Opinião do Leitor:

Caro Astrogildo,
Acabei de ler hoje, “de um fôlego só”, o interessantíssimo “Era uma vez um comunista”. Despretensioso e irreverente, entremeando as passagens cômicas descritas, você pintou um forte retrato do Brasil real, palco ainda nos dias atuais, da irresponsabilidade pública e das consequências do descaso governamental histórico com as necessidades e direitos dos cidadãos comuns. Em cada personagem do livro reconhece-se alguém com quem se convive ou já se conviveu em algum momento. No meu caso, conheço mesmo um deles, o Glicério, colega da saudosa FSESP, hoje FUNASA.

O linguajar, típico baiano, nos remete ao cotidiano de uma cidade que entranhada na alma de quem nasce ou vive lá, mescla em sua paisagem geográfica e social o belo, o sofrido, a capacidade de superar adversidades, de encantar e de transmutar-se em deslumbrante templo de vida, apesar de tudo.

Alguns dos principais conflitos e ritos de passagem que vivemos ao longo da nossa vida estão ali personificados no “comunista” que intitula o livro.

Certamente muito mais teria a comentar, mas quero finalizar com as minhas congratulações sinceras e admiração pela sua obra, pela sua capacidade de transformar em ouro literário o cotidiano paradoxalmente comum e singular, com personagens que facilmente poderiam se reconhecer também nos versos do genial Fernando Pessoa em seu “Poema em linha reta”:

“ …Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?…”

Grande abraço, R. Castália

 

Mensagem Inicial

Nada na vida é o porto final. Ao ser alcançado, passará a se constituir em porto intermediário, passagem para outro porto que será, transitoriamente, o final.

A insatisfação natural do homem só termina com a morte.

Lute pelos seus sonhos!

 

Algumas Palavras

 

É importante registrar o caráter de veracidade de Era uma vez um Comunista, sombreado por acontecimentos reais do calendário histórico do Brasil. Espelha parte da minha vida — talvez a mais importante, feliz e difícil ao mesmo tempo — e deve ser apresentado de duas formas. Primeiro: Como concretização do inconsciente do escritor, manifestação da inspiração e sensibilidade artística. Aqui, permitimo-nos o embaralhamento de situações díspares, tendo como referenciais o cotidiano de um condomínio residencial classe média e a Copa do Mundo de futebol realizada na França, em 1998. Segundo: Como manifestação consciente do cidadão frente aos inumeráveis problemas do brasileiro comum, sobretudo o desrespeito à dignidade humana.

O livro aborda questões relacionadas com saúde pública, educação, segurança, habitação popular, emprego e preservação ambiental — direitos garantidos pela Constituição e negados pelo cotidiano. Mostramos flagrantes da atuação político-partidária como elemento — não de libertação, mas —de opressão e manutenção da exploração sobre o cidadão.

O referencial espacial do relato é o Condomínio Residencial dos Colibris, especialmente o edifício Araratuba, bairro Imbuí, em Salvador, Bahia, onde ficaram vinte anos da minha vida. Boa leitura.

O Local

 

O condomínio residencial Quinta dos Colibris é um dos muitos condomínios do bairro Imbuí, reduto da classe média de Salvador, capital da Bahia.  Seu maior fomentador foi o Pólo Petroquímico de Camaçari, na Região Metropolitana. Os comerciantes prestigiavam os petroquímicos que visitassem suas lojas: bons compradores e excelentes pagadores. Com nível salarial acima da média, realizaram verdadeira revolução no perfil do bairro. Grandes condomínios foram financiados pelo antigo Sistema Financeiro Habitacional. A iniciativa privada construiu para todos os gostos e o poder público obrigou-se a criar condições de habitação. Um dos problemas era a infestação de muriçocas. Nuvens do inseto invadiam os lares. Ninguém suportava e o queixume era geral.

— Até hoje me arrependo de ter vindo morar aqui; nunca vi tanta muriçoca! — queixava-se Raimunda Santos, moradora do segundo condomínio ali instalado. Ela mesma procurava a resposta. — Deve ser esse esgoto; nascem ali, embaixo do mato e do capim.

Esgoto era o nome emprestado ao rio Cascão. Cortava a grande Avenida Paralela, uma das principais da cidade, e desembocava no Imbuí, até então local ermo.

