O Purgatório de Eduardo é um passeio pelas calçadas das cidades interioranas brasileiras, onde, em noites enluaradas e calorentas, os vizinhos reúnem-se para contar e ouvir as mais emocionantes, estranhas e bonitas histórias de vida e de morte.
Mais uma vez, o escritor leva-nos à cidade do fundo de sua alma e dá-nos de presente este lindo romance.

 

Opinião do leitor:

livro‏
De: orlando ribeiro de Souza (orlando13galo@gmail.com)
Enviada: segunda-feira, 21 de janeiro de 2008 13:52:43
Para: astrogildomiag@hotmail.com

Caro escritor,
Como disse no e-mail anterior acabo de ler seu livro achei excelente, ha tempos que não ria tanto, Apesar de ser mineiro, adoro os surubins de Remanso, adoro a Bahia e especialmente Salvador onde tenho passado algumas férias. Gostei demais de sua maneira de relatar o dia-a-dia de nossos manos. Apenas não entendi uma parte do livro, que se passa em 1998 e já foi relatado o caso de dólares na cueca. No mais, nota 9,9. Parabéns.
Orlando Ribeiro de Souza
Brasília 21 de janeiro de 2008

***

A razão deste livro

Eduardo dos Santos nasceu em Remanso, Bahia, e convivemos juntos na infância. A paralisia infantil o marcou, nem ele se lembrava quando. O aleijão numa perna não lhe impedia uma vida normal. Jogava, brigava e nadava como qualquer menino das barrancas do São Francisco. Até hoje carrego uma cicatriz na barriga, resultado de uma briga com Eduardo. Fisicamente debilitado e perdendo a peleja, de posse de um pedaço de madeira, investiu contra mim. Por sorte a ponta era rombuda e não penetrou profundamente. A cicatriz está aqui de prova.
Após a infância — quando todos são iguais — a realidade mostra as sequelas da sociedade capitalista, onde o ter suplanta o ser. Eduardo era de boa índole e trabalhador. De família pobre, não evoluiu nos estudos — ao contrário de muitos amigos da idade que, a troco de sacrifícios vida afora, viraram professores, engenheiros, médicos, advogados ou grandes comerciantes. Destituído dos meios de sobrevivência, dedicava-se a biscates, agregado a uma ou a outra família. Mesmo deficiente físico, não perdia um sepultamento. Vestindo a melhor roupa, fazia questão de carregar o caixão. Dizia que, assim, ajudando o defunto na última viagem, garantia uma cadeira no céu. A última vez que o vi foi em sonho. Ao chegar à terra natal, de férias, perguntei por Eduardo. Informaram-me que morrera. Entristeci-me, principalmente pela forma como lhe impuseram o caminho da outra vida. À noite, Eduardo visitou-me em sonho. Num purgatório, lutava desesperadamente para purificar a alma e ganhar o descanso eterno. Garantiu-me que o conseguiria. Mas um fato marcante redirecionou seu destino. Desistiu de tudo, até do descanso eterno. Que teria acontecido de tão importante?
Solicito a atenção do leitor a este relato, que me veio através de sonho numa noite do final do século XX. Acordei completamente atônito, algo me impeliu a escrever estas páginas. A cada noite vindoura, ele, Eduardo, sem que me sentisse invadido na privacidade noturna, cuidava de mostrar-me sua peleja no mundo pós-morte. Mas, acreditem, este não é um livro de terror, não amedronta. A beleza persevera até depois da vida terrena, através da simplicidade, do bom caráter e da amizade. Pena não poder comprovar a veracidade do relato. A nós, mortais, ainda não foi dada a capacidade de penetrar na escuridão de outras vidas. Mas acreditem, o relato é vero.

