habitado por morcegos, corujas e baratas. A quem atender: Ao padre ou ao medo que me recomendava retornar e dizer que não iria badalar o sino? O raciocínio foi rápido. Agarrei Elzir pelo braço: Venha ajudar a bater o sino. Pedi que puxasse a corda para lá e para cá. Ouvi o som mavioso do grande sino. Gritei, depois, que parasse. Foi inútil; Elzir continuou badalando por mais longos sessenta segundos, uma eternidade para uma missa que já estava atrasada. Criei coragem, subi ao sótão: Pára com o sino! Quer badalar a vida toda? Nunca mais chamo você pra bater sino.

– Você não me disse quantas batidas era pra dar. Depois, bater sino é bom.

– Bom pra você. Quem vai tomar bronca do padre sou eu.

O padre chegou ao altar-mor. Postei-me, ofegante, no lugar do coroinha que batia a campainha e, melhor parte, colocava a patena no queixo de quem ia comungar. Inclusive das mocinhas da minha idade. Eu era um coroinha feliz.

[…]

 III

Meu pai chegou para o café da manhã. Avó Nelcina fazia beiju e fritava um curimbatá. Ele era boa boca; lembrava não ter hora para chegar, importante alimentar-se bem logo cedo. Avó Nelcina compreendia: “Pode comer tudo. Faço mais para os meninos”. Assim procedia. Limpava os pratos e ainda saia com vontade de comer mais um beijuzinho da hora com dois ovos de galinha de quintal fritos no toucinho de porco. Uma delícia assassina!

Com meu copo de alumínio fui ao pote pegar água. Depois, ao quintal, escovar os dente. Pia ainda não chegara lá em casa. Os adultos lavavam o rosto em água posta em bacia esmaltada. Os meninos, com o restinho de água que sobrava da escovação. Em quinze minutos eu estaria a caminho da escola. Na sacola: Livro de leitura, caderno fino, borracha e lápis; não possuía caneta. Na escola perfilávamos em posição de sentido. Rezávamos Pai Nosso e Ave Maria, depois cantávamos o hino nacional. Estudei com dona Corina Castelo durante três anos. Eu não era flor que se cheirasse:

– Agildo.

– Presente.

– Não estou fazendo chamada. Quero que preste atenção à aula. Então me diga: Eu falava de quê?

– A senhora falava de um homem que desbravou o Brasil de norte a sul, entrando por Minas Gerais até a foz do Urinol.

– Você misturou tudo! Pegou um mosaico aqui, outro acolá e juntou para fazer uma figura estranha. Para completar, trocou Orenoco, que é um rio, por urinol – que você sabe o que é. Vou dizer a seu pai. Você pode ser bom aluno, como de fato é, mas não prestava atenção. Eu falava sobre os bandeirantes e você misturou tudo.

– Professora, me desculpe; estou muito preocupado. A senhora foi à missa ontem?

– Ontem não teve missa, não poderia ter ido.

– Desculpe. A senhora foi à novena ontem?

– Não pude. Meu filho Decinho teve uma dor de ouvido, não saí de casa.

– Estou preocupado, professora, com a imagem de Nossa Senhora. Levaram pra Salvador, pra restaurar, e até agora não voltou. Se perdeu, foi parar no Mato Grosso!

A classe toda sorriu alto. No Mato Grosso? – questionou Carlos Guariroba. No Mato Grosso mesmo! Nesse lugar que o bandeirante desbravou. Deve ser tão longe que não vai voltar mais, insistiu o colega. Vai voltar sim, Carlos – ponderou dona Corina. A imagem da Virgem é um patrimônio do povo de Remanso. O lugar dela é aqui.

– Professora, como essa santa vem de tão longe? Ninguém sabe nem onde é Remanso. – Está no mapa, respondi. – Nunca vi. Já procurei a morrer e nunca encontrei no mapa.

– Remanso existe, é um município legal na Bahia e no Brasil. Mas o mapa só registra municípios maiores. Remanso é pequeno.

– Pode ser, mas nunca encontrei.

– Voltando ao assunto, professora, a Santa não chegou. Ontem foi o primeiro dia de novena. A senhora sabe, eu sou coroinha…

– Pelo jeito vai ser é padre – gritou Moacir lá do fundo.

– Se Deus quiser – apoiou a professora.

– Vou ser padre quando padre casar. Porque quero é casar.

– Você é tarado! – completou Jorge Luís do Ismael.