O rio Cascão formava linda lagoa na entrada do bairro. As empresas de construção civil trouxeram a morte à lagoa. Apareceram os donos do terreno onde ela, a lagoa, deitava desde tempos imemoriais. Criou-se uma associação de moradores para defender o direito de a lagoa permanecer lagoa, mas os poderes públicos não deram ouvidos. A bonita lagoa foi sepultada no sentido mesmo da palavra. Centenas de caminhões com entulhos sepultaram o acidente geográfico para construção de um shopping. Para não matar também o rio Cascão (pai da lagoa ou o contrário?) deliberaram deixar um veio para que ele, o rio, mesmo se espremendo, corresse rápido para o mar. Se demorasse, também seria morto. Aliás, quando estas linhas forem publicadas talvez já nem exista o rio Cascão. — A defesa de interesses difusos, como o meio ambiente, na Bahia, não tem merecido ações práticas e precisas dos órgãos constitucionalmente responsáveis por tal.

Depois veio o asfalto. Grande avenida cortou o local. Deram-lhe o nome Jorge Amado, homenagem ao baiano escritor-mor. Na pressa da inauguração, vésperas de contenda eleitoral, esqueceram a rede de esgotos, ou seja, o saneamento básico. Às casas, residenciais e comerciais, restou a alternativa de recolher seus dejetos em fossas sépticas.

Nascia um novo bairro. Nome bonito, atraiu as classes média e baixa ascendente: quem melhora de vida quer viver melhor. E o Imbuí, de braços abertos, aceitou mais condomínios que ocuparam áreas tidas como devolutas; na verdade, terrenos na engorda, esperando valorização. Os donos dos terrenos, as próprias construtoras, prometiam o céu a quem se dispusesse a habitar as delícias do bairro. Os jornais estampavam: “O novo eldorado, com infra-estrutura de primeiro mundo! Garanta seu lugar para o resto da vida!”.

Ao mesmo tempo, proliferavam fábricas de invasões. Grileiros e corretores aliaram-se a comerciantes e ocuparam as margens da avenida. Continuaram invadindo, mesmo nas barbas de altos funcionários públicos, vereadores e deputados estaduais que escolheram o bairro para residência. Num fim de semana construíam uma casa; Segunda-feira já amanhecia pintada, com energia elétrica clandestina e roupas estendidas no varal — como se habitada já fosse. Era comum não se demolir construção em terreno público, uma vez habitada. Curiosamente tal só ocorria no Imbuí. Em outros locais a Prefeitura derrubava construções já habitadas, inclusive um condomínio inteiro na fronteira com o município de Lauro de Freitas, na grande Salvador. Mas, no Imbuí, os invasores estavam salvos. Por quê? — não me perguntem.

Uma empresa de máquinas pesadas devastou dunas inteiras e fez loteamentos. Cansada e satisfeita, deliberou estabelecer-se na própria avenida, onde construiu sua sede. Os grandes invasores, casas comerciais e mansões, nunca foram importunados; mas, todas as tentativas de pequenos invasores eram rechaçadas pela Polícia.

Por essas razões o Imbuí inchou. Os problemas apareceram, embora ainda seja um bom lugar para morar. Nesse local, exatamente na Rua dos Tucanos, está encravado o Condomínio Colibri. Composto de cinco prédios de dezoito andares, administração geral mais um síndico em cada condomínio: Edifícios Araratuba, Ararataba, Ararabóia, Araguaçú e Aramirim.  Formam um conjunto bonito dominando a entrada do bairro. Este relato acontece preponderantemente no edifício Araratuba.

 Foto da lagoa

 I

 O síndico geral, Ricardo Braga, convocou reunião com síndicos de todos os prédios do condomínio, no salão de festas do Edifício Araguaçú, onde morava. Feitas as apresentações, só o Araratuba era ausente. Logo chegou seu representante; pediu desculpas; providenciava conserto da bomba d’água para que, ao chegarem do trabalho, todos encontrassem o líquido nas torneiras. Alguém indagou se o prédio não dispunha de bomba reserva. A resposta foi desalentada: Como, se não tinham dinheiro nem para pagar o elevador, há oito meses atrasado! A Empresa já acionara, inclusive, o condomínio na Justiça. Imaginem dezoito andares carregando compras nas costas! Sugeriram encaminhar à justiça; Pequenas Causas era para aquilo mesmo! A resposta foi conclusiva… Nada obrigava se a pessoa não tinha como pagar. E não adiantava nem protestar no cartório, pois quase todos já estariam com o nome sujo na praça.