Capítulo I

Correu o boato que tinham matado João Branquinho, no Piseiro, ponta de rua da cidade. A faca quebrara dentro, tão violento o golpe. O assassino fora o Expedito, negro forte carapinhado. A cidade foi ver o morto, o sangue escorrendo do peito. Atingiu o coração, disse o soldado Zé Cordeiro antes de sair à procura do delegado. Ninguém dava notícias da autoridade. A mulher informou que ele não dormira em casa. Teria ido atrás de um ladrão de gado.
O defunto continuava estirado; o sol já alto e quente. O assassino? Embrenhou-se no mato, rumo de Pilão Arcado, onde tem parente — diziam. Alguém colocou uma moeda na boca do defunto, o criminoso não iria longe. Muniz, o rezador, prometeu fazer Expedito andar em círculo, feito pião, até a polícia o prender.
O padre está chegando! Deram passagem ao Vigário. Lançou água benta, rezou em latim, como foi o crime? Ninguém respondeu porque ninguém sabia. Retornou o soldado Cordeiro. Dá licença, dá licença…. Aproxima-se do cadáver. O delegado não apareceu ainda? Onde esse homem se meteu? Chico Alfaiate, muito amigo do delegado, informou: “Foi a uma festa de São Gonçalo na Veneza. Só volta amanhã. A não ser que alguém vá atrás dele”. Quem iria? A delegacia não tinha carro. “Quando esse delegado aparecer o criminoso já foi pra São Paulo. Que chateação…”
A população sugeriu fretar a Rural de Zé Valter Rubem. Quem vai pagar? — perguntou o soldado — A família não tem onde cair morta. Zé Valter não vai de graça.
Apareceu Zezinho do couro, comprador de peles de bodes. Chegou sem nada, hoje é homem rico. As más línguas diziam que a riqueza viera do plantio de maconha. Zezinho ia procurar o delegado fazendo um ato de caridade. Mal conhecia o morto, mas foi o único que se prontificou. Onde estavam os ricos da cidade? Os Braga, os Castelo, os Ferreira, os Coelhos, os Rosal, os Macedo, os Gonçalves, o presidente da Câmara de Vereadores?
Pequeno problema: se Cordeiro saísse à procura do delegado, quem guardaria o morto? Perguntaram pelo outro soldado, de nome Esaú. “Deve estar bêbado em alguma casa de rapariga”, respondeu Cordeiro. A vida de Esaú era beber e raparigar. No fim de semana, jogava bola: era goleiro do Sete de Setembro, cujo uniforme era verde e amarelo. Alguém gritou “o delegado está chegando!” Graças a Deus! O delegado empurrou o povo: “Afasta, afasta!” Tocou o cadáver com pé, apertou a barriga, saiu sangue… Que hora foi? Ninguém sabia. Como foi? Ninguém viu. Quem foi? — O Expedito, com certeza. Passou correndo com a faca ainda suja de sangue. “Ele foi pra onde”, perguntou o delegado.
— Tomou o rumo do Pilão Arcado.
— E eu venho de lá… Se alguém tivesse me avisado era capaz de já ter pego.
Mandou levar o morto. Já estava morto mesmo! Só restava pegar o criminoso e botar atrás das grades. Alguém informou ter colocado uma moeda na boca do defunto para fechar os caminhos do criminoso. Mandou chamar Muniz rezador. Responderam que o mesmo já tinha rezado: o criminoso ia andar em roda feito pião. E Pedro Perdigueiro, pra descobrir para que lado — norte ou sul — o criminoso teria ido, alguém chamou? Pior é o carro. Nunca vi delegacia sem carro. O prefeito tem de alugar a rural do Zé Valter. Aonde vamos encontrar o prefeito, perguntou o soldado. O único lugar onde não está é na casa dele, completou. Capaz de estar no bar de Manuel jogando dominó.
O prefeito não estava no bar. Manuel não sabia o paradeiro. “Tem dois dias que não aparece”, informou com visível aborrecimento. O ponto dele não é aqui? — insistiu o delegado. Aqui não senhor! — defendeu-se Manuel. O ponto dele agora é na casa da Zildinha, xodó com uma rapariga que chegou do Piauí. Não diga que informei. Não quero complicação pra meu lado.
Já na casa de Zildinha perguntaram pelo prefeito. “O prefeito aqui? Estão procurando no lugar errado. Deve estar na prefeitura”, protegeu-se a mundana. Zildinha, segredo é segredo — cochichou o delegado — Não sabia que mataram o João Branquinho? Queremos que o prefeito autorize a Rural do Zé Valter ir com a força policial procurar o criminoso. Dizem que foi o Expedito, aquele!, que tem rixa com você. Zildinha ficou pasma. “Mataram Branquinho? Como foi?”. Só depois que pegar o criminoso; quanto mais demora mais difícil fica — vaticinou o delegado.
Zildinha pediu que a esperassem dois minutos. Retornou. “O prefeito já vem”. Alguém tossiu. O prefeito apareceu. “O que querem? A gente não pode nem acertar um particular?”. Seu prefeito, estamos em diligência, diz o delegado. Vieram me prender? — provocou o prefeito.
— Não, senhor, Deus me livre! Mataram João Branquinho. Não temos como ir atrás do criminoso que, dizem, foi o Expedito.
— Essa delegacia não tem nada. Comida dos soldados eu quem dou. Se é dos presos, eu quem pago a conta todo mês. Querem que eu vá atrás de criminoso?
— Pelo amor de Deus, prefeito, desculpe interromper, mas não temos transporte. O Fusca da delegacia não anda nem na cidade!
— Depois não querem fazer o que mando.
— Mas, prefeito, nunca lhe neguei nada. Quantos presos já soltei a seu pedido? Perdi a conta…
— O Benedito você não soltou.
— Não podia. O homem era fichado até na capital. Foi preso em flagrante e ainda tinha um processo contra ele. Se soltasse, o juiz me prendia.
— Aqui quem manda sou eu! Quero ver juiz ir contra ordem minha. Transfiro na hora! O governador atende a quem tem voto. É ele quem nomeia juiz.
— Sei, seu prefeito; mas se a gente não for atrás do criminoso por falta de carro, o povo vai dizer o quê?
— Vou autorizar a Rural do Zé Valter.
Pediu um papel. Após rabiscar, estendeu a ordem…
— Delegado, está dormindo? Ou prestando atenção ao que não é da conta? Se alguém souber que estive aqui, já sei quem foi.
Delegado Caldeira desculpou-se. O prefeito nem se preocupasse; da sua boca não sairia nada. Tomaram rumo da principal praça da cidade. Olhou o relógio. “Vamos, Cordeiro, já é tarde. Vamos procurar Zé Valter. Tomara que não esteja viajando ou pescando por aí”. Nem bebendo — lembrou o soldado. Se estiver bêbado, vai viajar assim mesmo! — definiu o delegado.
Passaram na padaria do Zezito Amorim, no armazém do Manuel Braga, na tenda do Evilásio Viana e foram encontrar Zé Valter na marcenaria de Everaldo Muniz. O delegado o chamou como ordem. Entregou-lhe o bilhete. Uma hora dessas? — queixou-se Zé Valter. Pra ir atrás de criminoso não tem hora — respondeu o delegado.
— Não posso ir atrás de criminoso desarmado. De repente, ele reage… A minha arma emprestei na semana passada. A pessoa viajou.
Everaldo interferiu: emprestava o trinta e oito dele; estava ali mesmo, na oficina. Saíram os três, armados, à procura do criminoso. Zé Valter lembrou do soldado Esaú. Por que ele também não iria? A lástima é tão ruim que ninguém sente falta — disparou o delegado. Vamos procurar ele, pediu o motorista.
— Aonde? Só se correr todas as casas de rapariga da cidade. Fora as incubadas que só ele conhece.
Zé Valter lembrou ter visto Esaú no sinuca de Lourinho Castelo; não custava tentar, poderia ainda estar por lá. Estacionaram o veículo. O delegado caminhou resoluto. Os tacos pararam. Lourinho franziu a testa ao responder.
— Esse soldado é demais. Desafiou todo mundo. Perdeu e não quis pagar. Não agüentou nem ir pra casa. Mandei botar lá no fundo, carregado. Vomitou o chão todo. Ainda nem se levantou.
Encontraram Esaú em petição de miséria. O delegado o empurrou com o pé. “Esaú, Esaú! Era só o que faltava! Desmoralizado desse jeito num destacamento que só tem dois praças”. Pediu uma lata d’água; Lourinho foi procurar vasilha mais limpa. A autoridade reprovou: “Traga essa mesma! Vagabundo não merece coisa melhor”. Despejou a água na cabeça do soldado. “Safado!” O soldado abriu os olhos. Levantou-se num salto! Correu gritando: Cadê meu revólver, cadê meu revólver?
— Esaú, sou eu, o delegado!
Zé Valter foi ao carro apanhar o trinta e oito. Passados os instantes iniciais, Esaú olhou para si, o delegado, o local, suas roupas. Meu revólver… Eu sei lá de seu revólver? — respondeu o delegado. — Um soldado desses pra dar segurança ao povo. Falta de vergonha. Caído bêbado nos bares.
Esaú baixou a cabeça. Todos tinham razão. Esperava a qualquer momento perder a farda. Bastava uma denúncia. Delegado Caldeira aplicou uma lição de moral no soldado. A vontade era devolvê-lo ao Comando, em Juazeiro, pra comer cadeia! Já refeito, ordenou: “Vá botar a farda que vamos atrás de um criminoso”.
— Aonde, delegado?
— Vive no mundo da lua? Não sabe que mataram João Branquinho e o suspeito é o Expedito, que tá corrido? Cadê a arma? Passamos aqui só pra pegar você.
— Tenho que ir mesmo, delegado? Estou sem condições.
— Você está é bêbado, safado! Cadê, rapaz? Não ouviu eu perguntar? Cadê a arma?
— O senhor sabe, minha mãe andou doente, internada na Casa de Saúde. Lá é tudo pago, não tinha dinheiro, não ia deixar a velha morrer à míngua.
— Vendeu a arma pra custear o tratamento da sua mãe na clínica de doutor Carlos, não foi? — O soldado respondeu afirmativamente. O delegado continuou — Ainda levanta falso ao doutor. Todo mundo sabe que cuidou de sua mãe e não cobrou um tostão, como faz com muita gente! Diga que vendeu pra beber de cachaça! Vou entregar você ao Comando.
Zé Valter olhou o relógio. Era tarde. Os faróis estavam ruins para viajar à noite. O delegado decidiu: Esaú iria, mesmo sem a arma. Depois apuraria o caso.
— Delegado, tem outro problema… Hoje é sábado, e amanhã é domingo. O senhor sabe, estamos na final do campeonato. Amanhã o Sete joga, eu sou o goleiro e não tem reserva. Se o senhor quiser eu vou, mas, e aí? O presidente do clube é Raulito, o pai dele é o vereador Elias. O senhor não se dá bem com seu Elias? Tem alguma coisa contra ele?
O delegado parou. Esaú não podia falar assim na frente de Zé Valter. Que desmoralização! Pelo menos chamasse em particular. O que fazer? Esaú insistiu no golpe fatal: “E aí, delegado, vou ou não vou?”. O delegado deu um soco no ar!
— Não tem jeito! Não posso levar um soldado desarmado numa diligência. Se acontecer um tiroteio, a responsabilidade é minha. Está liberado pra procurar a arma. Quando chegar, me dê conta dela, ouviu bem? Me dê conta dela!
Chamou os dois, entraram no carro. Esaú voltou ao bar para a vida de sempre. Pediu uma dose de cachaça para esquentar os nervos. A Rural tomou rumo do beco de Arame, saída da cidade. Dali passaria na Fazenda Velha, antiga propriedade de Rolim Sobrado. Estrada horrível, capaz de atolar até trator. O criminoso Expedito, a pé, andaria mais rápido que a força policial de carro. A estrada estreita, quase um caminho, não permitia ultrapassagens. Doente morria sem socorro, o carro atolado na areia. Quando chovia, os riachos cortavam a estrada. Dias e dias esperando a água baixar. Pedindo a Deus que parasse de chover, paradoxalmente a maior dádiva para o sertão. A vegetação era caatinga pura. A palmeira carnaúba dominava a paisagem. Os casebres cobertos com a palha da palmeira. Da madeira saíam linhas para toda obra: casa, curral, cancela, banco pra sentar. Os frutos todos comiam, bicho e gente. Sem falar na cera, muito valiosa no mercado mundial; até a segunda guerra mundial enriquecia os coronéis donos de carnaubais. Na ressequida paisagem nordestina, a carnaúba continuava sendo a salvação.