A classe silenciou. Ele próprio sentiu que fora longe demais. Tentou corrigir: “Professora, eu quis dizer… A senhora me desculpe…”

– Indesculpável, Jorge Luís! Você usou termos inadequados para sala de aula. Não posso desculpar. Vou suspender você por três dias. Pegue suas coisas e vá para casa. Amanhã mando o aviso.

– Mas professora… – Nem mais nem menos. Faça o que estou mandando.

Jorge Luís saiu, cabisbaixo. Suspenso por uma palavra. Sabia o significado: Surra e três dias acordando madrugada para ajudar o avô na padaria. O recreio foi anunciado pela campainha, apelidada de sineta. Moacir Libório trouxera pequena bola; cuidamos de preparar o campo para o jogo. O suspenso, Jorge Luís, não foi para casa; escondeu-se, à espreita. Logo descobri a razão: “Você vai me pagar, seu China de uma figa!”. China era meu apelido. Nasci com olhos oblíquos e rosto arredondado. Repetiu: “Vai me pagar, seu China filho de uma égua!” Meu nome não é China e não lhe devo nada, respondi.

– Deve, sim! Por sua causa fui suspenso. Vou passar três dias acordando madrugada para ajudar meu avô na padaria. Pela aula, não; já estou perdido mesmo. Não quero é três dias debaixo do chicote de meu avô. Você foi o culpado. Fui dizer que você era tarado e a professora me suspendeu.

– Você acha que sou tarado?

– Falei brincando.

– Acha certo dizer palavrão na sala de aula? Sala de aula é lugar de brincadeira?

– Você vai apanhar, seu China xibungo!

– Xibungo é você! E apanhar não vou, não.

Jorge avançou. Rolamos pelo chão. Guariroba, o mais velho, atiçava: “Vamos, Jorge! O Agildo está vencendo!”. A turma aglomerou-se em volta. Jorge Luís apertava minhas goelas. Continuava apertando, já incomodava. A turma gritando, vai, vai, vai! Não vi outra saída: Para não ser esganado levei a mão aos órgãos sexuais do inimigo e apertei. Foi o suficiente. Jorge afrouxou a mão, afastou-se gritando: – O covarde me capou! Me acudam. Estou capado!

Levantei-me, sacudi a poeira. Toma, Filho da puta! Quer brigar com homem, dá nisso. Vi a professora Corina retornando do recreio. Marília, a sobrinha, disse-lhe algo. A mestra fez sinal com a mão pedindo que esperasse. Já na sala, dirigiu-se à turma:

– O delegado acabou de ir lá em casa. – Silêncio. A professora continuou: – Não querem saber por quê? – Continuamos em silêncio. Ela resolveu ir direto ao assunto: – Hem, Agildo? Não quer saber por que a delegado foi em casa falar comigo?

Não sei porque não, dona Corina, respondi-lhe. Lógico, a professora utilizava recursos para obter confissão do brigão. Tentei desviar o rumo da conversa: A não ser, professora, que tenha ido dar notícia da imagem de Nossa Senhora, disse.

– Você acha que ele iria a minha casa dar notícia da imagem desaparecida?

Carlos Guariroba interferiu, cheio de si: “A imagem não é Desaparecida não, professora: é de Nossa Senhora do Rosário!”.

A professora respondeu ríspida:

– Não estou pedindo sua opinião. Além do mais, o nome da padroeira do Brasil não é Nossa Senhora Desaparecida. É o contrário: Nossa Senhora Aparecida!

A classe caiu em risada. A professora permaneceu séria, zangada mesmo. Bateu a régua pedindo silêncio: “Aqui não é lugar de brincadeira! Não admito brincadeira em minha sala de aula. Eu sou a dona da escola. Aqui não é do governo”. O silêncio imperou. A professora, zangada, referiu-se a mim:

– Seu Agildo Regis me responda. Por que o delegado iria a minha casa dar notícias da imagem de Nossa Senhora?

– Professora, todo mundo sabe que a senhora é autoridade em Remanso. É uma das melhores professoras da cidade.

– O que tem o ensino com o desaparecimento da imagem?

– Além de professora, é cunhada do prefeito. O delegado pode não ter encontrado o prefeito, veio dar notícias à senhora.

– Você é muito vivo. Por isso sabe onde quero chegar. Quer que eu vá direto ao assunto?

– Pode perguntar que eu respondo. História, Geografia, Matemática, qualquer assunto. Pergunte que respondo.