— Quem não pode pagar que se mude!
— Vou seguir o conselho. Também estou atrasado, três meses. Qual a moral para cobrar? Até o síndico atrasado…

A representante do Ararabóia, Leda Silva, pediu pressa, tinha muitas provas para corrigir. Era professora, trabalhava de manhã, de tarde e de noite. Só participava da reunião porque a Universidade da Bahia estava em greve novamente e mais uma vez. A reunião foi aberta. O síndico geral lembrava ser o assunto do interesse de todos. O bairro crescera, a população duplicara e maior população significava mais problemas. Inclusive, um casal de moradores fora assaltado na área interna do condomínio. Os ladrões colocaram a mulher na mala do veículo e percorreram toda a cidade à procura de um caixa eletrônico. Nenhum funcionava, pois, nervoso, o marido esquecera a senha. Os seqüestradores resolveram incendiar o veículo. Aí não teve jeito; o marido abriu o jogo…

— E estavam jogando, seu Ricardo, inquire Gildete Silva, moradora do Araratuba.
— Estavam quebrados, dona Gildete!
— Essa parte o senhor já disse. Os caixas eletrônicos, com defeito ou quebrados, não funcionavam.

— Quem estava quebrado era o casal! Sem dinheiro na conta bancária, ficaram com medo de informar. Graças a Deus terminou bem. Os ladrões aceitaram receber outro dia.
— Foram até bonzinhos…

Ricardo Braga retoma a reunião. Aquela não era a única história. Aconteciam coisas no condomínio que nem eles, síndicos, tomavam conhecimento. Gildete Silva pede a palavra.

— Tem um porém, seu Ricardo; nem todos aqui são síndicos. Eu mesma, não sou síndica; estou substituindo o subsíndico.

— Essa é uma reunião do condomínio geral! Quem representa cada prédio é o síndico; na falta deste, o subsíndico, rezam os estatutos — argumenta o síndico geral, que prossegue. — Como dizia, muitos acontecimentos nem chegam ao nosso conhecimento. Vejo a hora de ocorrer um fato mais grave, um crime.

— Já aconteceu, seu Ricardo; e mais de um. Até crime de morte. O senhor ainda não era síndico.
— Desculpe, mas, desde a criação do condomínio, há quinze anos, só teve um síndico geral.

— O senhor, certo? Por que só o senhor foi síndico, não me leve a mal… — questiona a mesma Gildete Silva. — Por uma razão simples: a senhora quer ser a síndica geral? Não quer, Deus a livre? Por isso fui o único síndico até hoje.

O síndico geral chama a atenção. Já era tarde; no outro dia, Segunda-feira, dia de branco na gíria popular, todos trabalhariam. A discordância foi uníssona. — Amanhã, não! É dia de Brasil e Escócia. Não vai assistir ao jogo? A partir das nove começam os flashes diretos da França. — O jogo não será às treze horas? — lembra o síndico. — Vou trabalhar; as doze e meia paro, assisto ao jogo e volto ao trabalho. —A seleção deveria ter essa garra para jogar, seu Ricardo! — deseja Gildete.

Araçá, moreno acaboclado, porteiro do Araratuba, deseja falar com o síndico de lá, do Araratuba. É urgente, seu Eli! Se for assunto do condomínio pode falar, responde o síndico. Na vista de todo mundo? Os homens do elevador chegaram com dois soldados. O elevador está empenhado. — resume o porteiro.

— Que história é essa? Elevador empenhado? — Elivelton compreendeu… — Vão me crucificar. Estão levando o elevador. Não falei que estava atrasado oito meses? Tenho pressão alta, vou enfartar. Um copo d’água, por favor… — Foi se inclinando, lastimando-se… — Pior é que nem eu paguei. Vão me crucificar…

Araçá, o porteiro, esperava as ordens; pergunta o que fazer. Eli responde não estar se sentindo bem. O senhor é de onde? Estou conhecendo o senhor, não sei de onde…

— Agora foi que deu. A polícia esperando e o senhor com brincadeira. Deixo levar o elevador?
— Para mim tanto faz, não é meu.