A rural prosseguia, gemendo. Sorte o motorista conhecer a estrada. Já escurecendo, chegaram à Fazenda Velha. O delegado saltou, cartucheira e revólver à mostra. Procurou Honorato, vaqueiro de confiança do proprietário: “Estou em diligência, Norato, atrás do Expedito preto, aquele amigado com a rapariga morena”. O vaqueiro perguntou o que acontecera de tão grave.
— Crime de morte. Matou o finado João Branquinho. Foi visto de madrugada com a faca ainda suja de sangue.
— Eu pensava que o senhor estava indo pra festa no Riacho dos Moura. Começou tem dois dias e só vai acabar domingo de noite. Sanfoneiro, tem três. O melhor é o Luís Cego que toca na Emissora Rural de Petrolina. Manuel Moura mandou matar três bois!
— Por que essa festança?
— Mistura de São Gonçalo com casamento. Quem puxa a roda de São Gonçalo é o Pombo da Veneza. É casamento de Silvinho, filho mais velho de seu Manuel. Pode ser que Expedito encoste por lá. Mas quem está corrido anda é pelo mato.
O delegado agradeceu a informação, continuou a viagem. A Rural gemia enfrentando o areão. Zé Valter temia quebrar naquele fim de mundo. O farol enfraqueceu; o gerador não gerava direito. A noite sem lua não deixava ver nada à frente. “E agora, delegado? A bateria vai arriar. Ainda faltam mais de duas léguas”. Desliga o farol pra economizar bateria — ordenou — Você anda aqui todo dia e conhece a estrada.
Passou a dirigir no tato, debruçado sobre o volante. Uma raposa atravessou a pista. Freou pensando ser um bode. Lá vai a Rural gemendo e perdendo forças. O delegado dizendo que o culpado era Esaú, que atrasou a viagem. Gritaram: Olha o boi! Olha o boi na frente!
O motorista pisou violentamente no freio! O carro rabeou, saiu da estrada comendo a vegetação rasteira. Por sorte, não virou. Retornaram à pista. Logo chegavam ao Riacho dos Moura. De longe se avistava o clarão, a batida da zabumba e a sanfona chorando: “Chora bananeira, bananeira chora, chora bananeira que meu amor já vai embora”. Era a toada do sertanejo quando ia para São Paulo.

Estacionaram a Rural. Sacudiram a poeira. O dono da casa veio recebê-los. “O que foi Caldeira? Anda atrás de quê, armado desse jeito? Veio trazer segurança?” — Que nada, Manuel, estou em diligência, atrás de criminoso — informou o delegado. Mataram João Branquinho ontem de madrugada. Ninguém viu o crime, mas o suspeito é Expedito. Aquele, amigado com a rapariga morena que veio de São Raimundo.
Manuel perguntou como fora o crime. Ninguém sabia, ninguém vira. O morto amanhecera estirado, lá no Piseiro. Como sabem que foi o Expedito, perguntou o dono da festa. Passou na porta do Antônio Joaquim, de madrugada, com a faca ainda suja de sangue. Só pode ter sido ele — simplificou o delegado. De qualquer forma, ele não passou por aqui; vamos lavar o rosto e comer um pedaço de carne assada — convidou o fazendeiro.
Os três estiraram as pernas em boa hora. A tensão na estrada os deixou cansados. Tomavam cerveja esperando a carne assar.
— Por que não dormem aqui? Aliás, dormir não porque hoje ninguém vai dormir. Amanhã vão embora.