– Minha pergunta é outra. O que você fez ao Jorge Luís, seu colega?

– Eu, professora? Não fiz nada. A senhora é que suspendeu ele três dias.

– Deixe de ser cínico! Você brigou com ele. Todo mundo viu.

– Não briguei, não. Ele é que avançou, me agarrou e jogou no chão. Me sujei todo.

– E não brigou? Isso não é briga?

– Pra ele. Só fiz me defender.

– Se defendeu como?

– No aperto, com falta de ar, garganta apertada, querendo desmaiar, não tive recurso. Peguei naquilo dele – não digo o nome porque a senhora me suspende também – e apertei. Só fiz isso. Todo mundo está de prova. Não foi, Guariroba? Carlos Guariroba nem olhou. Dona Corina decidiu:

– Você vai receber um castigo. Sala de aula não é lugar de briga!

– A briga foi lá fora, professora.

– Não pedi sua opinião! Sala de aula não é lugar de briga. É lugar de respeito e o recreio é uma extensão da sala. Para que não aconteça mais nenhuma confusão, por menor que seja, durante o recreio, vou lhe dar um castigo. – A professora sentenciou: – Seu castigo será escrever mil vezes a frase “Não devo brigar na escola”.  Vou olhar se a letra é sua mesmo. Se tiver letra diferente o castigo dobra. Entendeu? Entendeu mesmo?

Não respondi. Mil vezes era muito. Demoraria pelo menos uma semana! Logo na festa do Rosário? Perguntei em quanto tempo escreveria:

– Vai começar agora e só pára quando terminar.

– Dona Corina, só vou terminar daqui a uns dez dias.

– Melhor, para aprender. Não vai sair de casa até terminar.

– Dona Corina, pelo amor de Deus…

– Não venha meter Deus na história. Ele não gosta de coisas erradas.

– Professora, estamos na semana da festa. É a última festa do Rosário. Hoje é dia dos funcionários públicos.

– E daí? Você é funcionário público?

– Mas sou devoto de Nossa Senhora.

– Você não tem idade pra ser devoto de Nossa Senhora.

– Sou menino ainda, mas sei rezar. Tudo que peço ela me concede. Se não agradecer vou perder as graças.

– Agradeça de noite, antes de dormir. Eu quero as cópias daqui a três dias e com sua letra.

– Professora, me desculpe, a senhora esqueceu que sou coroinha? Que ajudo o padre a celebrar a novena? Vou pedir pelo amor de Deus: Me arranje outro castigo. Não vou conseguir escrever a frase mil vezes. Estou preocupado com o desaparecimento da imagem de Nossa Senhora do Rosário. A senhora não está preocupada?

Senti que ia vencer. A classe continuou silenciosa. A professora, quieta. Repeti a pergunta. A boa professora bateu a régua na mesa, gritou por silêncio quando ninguém dava um pio: “Silêncio! A aula está suspensa. Todo mundo pra casa. E você, seu Agildo, amanhã a gente termina a conversa”. Saímos sem agradecer o dia, como sempre fazíamos. No caminho Joaquim comentou: “Tá lascado, Agildo. Nunca vi a professora assim nervosa”. Lascado, por quê?

– Ainda pergunta?

– Pergunto sim: Lascado por quê?

– Você desafiou a professora.

– Não desafiei ninguém. Apenas me defendi.

– Ouviu bem o que ela disse? Que a escola era dela?

– O governo deve pagar a ela.

– Ela precisa de governo? Uma mulher rica, cunhada do prefeito, vai precisar de governo? Só as fazendas que tem… Se prepare.

– Pior é ela falar com meu pai. Vou tomar uma surra.

– Pior vai ser o castigo.

– Mais do que escrever aquela frase grande mil vezes?

– Eu acho. – respondeu Dilton. Você acha o que, Joaquim?

– Vai expulsar da escola.

– Nossa Senhora me proteja. Se sair não tenho outra escola pra ir. Vou fazer uma promessa.

– Que promessa?

– Não é da conta. Promessa fica entre a pessoa e o santo.

[…]

………………

Memórias de um Coroinha é uma grande viagem. Adquira o livro nas principais livrarias ou no site/loja do Autor: astrogildomiag.com.br

O livro pode ser adquirido nas principais livrarias ou diretamente no site/loja do autorastrogildomiag.com.br

No formato e-book está disponível na página da Livraria Saraiva: www.saraiva.com.br

 


Deixe uma resposta