O síndico geral pediu que chamassem um médico, o homem estava em vias de um colapso. Inexistindo aquele, pediu uma ambulância. Lembraram do veículo do morador do 803, edifício Aramirim. Convocada, a Van estacionou para a viagem. Chamaram o síndico… — Eli, você não está se sentindo bem. — pegam pelo braço — Vamos ao médico. É rápido. Chegar e voltar.

— Não estou doente para ir a médico. Querem me tirar porque estou ganhando. Hoje é meu dia de sorte. Não saio de jeito nenhum! — delirou Eli, viciado em jogo de cartas.

A notícia se espalhou. Na portaria do Araratuba a conversa era uma só: Eli, o síndico, fora internado com problemas mentais hereditários. Com o pai acontecera o mesmo. E já tinha um irmão engenheiro perambulando pela vida. Perambulando como? Não é engenheiro? — admirou-se um dos porteiros. — Ficou doido de tanto estudar matemática, responde o outro.

— Ainda bem que nunca gostei de matemática.
— Você nunca estudou. Quem descobriu a América?
— A América, não sei; mas, o Brasil, foi Pedro Alves Cabral.
— Errou. Pedro Álvares Cabral. Pedro Álvares!
— Esse mesmo. Pedro Alves Cabral.
— Deixa para lá. E quem descobriu o caminho para as Índias?
— Não sei. E tem caminho para índia?
— Não falei índia. Falei Índias. São completamente diferentes. Índia é uma mulher do mato e Índias é um lugar.
— Você me acha com cara de quê?
— De burro. Não sabe também quem foi Pero Vaz de Caminha? Vasco da Gama, você sabe quem foi.
— Quem foi não; quem é! Time do Rio de Janeiro. Foi campeão no ano passado.
— É burro mesmo. Vasco da Gama foi o descobridor do caminho para as Índias.
— Está mesmo encabulado com essa índia.

A chegada de Hermenegildo Frutuoso, do segundo andar, tirou o sossego dos porteiros. Perguntou o que discutiam. Nada não, seu Furtuoso. Estamos preocupados com seu Eli, que ficou doido, responderam.

— Meu nome é Frutuoso. Hermenegildo Frutuoso. Certamente apenas um distúrbio consequente de um regime hipersódico.  — Como, seu Furtuoso? — Frutuoso, já disse. Com o excesso de sódio a pressão arterial reagiu para mais e aconteceu um AVC. Se o AVC não deixar sequelas, logo estará de volta para cumprir um regime hiposódico.

— Como sabe tantas coisas?  Seu Eli ficou doido mesmo?
— Depende de uma avaliação do quadro individual.

Frutuoso deu as costas. O morador do 602, Ari Sandro Moreira, apelidado de Bocão por razões óbvias, ouviu parte da conversa e comentou:

— O sonho desse é ser médico. Já fez mais de dez vestibulares, nunca conseguiu. Só anda de branco, mas não é médico.
— É o quê, então? — pergunta Araçá, um dos porteiros — Quem anda de branco é médico. Ele deve ser médico, sim.

— Pai de santo é médico? Claro que não! Pai de santo é gente grande do candomblé. — Araçá faz o sinal da cruz. “Deus me livre”. O elevador estaciona. Ari Bocão parte rumo ao chuveiro… Vou tomar um banho bem frio, diz. — Só amanhã, seu Ari; a bomba quebrou novamente, não tem água. — lembra o porteiro. — Como assim? Acha que vou dormir sujo?  Esse condomínio está entregue às baratas. Cadê o síndico? Ficou doido? Vou embora daqui. Não é possível… O síndico doido?

***

O dia amanheceu. O sol lançava raios tímidos no canto do céu. O silêncio era quebrado pelo circular dos ônibus coletivos, cada um com seu horário. Já passava das cinco horas. Araçá, misto de vigia e porteiro, levantou-se, estirar as pernas. Passou o ônibus do Guilherme Marback, primeiro conjunto residencial do Imbuí. Alguém se anunciou; o porteiro perguntou quem era. Queria ter um trabalho desses — brincou. Não sabe o que é acordar todo dia duas da manhã — responde o visitante. Girou a chave; o jornaleiro entregou-lhe um maço de jornais. Brincou: — Não sei como esse povo não abusa de ler todo dia o mesmo jornal. — O mesmo jornal com notícias diferentes — retruca o jornaleiro. Que nada! As notícias se repetem toda semana. Você lê? O que traz de novo hoje? Não disse que era tudo igual? Qual o crime mais feio de hoje?