A animação na casa de Manuel Moura era grande. Fazendeiro abastado, gostava de fartura. Convidou os policiais para ficar. Não responderam se ficariam ou não. (Uma pena perder essa festança, mas a obrigação em primeiro lugar, pensa o delegado). Sentaram-se à mesa, toalha de linho branquíssima. A autoridade mais elevada era ele, o delegado; depois o Juiz de Paz, que viera, inclusive, celebrar o casamento. Tanta fartura! Difícil era dizer a Cordeiro e a Zé Valter, que ele, Caldeira, queria pernoitar no Riacho. Não ficava bem o delegado, responsável pela diligência, convidar para festa arredando das obrigações. O Juiz de Paz, Antero Santana, era homem polido e esforçado. Não tivera o privilégio de grande instrução, apenas se alfabetizara. Lúcido, seu discurso gerava risadas e aplausos pelo inusitado das comparações. Certamente faria bonita oração após a cerimônia de casamento. O juiz aproxima-se, saúda em tom rocambolesco característico.
— Delegado Caldeira, prazer imenso encontrá-lo neste ermo do município. Fez boa opção oferecendo segurança a Manuel Moura, que muito merece.
O delegado gaguejou, quis dizer não, a língua embolou. Estava em diligência!
— Justa diligência – bradou o juiz. — Neste momento somos as maiores autoridades presentes. Observe a diferença do atendimento. Aqui Manuel abriu um litro de uísque!
— Seu Antero, estamos à procura de um criminoso; o Expedito, que matou João Branquinho. Nem sabia que tinha festa aqui. Parei pra pedir informação.
— O Remanso todo sabe desse casamento! Vem gente de Pilão Arcado, Campo Alegre, Juazeiro, de São Paulo e até de Brasília! A festa vai durar três dias. Já imaginou a quantidade de gente bebendo sem dormir? A confusão que poderá ocorrer se a força policial não estiver presente?
Elogiaram a inteligência do juiz. Agradeceram até. Era o argumento necessário.
— O que o senhor fala é verdade, seu Antero. Mas, procuramos um criminoso que matou um cidadão, e…
— Ora, Caldeira, vai atrás de um que já matou deixando que aconteçam não-sei-quantos crimes? Esse povo vai ficar doido com tanta bebida! — franziu a testa —- Você é quem sabe, o delegado é você. Eu avisei.
— A não ser que me peça pra ficar. Como Juiz de Paz, o senhor pode. Não quero é que o povo fale que o delegado saiu pra pegar criminoso e ficou numa festa pelo caminho.
— Quer que assuma suas funções? Quer me fazer de besta? A responsabilidade é sua! Você não é meu filho. E se fosse, eu não pedia, mandava!
— Então mande que eu fico.
O Juiz de Paz não entendeu a intenção do delegado, que queria mesmo ficar na festa. Levantou-se para brigar. Tenha calma, seu Antero — pediu Zé Valter. Manuel Moura, também pedindo calma, trouxe uma cerveja bem gelada. Os curiosos aproximaram-se para testemunhar a briga entre o juiz e o delegado, que também se levantou ajeitando o cabo do revólver sob a camisa. Suficiente para fustigar o juiz: “Essa arma é pra mim, Caldeira? Eu mando prender você! Sou mais autoridade”.
— Vai mandar quem me prender, o soldado é comandado por mim. O revólver não é para o senhor, não; é pra quem precisar…
O juiz avermelhou-se. De temperamento impulsivo, jamais ouvira aquilo. “Você me respeite! Vi você menino, de cócoras, cagando na minha porta. Delegado calça curta é o que você é, seu…”
Todos procuraram proteção. A briga com armas de fogo era iminente. O Juiz certamente estava armado. Derrubaram mesas, copos e garrafas. O dono da casa prostrou-se entre os dois.
— Que autoridades são essas, vão acabar com minha festa? Como é que pode! Juiz e delegado brigando! E a minha festa? Ainda têm três dias! E o casamento? E os bois que mandei matar? E o povo todo aqui esperando a festa? Pelo amor de Deus, vocês…
Ouviu-se um pedido de socorro.
— Corram aqui, acudam seu Antero Santana que caiu!
— Será que foi bala? Não ouvi tiro — observou Zé Valter.
Levaram o juiz ao quarto, desmaiado. Não encontraram vestígios de sangue nas roupas.
— Graças a Deus! — suspirou o delegado. — Iam dizer que fui eu.
— Tragam água com açúcar ligeiro.
— Com açúcar não! Ele é diabético.
Trouxeram algodão embebido de álcool para cheirar. Voltou a si perguntando o que acontecera.
— Nada não, seu Antero. O senhor se sentiu mal. Mas já está bom.
O juiz corou. Caiu na realidade. “Meu remédio, tragam meu remédio!”. Onde está seu remédio, seu Antero? — inquiriram.
— No bolso dessa calça — procurou no bolso — aqui não está não… Tenho que tomar meu remédio todo dia e hoje não tomei. Posso ter um derrame a qualquer momento. Alguém tem que ir buscar esse remédio em Remanso. Tem que fazer essa obra de caridade.
— Quem? — perguntou o dono da casa — De cavalo são dois dias. O único carro é a Rural do delegado. Se ele quiser…
O delegado não deixaria uma autoridade morrer à míngua. Virou-se ao povo e discursou.
— O Juiz de Paz é autoridade! Está a serviço, veio celebrar o casamento. Tem direito de requisitar o veículo para buscar seu medicamento. É questão de vida ou morte! Peço a compreensão de todos. Vou interromper a diligência para dar socorro a este homem honesto que todos conhecem: seu Antero Santana!
O discurso foi aplaudido. Acabou-se a confusão. Deus ajudou, não teve tiros. Quem haveria de dizer que o delegado deixou de ir atrás do criminoso para ficar na festa?
Logo se banharam em cerveja, cachaça, uísque, batida, jurubeba, conhaque e tudo o mais que aparecesse. Bêbado não escolhe bebida. Muito menos se for de graça, com sanfoneiro, saxofonista e três bois pra comer. O delegado deslizava no salão com uma morena. Soldado Cordeiro gastava conversa com uma sarará do Capão de Baixo. O juiz Antero já se levantara. Recebia toda a atenção e bebia o primeiro gole de cerveja. Seu Rosa, famoso sanfoneiro de Pilão Arcado, deu boa noite com o fole. Só faltava Zé Valter Rubem. Este fora a Remanso enraivecido, sem farol e no escuro, em busca do remédio para a pressão arterial do juiz, que já bebia o quarto copo de cerveja e se engraçava de Maria Helena, sobrinha do dono da casa. Expedito, o criminoso, aumentava a dianteira sobre a força policial.

***

A cidade respirava mais aliviada. O enterro de Branquinho seguia para a igreja matriz. O sino badalava pancadas de pecador — Dão… Dão… Dão… Dão, dão, dão! Morrer era novidade, mais ainda se de morte matada. Carregavam o caixão: Adelino Luna, Zé Araújo, Chiquinho da Piranha, Pereirinha, Eduardo Perneta, Antônio Castelo, Geraldo Tardionato, Rui Ribeiro, Odécio Ferreira, Josemi Freire, Miguel Viana, Toinho da Narrita, Fefé Barbosa, Evilásio Viana, Edmar Freire, Zebinha cabeleireiro, Doutor Dogival, Eulálio Braga, doutor Severino Ferreira, Ariomar Cabelo-de-bagaço, Carlos do bode assado, Moisés da Pousada Progresso, Prisquinho Rodrigues, Leônidas Palmeiras e outros profissionais de carregar caixões de defunto. As beatas imploravam a salvação da alma. Alguns pensavam diferente, como Chiquinha: “Ele não merecia nada, nem caixão!”. Em defesa, Zilnoura, professora de muitos méritos. — Todos têm o direito de errar, Chiquinha. O perdão é Jesus quem vai dar. Apenas pedimos pela alma.
O converseiro dos trinta e poucos acompanhantes superava a reza incompreensível das beatas; ninguém entendia, só Deus. De repente, um acidente: uma alça do caixão soltou-se. O coitado, na sua última viagem, foi ao chão. Epifânio repreendeu o péssimo serviço do marceneiro: “Serviço malfeito daquele safado. Só porque foi fiado”. Isto nunca aconteceu — lembrou Zé Araújo fazendo o sinal da cruz. É a alma pedindo oração. Este coitado tem que ser encomendado ou não se salva.
— Cavou a própria sepultura. Vivia no errado e ainda foi bater no padre.
— Quem encomendará a alma, o padre apanhado? — Replicou Pereirinha.
O caixão continuou no chão; impossível carregar só com três alças. Ainda mais cheio de pecados, pesando que nem chumbo. “E agora, Epifânio? Só com três alças, não dá”. Epifânio, o bom vizinho, coçou a cabeça… “Chama o Doca, que fez o caixão. A tenda dele é aqui perto”. Sizaltino Sorné foi buscar o marceneiro. As beatas entoaram um cântico desafinado pior que agouro. Mesmo tementes a Deus, todos caíram em risada. Isaura e Januarinha elevaram as vozes e desentoaram mais ainda. Logo todos gargalhavam. E o corpo do pobre no chão, à espera do sem-vergonha do Doca que, querendo ou não, não parafusara direito a alça do caixão.
Sorné não encontrou o marceneiro; a tenda estava fechada. A mulher disse que ele fora a Sento Sé fazer outro caixão de defunto; só voltaria no outro dia. Até a igreja não é tão longe; mas ao cemitério é uma boa caminhada — lembrou Epifânio. Nininha, a viúva, soluça profundamente.
— Meu Deus, tenha misericórdia. Perdoa o que ele fez de errado. Vamos rezar outro terço pra ver se o satanás desencosta. Ele quer levar a alma ao fogo eterno. E nós aqui achando graça dos cânticos sagrados.
— Vamos rezar mais um terço. Para o espírito ruim, o sujo, o coxo, sair do meio de nós. O coisa-ruim se manifesta até na forma de gente. Pode se disfarçar em um desses que puxou risada — lembrou Marieta Queiroz.
— Com certeza foi ele, o cão, que fez alguém quebrar a alça do caixão. Quem quebrou a alça? A alça quebrou na mão de quem? — pergunta Nininha.
— Quebrou na mão do Perneta! — grita Valmir, genro de Jovita. — E o cão também é perneta, é manco!
O cão, o chifrudo, seria manco, perneta. E a alça quebrara na mão de Eduardo, apelidado Perneta, no momento em que o mesmo segurava o caixão. As coincidências eram grandes! Valmir insistia (De católico passou a defensor de uma igreja nova, que arrancava o demônio das pessoas em troca de ajuda financeira, a graça proporcional à colaboração). Gritou:
— Esse safado é o demônio em nosso meio! Merece ser apedrejado para salvar a alma de Branquinho. Vamos pegar ele!
Eduardo apavorou-se. Valmir, furioso como boi brabo, queria fazer exorcismo.
— Vamos arrancar o demônio! Acabar com esse perneta mondrongo. Fazer sangue pra deixar Branquinho livre dos pecados!
Eduardo viu Valmir abaixar-se, pegar uma pedra. Logo todos fariam o mesmo. Pediu clemência.
— Alguém me ajude! Esse homem está doido. Aqui não tem nenhum cão. Alguém me ajude. Segure esse homem! Eu sou um pobre aleijado!
Valmir avançou. Eduardo Perneta procurou as últimas forças.
— Valmir, não tá me conhecendo não? Sou eu, o Perneta. O Pernetinha, filho da Laura, sobrinho da Libória, irmão de Zé Arnaldo. Não tá me conhecendo, não, rapaz? — Valmir avançava, pedras na mão — Alguém me ajude pelo amor de Deus! Esse homem vai me matar. Sou um pobre aleijado, nem correr eu posso. Chamem a polícia!
Valmir retirou a bíblia do bolso.
— Vou te exorcizar, cão imundo! Nem que tenha que matar esse coitado em quem você encostou.
Eduardo Perneta recebeu a primeira pedrada. Ficou tonto, quis cair. Passou a mão, viu o sangue. Era o fim. Cambaleando, correu à casa de Né Filho, a mais próxima. As portas estavam fechadas. Implorou.
— Abram pelo amor de Deus! O homem quer me matar!
Valmir avançando, duas pedras na mão. Eduardo Perneta correu para a casa de Anésio. A mulher de Anésio tomou a frente.
— Aqui não, safado! Bebe suas cachaças para incomodar os outros? Anésio, traga o cacete aí, ligeiro!
Sentiu-se perdido. Portas fechadas, Valmir aproximando-se, mãos cheias de pedras! A cabeça sangrando. O sangue escorrendo, quente. É hoje! — pensa — Hoje eu morro. Não posso morrer. Sou tão novo! Meu Deus, não me deixe morrer. Valmir aproximando-se. O sangue descendo, salgando a boca. Aparece um carro; esperança para Eduardo. Valmir lançou outra pedra. Errou. Que carro é esse? É a Rural do Zé Valter. O delegado deve vir com ele.
— Delegado, esse homem quer me matar! Socorro pelo amor de Deus!
Pancada na cabeça. Rodopiou. A vista escurecendo, escurecendo. Outra pedra. Outra… (— Me ajudem. O homem me matou. Estou morto. Não sinto nada. Deus, perdoa meus pecados. Não nasci coxo porque quis. Não sou o cão, nunca vi o cão. Perdoa meus pecados. Morri. Não sinto nada. Só vejo uma luz, uma grande luz. Parece a lua, não me deixa enxergar. Morri. Deixaram o homem me matar. Não merecia uma morte dessas, à pedradas. Sem defesa. Todos me fechando a porta da salvação. Estou morto, morto, morto…). O povo correu até Eduardo. Didi da Rita foi avisar ao prefeito: “Morreu que nem cachorro doido, à pedradas”. Admirou a fúria de Valmir. Um coitado, casou-se com uma filha da Jovita. Sempre morou na roça. Calado, frequentava a primeira fila dos bancos da igreja. Comungava, não faltava missa aos domingos. Mudou da água para vinho quando conheceu os pastores da igreja nova. O que obtém com biscates comunga com os pastores. Coleta Donativos. “Mas só em dinheiro, para que a igreja possa crescer e multiplicar-se, para salvar mais almas! O maná Deus dará!”. Valmir transformou-se em vassalo. É obreiro vinte e quatro horas por dia. Jovita, a sogra, proibiu a filha de frequentar a dita igreja. Valmir não aceitou: como converter pessoas se a própria mulher o desobedece?”.

Perneta foi levado à Casa de Saúde como morto — e morto estava. O rosto era uma chaga só. O caixão com o finado Branquinho, no chão, abandonado. A mulher de Anésio desmaia ao abrir a porta da casa.
— Meu Deus, se soubesse que esse coitado pedia socorro para não morrer, deixava entrar. Não tive culpa. Deus chamou para que não sofresse mais com o aleijão.
Do meio do povo adiantou-se o rábula Lima Silva:
— Vou processar a senhora por omissão de socorro. Pela ruindade! Cristo, nosso pai maior, condenou sua atitude. Nós, mortais, condenaremos na justiça. Vou entrar com um processo. A senhora vai pra cadeia! — discursou o rábula arrancando aplausos.
— O senhor não é homem pra fazer isso, velho descarado! Quem não sabe que sua vida é correr atrás da safada? Lhe largou pra fazer vida. Você não presta! Se prestasse, matava a sem-vergonha. Mas não! Vai atrás dela todo dia, aliás, toda noite, no escuro!, pra ninguém ver. Pois processe! O senhor sabe que o Promotor mora na pensão de minha prima Conceição? Que o delegado é meu primo-segundo? Pra completar, advogado de nada, eu votei no Rolim Sobrado. Não sou eleitor do Pebinha, não!
O rábula Lima Silva chorou convulsivamente:
— Não mereço isso. Moro nesta cidade há quase cinqüenta anos. Minha vida é um livro aberto. É uma pena que não possa mesmo tomar providência nenhuma. Quem acaba preso sou eu. Esta é uma terra sem justiça, dona Alice!
Alice Palmeiras correu até Lima Silva, mas era tarde. O advogado estrebuchou-se no cão. “Valha-me Deus, mais um defunto! Cadê o delegado Caldeira? Corram, chamem doutor Marcelino. Ele só está desmaiado”.
Zé Bichinho correu a chamar doutor Marcelino, que morava nas imediações. Não o encontrou.
— Doutor Marcelino viajou ao Riacho, é padrinho de casamento do filho de Manoel Moura. Leva pra Casa de Saúde, lá tem enfermeira.
Acudiram oito homens. A emoção fez a pressão de Lima Silva elevar-se a mais de vinte. Quase morre.

O caixão de Branquinho permanecia no chão. Todos discutiam as notícias de Eduardo.
— Tudo indica que morreu — profetizou Epifânio. Qualquer informação, disse a enfermeira, só através de doutor Marcelino ou do delegado. Como nenhum nem outro está na cidade…
— Se morreu, não vai enterrar? É melhor cuidar porque o Doca, que faz caixão de defunto, está viajando. Se morreu mesmo, vai apodrecer em cima da terra — arrebatou Osvaldo Papudinho.

***

“Povo ingrato, deixar eu morrer a pedradas. Estou morto, que esperam para acender vela, botar no caixão e enterrar? Jogaram-me nesta sala suja, cheiro de remédio. Que utilidade tem um corpo aleijado com uma perna só? Morri. Meu coração parou. Não respiro. Só Deus pode me salvar — e Ele não vai se ater com um aleijado. Vou sair. Deixar meu corpo. Morto, não deve ser tão ruim. Vejo, ouço, não sou visto. Não sou ninguém, só um vulto. É melhor ser vulto que o merda que era. Não tinha nem nome. Não me chamavam de Eduardo. Era Perneta para lá, Perneta pra cá. Fazendo favor a um e a outro. Menino de recado em troca de comida. As pessoas valem pelo que têm. Sou um moço de vinte e poucos anos que teve paralisia infantil. Ganhei esse aleijão, manco da perna. Mas poderia ter vida normal. Trabalhar, estudar, namorar, construir família. Nada tive na vida. Fui só um perneta. Perdi o nome tão bonito: Eduardo. Virei só Perneta. Sou Perneta porque sou pobre. Aliás, era; esqueço que estou morto. Que me deixem apodrecer em cima da terra. Já não moro naquele corpo. Agora sou independente. Poderoso, vejo e sinto tudo. Vou à forra. Pra começar, uma voltinha na praça. Na casa daqueles que não me deram guarida. O Perneta agora vai virar alma revoltada”.
“Lá vou na minha nova fase. Vejo e não sou visto. Vôo sem esforço, planando como urubu. É o que não falta em Remanso. Céu limpo, azul forte, os urubus descansam perto das nuvens. Queria ser urubu, um bicho que sempre admirei. Grande e forte. Bateria asas pra São Paulo, terra boa onde todos trabalham; até aleijado. Em São Paulo, seria Eduardo dos Santos, muita disposição para trabalhar”.
“Meu corpo permanece na cama, ensangüentado, cabeça quebrada. Vou à casa de seu Né Filho. Varanda grande atrás, família reunida. Seu Né Filho cansado numa cadeira de velho. Criou mais de doze filhos, todos bem de vida. Ficou rico comprando couro, mel e cera de abelha. Vendeu muita madeira para estrangeiro. Aliás, as coisas do sertão servem pra isso: enricar alguns”.