— Saiu no jornal hoje, mas aconteceu ontem.
— Esse jornal anda muito atrasado. Qual o crime?
— O homem que matou os três filhos depois se enforcou.
— Virgem do céu! Esse era doido.
— De doido não tinha nada. Certinho da silva. Morava nas Malvinas. Antes, morou na Saramandaia, perto de uma tia minha. Trabalhou até na padaria de Zezinho, em Itapuã.
— Quem trabalha em padaria termina maluco. Acorda cedo todo dia. Nem dorme, preocupado em perder o horário. Já pensou o dia amanhecer e o povo não ter pão pra comer?

O ônibus que transportava os empregados de uma fábrica petroquímica parou na porta. Pela freada estava atrasado. Araçá olhou o relógio já com a claridade do dia. Cinco e trinta e cinco. Falou para si mesmo: Atrasado dez minutos; vai tirar a diferença na pista. Abriu a porta principal, respirou o ar puro do jardim. O outro vigia aproxima-se. Na falta de assunto reclamou do frio. O segundo ônibus do Conjunto Marback lembrou-lhe as horas: quinze para seis. Nivaldo, porteiro titular, estava atrasado; já eram quase seis horas. Escondeu-se no banheiro. Lavou o rosto. Procurou a escova dental, não encontrou e com o dedo esfregou pasta dental nos dentes. Procurou o pente… Esquecera e achou graça: É hoje… Esqueci tudo!

Seis horas. Condôminos madrugadores já transitam pelo playground. Seis e cinco da manhã, a rua já movimentada. A impressão era que o Pólo Petroquímico de Camaçari morava no Imbuí. Seis e meia. Estudantes buscam transportes escolares. Motoristas não esperam, têm hora marcada; não encontrando no ponto, buzinam: — Corre ali, avisa ao carro verde que Lucinha já está indo. — Não posso deixar a portaria, dona Gildete. — O outro porteiro não chegou ainda? O condomínio está entregue às moscas. — E foi, ela mesma, pedir tempo ao motorista.

Os moradores abandonam os “esconderijos”. De três em três minutos as portas dos elevadores despejam gente. Penteados e perfumados, alguns bem vestidos… — Bom dia, seu Glicério. Essa Copa a gente ganha, doutor. Deus é brasileiro.

— Se fosse brasileiro, o povo não estaria na miséria.
— O presidente da República diz todo dia que melhorou. O pobre agora está comendo.
— Ele deveria passar uma semana na casa de um pobre.

O relógio na parede marca sete e meia. Francisca, empregada doméstica do 602, traz café. Obrigado, Chica; vou guardar, não estou com vontade agora. — agradece o porteiro. — Passou a noite trabalhando e não está com fome? Ou dormiu a noite toda?

A lavadeira de roupas do 801, trouxa de roupas sem tamanho, descansa do peso. Araçá reclama: — A senhora tem o trabalho de lavar, dona Lara gasta o dinheiro e agora coloca a trouxa no chão sujo? — O senhor é conversador. Este lençol, onde a roupa limpa está enrolada, é meu. Justamente para não sujar a roupa da freguesa. Pensa que sou o quê? — defende-se a mulher. O elevador de serviço abre a porta. A humilde lavadeira transporta a trouxa com roupas lavadas. Não contava com o inusitado: Pisou a pequena Bolinha, cadela de estimação do 203. O animal, apavorado ante a pisadela, chora como criança. A madame descontrola-se: — O que fez com minha filha, sua animal? Se não tem dinheiro pra comprar óculos, me peça!

A trouxa de roupas foi ao chão. A operária não sabia como se desculpar. — Me perdoe, madame. Juro que foi sem querer. — Vocês não podem subir nem pelo elevador de serviço. Têm que ir de escadas mesmo! Se quebrou alguma costela vou dar queixa na polícia! Vou fazer uma sugestão por escrito ao síndico. Trabalhador braçal só pode usar elevador, seja qual for, das dez da noite às seis da manhã! Para não se misturar com os condôminos.