***

— Priiiiiiiiuuuu! Priu-Pruiuuuuuuuu! Pronnnnn!
É o apito do Vapor. Está chegando. Traz mercadoria e turista; e carregando catingueiros para São Paulo. Muitos ficam lá mesmo, não dão sinal de vida; se morreu, se tem outra família. A viúva e os filhos sonham e rezam. Enviam cartas para emissoras de rádio em busca de informações do marido que se foi. O Vapor apita novamente. Antes de aportar, apitará a terceira vez. Os viajantes apressam-se. Vou ao Vapor usufruir a nova condição. Arremeto na carreira como um avião. Passo raspando no poste de iluminação pública. Por pouco não me espatifo na figueira. Sou um urubu perneta — observação interessante. O defeito da perna ficou na asa. Voando de lado, cai-não-cai, tentando me aprumar. Já passei pelo Grupo Escolar Getúlio Vargas. Estou ao lado do mercado, no cais, em pleno Rio São Francisco. Como é alto o cais! Mais de dez metros acima do nível das águas e quase não sei nadar. A perna aleijada me deixava medroso para afoitar-me no rio. Agora sinto medo, mesmo sendo urubu. A asa aleijada tira-me o equilíbrio. Estou perdendo altura. Vou cair na água. Vou me afogar. Estou caindo! Sou um urubu desequilibrado. Foi um erro não treinar antes de ir tão longe. Vou cair. O rio é infestado de piranhas, devoram até um boi. Já sinto as dentadas. O Valmir assassino ficará livre. A vingança de urubu Perneta não acontecerá. As piranhas vão me comer!
Que aconteceu? Não caí! Toquei as asas na água e não me molhei. Sou um espírito, grande descoberta!
Continuo o vôo com destino ao Vapor. Ocorrem mil pensamentos. Agora sobrevôo a ilha do Rolim Sobrado, na frente da cidade. De acordo com a Lei, a ilha não tinha dono. Mas seu Rolim era o prefeito. Seu pai foi prefeito. Seu irmão foi prefeito. Seu primo foi prefeito. Seu tio também. Quem diria que a ilha não era propriedade de seu Rolim?
Sobrevôo o rio grande, o São Francisco. Já foi mais fundo, com muito peixe. Morre aos poucos. O desmatamento vem matando o rio. A chuva carrega areia das margens para o leito do rio. O rio procura vingança. Vai comendo a margem, derrubando jatobás, oitis e maris. O rio também é violento. Mata bicho quando derruba barranco. O animal morto passa boiando; não apodrece porque as piranhas comem.
Aproximo-me do Vapor, que parece ser o “Benjamim Guimarães”. Se o for, o comandante é capitão Esmeraldo. Bonito um Vapor iluminado! Inicio a planagem para uma boa aterrissagem. Aterrisso na segunda classe. O Vapor está cheio de gente. Aquieto-me, não quero chamar a atenção. Tenho medo de ser visto. Um garçom equilibra bandeja com bebidas. Parece vinho. Resolvo passear pelo Vapor até a classe turística. Um conjunto musical toca boleros. Gostava de boleros. Não dançava por causa do aleijão. O palco na penumbra. Alguns pares desfilam dança elegante. O garçom oferece vinho. Sou um espírito; como oferece, se não sou visto? Ele insiste. Vou beber, ver o gosto. Tem gosto de vinho. É vinho! Então não morri. Sinto o gosto do vinho, estou vivo. Não sou urubu, sou Eduardo Perneta. Vou dançar e beber, comemorar o retorno ao mundo dos sofredores.
A movimentação no Vapor é normal. O garçom passa, peço-lhe mais um pouco. Serve e aconselha-me a ter cuidado para não ficar bêbado. Não posso ficar bêbado. Sou espírito, bebida não pega espírito; só dá prazer. Tenho horror a quem se embriaga. Lembro meu pai, de apelido Zé Boato. Dormia pelas calçadas. Chegamos a amarrá-lo para não sair, já estando bêbado. Um dia recebemos a notícia: “Fizeram uma perversidade com seu pai. Parece que está morto”. Uma turma de vagabundos o ensopou de gasolina e atiçou fogo. O coitado correu como tocha humana. Por sorte, o bar de Zezão Castelo ainda estava aberto; apagaram o fogo e ele não morreu. Um mês depois freqüentava os mesmos lugares. Nas vésperas de São João, foi encontrado morto. Enfiaram pedaços de madeira nos seus ouvidos. Por essa razão, não bebo até embriagar-me.
O vinho está gostoso. Parece suco. Peço mais bebida. O garçom adverte: “Perneta, se embebedar não entra mais no Vapor”. Espantei-me. Sabia meu nome! Me conhece de onde, perguntei-lhe.
— Todo mundo conhece você em Remanso.
Era a certeza de que estava vivo.
Uma turista cruza a pista de dança. Morena bonita, lembrou-me Soninha, filha do Chiquinho Calça-Grossa. Nasceu na caatinga, no Veredão. Estudou em Remanso, chegou ao ginásio. Venceu o primeiro concurso de miss São Francisco. Um moço rico de São Paulo a pediu em namoro. Os pais fizeram gosto, o namorado era advogado. Gostava de festas. Prorrogava o contrato dos conjuntos musicais. O sol saia, sete da manhã, e a festa continuava paga por ele, à vista! Diziam que seria até candidato a prefeito. Os professorandos já tinham imprimido os convites de formatura onde ele era o paraninfo. A mãe de Soninha pagou missa em ação de graças pelo noivo que a filha arranjara. Tudo bonito como sonho.
Um dia, cinco homens de fora se hospedaram no Hotel da Detinha. Queriam instalar uma fábrica de alumínio. Remanso seria o local ideal por constituir-se no centro regional. Mais de mês escolhendo terreno, conhecendo a região. O prefeito encaminhou projeto à Câmara Municipal. Doava o terreno e isentava o empreendimento de tributos por noventa e nove anos. “A oposição não aprovará a isenção por um século” — avisou o líder da minoria. O prefeito utilizou o carro de som para defender o projeto. O locutor Djalma Viana, “o locutor sanfranciscano”, visitou até o interior do município transmitindo, ao vivo, a mensagem do chefe do executivo. Ficou rouco, inflamou a garganta tentando provar ao povo que os vereadores eram mesmo parasitas.
Nas vésperas da votação do projeto, o prefeito organizou um comício na praça da matriz, sendo o último a falar. Pediu desculpas pela ausência dos investidores industriais; foram a Juazeiro resolver um problema maior. E continuou: “Meus concidadãos remansenses; quem vos fala é o prefeito que vocês elegeram em votação direta e secreta, para conduzir os destinos desta terra. Nossa Senhora do Rosário, padroeira de Remanso, é testemunha de que resisti, e muito, sair candidato a prefeito. Tinha meus afazeres, loja pra tomar conta e família para dar assistência. A pressão foi grande. Aceitei a espinhosa incumbência, e fui eleito prefeito da nossa terra. Fui eleito com a responsabilidade de zelar pelo melhor para todos vocês. E aqui estou, para defender um projeto de lei que enviei à Câmara de Vereadores. O projeto vocês conhecem. Quero isentar a fábrica de alumínio do pagamento de qualquer tributo, pelo prazo de noventa e nove anos, e não um século! — como alardeia a oposição. A inoperante Câmara de Vereadores, com algumas exceções, principalmente meu compadre Lameuzinho, insiste em não aprovar o projeto”.
“Meus conterrâneos, com esta postura, os edis dificultam a instalação de uma indústria que vai produzir panela, copo e garrafa de alumínio. Exportará inicialmente para todo o vale do São Francisco. Depois para a Bahia, para o Brasil e para o mundo! Ou seja, esses vereadores safados querem abortar a instalação daquela que será a primeira multinacional de Remanso. Que poderá, com sua expansão, gerar centenas de empregos. Mas para isso precisa de tempo para se capitalizar. E uma das formas de capitalização é o não pagamento dos tributos. É por esse propósito insofismável, que precisamos aprovar o projeto. Meia dúzia de vereadorzinho não impedirá que o progresso finalmente chegue a nossa terra. O objetivo deste comício é pedir o apoio de todos, para aprovação do meu projeto de desenvolvimento para o município. O que os vereadores querem é dinheiro. Mas dinheiro eu não dou porque não é meu. É de vocês! É para comprar remédios, pagar professor e ajudar a quem precisa. Vocês querem que eu pare de distribuir sacos de cimento, tijolos e dentaduras? Pois então, vamos à luta! Com o apoio de vocês, vamos aprovar esse projeto amanhã mesmo, na sessão especial convocada pelo meu dileto vereador Lameuzinho. Quero todo mundo amanhã lá, às três horas da tarde. Quem agradece não sou eu; são as gerações futuras da nossa terra. Nossos netos e bisnetos. Nossa Senhora do Rosário fique com todos vocês!”.
O projeto foi aprovado na íntegra. Os industriais continuaram no trabalho de pesquisa. Foram aceitos na sociedade, participando de aniversários, casamentos e bodas. Até que estourou o escândalo: eram policiais federais no encalço de um grande traficante de drogas do Rio de Janeiro. O traficante era, infelizmente, o noivo de Soninha.
O boato estava na rua. O falso advogado já estava preso e seria deportado para o Estado de origem. A demora era o avião aterrissar. Acabou o sonho de Dona Rita, mãe de Soninha. O príncipe virou ladrão, e o futuro da filha, pó. Pó mesmo, na acepção da palavra: o noivo de Soninha era traficante de cocaína.
A noiva enlouqueceu. Trancou-se, dias e dias sem comer nem beber. Não abria a porta nem ao padre. Dizia que se conselho fosse bom, era vendido, não se dava. A mãe implorava que abrisse a porta, tomasse uma sopa de feijão, um escaldado de peixe, um banho! A filha não perdoava: “A senhora foi culpada de tudo. Até promessa pagou. Mandou rezar missa. Por que seus santos não avisaram?”.
As amigas de Soninha foram solidárias.
— Soninha, sou eu, Cordélia Miranda, abra para a gente conversar. É sua amiga Cordélia.
Minhas amigas são essas formigas e os ratos que vêm dormir comigo. Sabiam que não sou mais virgem? Quem tirou minha virgindade foi um ratão que mora aqui. Ele não quer que abra. Se eu abrir, quebra tudo aqui dentro.
Não houve meios de Soninha voltar para a vida. Após muita insistência, prometeu sair em oito dias, se o noivo permitisse. Vai passar oito dias sem comer e sem beber, minha filha? — perguntou a mãe. Derrame água por baixo da porta e farinha pelo buraco da janela; mas não abro a porta, meu noivo pode não gostar — dizia.
E assim correram os dias. Dona Rita já entregara o caso ao Pai Eterno. Perdera a filha. Confessava-se todos os dias, perguntava a origem do erro. São os desígnios de Deus, confortava o Reverendo. A penitência era a mesma: cinco pais-nossos e cinco ave-marias.
Finalmente, o grande dia, quando Soninha abriria a porta. Chegaram o médico, o padre, avós e tios da moça bonita. A mãe iniciou a chamada: “Soninha, hoje você vai abrir a porta. Completam oito dias que se trancou. Prometeu sair hoje. Abra a porta!”. A mãe repetiu o apelo. A porta abriu-se, devagar. Abriu mais. Mais… Apareceu Soninha, vestida de noiva, toda ensanguentada! A mãe desmaiou. O padre benzeu-se, pediu a Deus que ajudasse. Doutor Délio acudiu a mãe, massageando e tomando a pressão. Esquecera o estetoscópio em casa, contornou pragmaticamente: “Desmaiou, mas continua viva. Vamos levar ao quarto”.
— Soninha, que aconteceu, minha filha? — perguntou a tia Marocas, mulher de Senhorzinho. As amigas saíram aos gritos.
— É assombração! Soninha voltou morta!
Soninha continuava impávida. A face límpida, sem sangue. Ainda conservava os traços de moça bonita. Os cabelos sedosos, carcomidos pela sujeira. Os lábios carnudos pediam ajuda: partidos e sem cor. O olhar, distante e sonhador. Estava a morrer, subnutrida. A roupa de noiva, vestido branco e grinalda, cobriam o corpo mais bonito da cidade. Dona Candinha esmerara-se naquele vestido. Todos o acharam lindo, desejavam o mesmo modelo para um futuro casamento de filha. Soninha calçava sapatos altos, ramalhete na mão. O sangue manchava a cintura do vestido. Imóvel, balbuciou:
— Não vão dar os parabéns à noiva? Como são mal educados. Onde está minha mãe? Não vai dar os parabéns? Fiz tudo que ela mandou. Nunca deixei meu noivo encostar a mão. Não fiz certo, minha mãe? Casei virgem. Esse sangue foi meu noivo, o ratão, que me desvirginou. Está se trocando, vem já. Onde está minha mãe?
O médico vai a Soninha.
— Vem dar os parabéns, doutor Délio? Muito obrigada.
Abraçou-se ao médico. Dominaram-na. Aplicaram uma injeção, levaram à Casa de Saúde. Vi tudo. Estava lá, sofrendo como todos que gostavam de Soninha. Mas eu não gostava: amava aquela mulher, mesmo sabendo ser amor impossível.
Nunca mais foi a mesma. Endoideceu. Jamais tirou o vestido de noiva. Quando sujo e rasgado, a família providenciava outro. A mãe morreu de desgosto. Soninha ainda perambulou muitos anos. Apareceu grávida. Um bicho desalmado a engravidara. Não respeitou a morte que habitava aquele corpo bonito. O filho nasceu. Os parentes mandaram para São Paulo. Pelo tempo, já é adulto.
Um dia, Soninha apareceu boiando no São Francisco. Morrera afogada. A história viveu na lembrança dos remansenses durante anos. Agora, depois de morto, já como urubu perneta, encontro essa moça que parece Soninha. É sonho. Estou doente, delirando. Mas o vinho está gostoso. Vou indagar ao garçom quem é a moça. A festa prossegue animada. O saxofone chora uma música pedindo que o relógio pare. Uma voz maviosa entoa a música. Só a voz e o instrumento se deixam ouvir. Empolgo-me. Resolvo dançar. Levanto-me. Todos veem que sou aleijado. Cruzo pela moça que parece Soninha. É idêntica. A cor dos olhos, até o penteado. A música continua intensa. Encontro alguém desacompanhado. Convido-a para dançar. Ela não aceita. Fala-me ao ouvido: “Aqui cada um tem seu par; procure o seu”. Não entendo. Como tenho par, se não falei com ninguém? Chamo o garçom: como é seu nome, amigo?
— Uoston, com u mesmo. Não souberam escrever em inglês. Era homenagem ao presidente da República. Virou homenagem ao ridículo. Sou o único Uoston com u do Brasil.
— Por que cada um tem seu par?
— Pra não dar confusão. Não pode haver disputa.
— Quem arranjou pra mim, se não avisei que viria?
— O organizador da festa não deixa faltar nada.
— Quem é meu par?
— Quem estiver sobrando como você.
— Por que vim?
— Porque ouviu o chamado do Vapor. O apito foi o convite.
— Aquela é Soninha?
— A mulher mais bonita do Remanso. É a primeira vez que vem. Você é um bêbado felizardo, Perneta.
— Perneta não: Eduardo.
— Você não é mais nem Eduardo.
— Soninha não pode ser meu par. Ela não chega pra mim.
— Aqui todo mundo é igual. A festa é recepção pra quem vem ao nosso mundo. O organizador sou eu, lembra de mim?
— Você é o Uoston, filho da Florzinha do Capão! Mataram você na rua do Cruzado. Era o maior pé de valsa de Remanso, apelidado de Nego-Doido. Mas Nego-Doido, o que faz nesse Vapor?
— É minha sina. Tenho que permanecer neste Vapor organizando festa mais duzentos anos.
— Duzentos! Está doido? Ninguém vive duzentos anos.
— Aqui vivemos a eternidade. Este Vapor é o Mata Machado, que afundou no Curralinho em mil novecentos e não-sei-quantos. Morreu todo mundo.
— Por que organizou essa festa?
— Primeiro, porque sempre gostei de festa. Morri numa, na casa da Maria Pernambucana, lembra? Quando você desencarnou pensei prestar uma homenagem. Então apitei para você.
— Soninha também foi convidada hoje?
— Veio dançar. Sempre soube que você era apaixonado por ela.
— E os músicos?
— Não reconhece o saxofone do velho Hermes? O pandeiro do Mazinho, o violão do Zé Boneta? O trompete do Quincas Bento e a bateria do Canetinha? O cantor é o Silvestre, filho de Dona Mariana. Estou numa espécie de purgatório. Ainda bem que o Pai é bom. Mandou-me fazer o que mais gosto.