— Quem vai receber as roupas limpas antes de seis horas da manhã? Quem vai conferir?
— A patroa confere depois. Não podem é acontecer fatos lamentáveis. — Pega a cadela nos braços; beija, acaricia… — Não chore não, Bolinha. Vou tomar as providências. — Vira-se a Araçá — Me ajude a tirar Chuchu desse elevador antes que aconteça também o pior.

Araçá entra e sai do elevador com um carrinho de bebê acomodando pequeno cão branco. A mulher recomenda pegar o cobertor e cobri-lo, para que o animal não se resfriasse. O porteiro conduz o carrinho com o animal ao pátio dos fundos. A mulher agradece: — Nesse condomínio só se salva o senhor. Depois que Chuchu ficou paralítico minha vida virou um inferno! Não faz nada sozinho. É de fraldas dia e noite. Mas não vou deixar meu filho morrer a mingua.

O elevador sobe e desce. Betânia do 501 está de mudança. Já, dona Betânia? Chegou outro dia… — indaga o porteiro. — O condomínio está muito caro. É o preço do aluguel. Vou me mudar para o Cabula. Lá o prédio é pequeno, só tem um empregado. A despesa é menor.

— Não gostou daqui?
— Vou porque o condomínio é caro. Gostei demais daqui, inclusive dos empregados. Vou deixar uma mesinha e

duas cadeiras para o senhor. — Não precisa não, dona Betânia. — Já estão separadas. Agora, queria um favor. O senhor vai largar agora? — Queria, mas não posso. Não tem quem me renda. Mas a senhora pode dizer. — Não; deixe. Vá cuidar do seu serviço.

 

O elevador foi ao décimo oitavo andar. Desceu. Parou no doze, no dez… Demorou um pouco no quinto. Finalmente chegou ao térreo. Saiu Pablo do 902, perna engessada. — Me lasquei, Araçá! Quebrei a perna. Pior foi o emprego; era o segundo dia. Saí para comemorar e aconteceu o acidente.

— Foi carro?
— Do meu primo. Ele não teve nada. Só o prejuízo.

Lúcia Sampaio também saía do elevador. — Bom dia, seu Araçá; não dormi essa noite. Muita gente falando, falando. Aconteceu alguma coisa? Procure saber, pois aconteceu alguma coisa.

Márcia veio após com o seu, lá dela, cachorrinho. Mais um morador dengoso do condomínio. Cumpria sina levando Black para fazer xixi. Parou no térreo; queixou-se, iria mudar-se… Também, dona Márcia? A senhora é das moradoras mais antigas — consolou Araçá — O condomínio não é mais aquele. Querem proibir que meu cachorro desça pelo elevador. Se ele não tivesse artrite, nem me importava; descer escadas faz bem; mas não pode. Eu venho de elevador e Black pelas escadas? Está errado!

— Desde quando essa proibição?
— Me disseram. O síndico novo só quer ser. Pensa que não sei? Morava no prédio de minha prima, no IAPI. Era síndico lá também.
— Então tem experiência.
— Experiência para roubar. Deixou o condomínio na miséria. Como é que pode? Esse homem foi chegando e sendo síndico?
— Ninguém queria. A senhora quer ser síndica?
— Não tenho tempo, trabalho o dia todo. O senhor se engana se pensa que não faço nada. Lá em casa não tem empregada.

Um veículo da Prefeitura Municipal estaciona. Porteiro Araçá interfona ao morador; repassa o recado ao motorista: Desce já.

— O desce já dele é daqui a duas horas. Tanto documento para entregar… Ainda vou fazer serviços de banco. Chego à repartição quase onze horas!
— Ele almoça lá?
— A secretária manda buscar. Carne de sol, Filé Mignon… Sexta-feira é moqueca de camarão. Que dia é hoje?  Segunda-feira? Está de ressaca. É filé com fritas e suco de pêra.
— Ele bebe?
— Bebe, sim; toda Sexta-feira. E eu escondido, para ninguém ver o carro. Se jornalista fotografar sai no jornal.
— Até bebendo você é motorista?
— Não tenho Natal nem Ano Novo. Nesses dias trabalho vinte e quatro horas. Ele comemorando e eu cochilando no carro. Fim de semana ainda inventa viajar para a fazenda, perto de Juazeiro. Quando cisma, viaja Sexta de noite. Chega lá na madrugada de Sábado.

— E a gasolina?

— Um tanque dá para chegar. A volta, pega a nota fiscal e aqui recebe o dinheiro.