A orquestra parou. A penumbra domina o ambiente. Vou ao palanque, cauteloso. É seu Hermes mesmo! O melhor saxofone do São Francisco. Não tocava, chorava com o velho instrumento alemão. Ganhou um novo, presente de Zé Lelé. Tirou a paleta, soprou, limpou com a camisa. Chamo-o. É ele mesmo! Contando ninguém vai acreditar. O grande saxofonista franziu a testa, apurou a vista cansada pelos setenta e tantos anos.
— Perneta? Essa festa é sua. O Nego-Doido convidou do bom e do melhor. A começar pelo seu par. Você era apaixonado pela Soninha. Ela não era pra você. O destino era ser assassinada.
— Morreu afogada. Afogamento não é assassinato.
— Foi atirada no Rio porque não deixou que fizessem outro filho nela.
— Quem foi o desgraçado?
— Dobre a língua! Estamos aqui para purificar a alma e partir.
— Só queria saber quem foi o desalmado.
— Pra que, se não é mais de lá?
— Talvez pudesse ajudar avisando a polícia.
— Não misture as coisas. Cuide de sua festa. Também vai passar uma temporada purificando-se, depois deve descansar. — Seu Hermes virou aos músicos — Quincas Bento você conhece. Aliás, todo mundo conheceu o grande trompetista. Nunca perdeu uma discussão. Dava pra ser advogado. Virou alfaiate e técnico de futebol.
Quincas Bento levantou a mão espalmada em continência. Falou-me que sua mãe, Dona Júlia, ia bem, com o reumatismo de sempre. E Benedito Leiteiro, perguntei.
— Não ficou nem aqui. Levaram ele.
Entendi. Deve ter ido ao lugar que ninguém quer ir, nem morto nem vivo. Fiz outra indagação: e seu Antônio do Veneza da Gameleira, como vai?
— Já subiu ao descanso eterno.
— E o finado Deusdete, que mataram no beco do Artur?
— A última pergunta. Seu par está esperando, e a música vai recomeçar.
Quincas Bento virou-me as costas. A curiosidade mata mesmo depois de morto. Gritei: Quincas, só mais uma. Quem tocou fogo no armazém do velho Bertinho?
— Está querendo saber demais, Perneta. Esqueça o lado de lá.
Quincas Bento escarrou e cuspiu. Avancei dois passos até Zé Boneta, violonista. Bom sapateiro. Recebia dinheiro para comprar o material; mas o objeto bonito e lustroso só quando Deus desse bom tempo. Morreu tocando violão. Manejava muito bem o banjo e o bandolim. Apertei-lhe a mão. Estava fria.
— Seja bem-vindo, Perneta! A festa é sua. Estava indisposto e triste. Só vim porque era você.
O baile recomeça. Alguém me chama. Quem será? Mas é o Dílton, filho de seu Max Oto Ledoux! Que saudades, amigo. Há quanto tempo! Que falta você fez. Partiu tão cedo, tão novo…
— Cedo, não; minha hora era aquela. Fiquei sentido, com saudades, mas a hora era aquela.
— O povo era apaixonado por você. Seu irmão, aquele que mora em…
— Por favor, não me traga lembranças. Estou aqui com você, seu Hermes e Zé Boneta. Não perco uma festa.
— Dílton, me dê um forte abraço. Vou ali falar com seu Artur. Seu Artur! O senhor sisudo, voz grave… — Como vai, Perneta? Seja bem-vindo! — Seu Artur, não sabia que o senhor gostava de festas.
— Todos gostam de diversão. Mais ainda para homenagear um conterrâneo. Até o Ademar Soares está presente. Desencarnou em São Paulo. Veio purificar-se aqui, onde a vida é menos corrida. Olhe o Raul Barbosa, cabeleireiro que virou comerciante. Veio ver você. Não lhe pergunte nada. Não pode lembrar-se de lá, pois quer voltar.

Um foguetório. Tiros de adrianinos e de foguetes tipo lágrimas.
— É o Zé Lelé chegando de São Paulo. É festeiro por natureza. Deu um saxofone de presente a seu Hermes. Fica zangado quando o vê com o saxofone velho. Ele está chamando. Viro-me. Recebo um abraço descomunal de Lelé.
—- Perneta! O homem mais rápido de Remanso. Todos sabemos que virou Urubu Perneta. Quando for a São Paulo, voando, não deixe de me procurar. Ainda fico por lá, embora não perca uma festa aqui.
— Zé Lelé, você é doido? Como voar até São Paulo se nem sei pra que lado fica?
— É fácil. Pega um mapa rodoviário. Só um pequeno problema. Como Urubu Perneta, vai gastar os trezentos e sessenta e seis dias do ano bissexto. Isso se não pegar uma constipação no caminho e morrer.
— Zé Lelé, deixe de brincadeira. Veio de São Paulo só para a festa? Me dê um abraço. Devagar, tomei uns vinhos… Não me derrube. Doido do jeito que é…
Zé Lelé apertou-me contra o peito.
— Vai dançar a noite toda com minha sobrinha Soninha. Vim participar.

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