— Queria trabalhar num lugar assim.  O que seu Garrido faz na prefeitura?

— É gente grande, com carro chapa preta.

— É com esse que viaja?

— Tira a preta e coloca uma chapa amarela.

— Emprego bom. Trabalho desde ontem; já são nove horas; sabe quanto ganho?

— Nem precisa dizer.

— E isso mesmo. Todo mundo sabe quanto é.

 ***

                                 A porta do elevador abriu, fechou, abriu. O porteiro espera a saída de alguém; não saiu ninguém. Como pode porta abrir e fechar sem ninguém? O vento assobiava pelas frestas.  A porta abriu-se novamente. Que diabo é isso? Cochilava. O vento o acordou. Hoje está demais; ainda não preguei os olhos. Olhou o relógio, estava escuro; quase meia noite. Meia noite é a hora das almas. Será alguém do outro mundo? Quis acender a luz, pensou alto: Vai ser pior; aí é que não vou cochilar mesmo.  Alguém bate na porta de vidro. Reconhece Rafael, do quinto andar, visivelmente embriagado. Deseja boa noite, segura-se às paredes. Araçá disfarça o medo. Pergunta ao homem, de onde vem? Não tem medo de andar sozinho tarde da noite?

— Estava por aí… Antes só que mal acompanhado.

— Se é assim, estou bem guardado, aqui, na portaria. Passo a noite só, com Deus.

— Aí você se engana… Você não passa a noite só.

— Como? Eu e Deus.

— Tem mais gente.

— Claro! O pessoal que mora no condomínio.

— Tem mais gente…

— Por essa portaria não vejo entrar mais ninguém.

— Já viu defunto entrar pela porta?

— Aqui tem defunto?

— Amigo — voz arrastada de embriaguez — eu estou bêbado?

— Bêbado, bêbado, não; está meio tomado.

— Obrigado. Muito obrigado. Será que minha mulher vai notar que estou tomado?

— E o defunto?

— Que defunto?

— O senhor não falou que o defunto que dorme aqui não precisa de porta para entrar?

— Falei, foi?

— Que história é essa, seu Rafael?

— Quem sabe contar é o porteiro mais velho, o que trabalhava antes de você. Não conseguia dormir, eles não deixavam. Os defuntos, ora; a noite toda acordado. Quase fica doido. Ainda se internou no Juliano Moreira. De madrugada, caminhando para lá e para cá com medo do defunto que saia do elevador.

— Saia de onde?

— Do elevador. Passeava pela portaria, mexia na fechadura, voltava para o elevador. Batia a porta, acendia a luz. Fazia uma confusão!

— É verdade mesmo, seu Rafael?

— Vá saber dele. Já se aposentou; ficou doido. Mora ali na Cesta do Povo. O nome dele é Dedé. Aliás, não mora mais, não; morreu.

Araçá emudece. Será o porteiro que já morreu? Rafael despede-se; vai dormir, amanhã é dia de branco. Seu Rafael, é verdade o que falou? — pergunta. — Já vi! Quando chego tarde parece que sobe gente comigo. O elevador fica pesado, balança como se alguém mudasse de posição. Uma vez, de medo, desci antes do meu andar. Fui de escadas. Vá conversar com Dedé.

— O senhor acabou de dizer que ele já morreu.

— É verdade. Esqueci. Vá-ver é ele que fica aqui.

O elevador chegou. A porta abriu e logo fechou. Araçá rezou baixinho: Pai nosso que está no céu… Rafael não entendeu: — Como? Falou comigo? Fale alto! — …seja feita a vossa vontade, assim na terra… — Não estou entendendo nada. — …como no céu. — Aonde? No céu? O que é que tem o céu?           — Estou rezando.

— Já vai dormir? Vou dizer ao síndico que você dorme. Nunca vi porteiro dormir. Vou dizer…

II

Chegou morador novo. O caminhão estacionou nos fundos do condomínio para descarregar a mudança. A conhecida Gildete Silva do 905, Araratuba, chama o porteiro; pede-lhe que  abra a porta dos contadores de água. Desculpe, mas aqui não tem contador de água; o valor já vem na taxa do condomínio, lembra o porteiro. — Se não tivesse, ninguém pagava. E por que cortaram a minha? Vim correndo, mas o desgraçado já tinha feito o serviço.

— Tem coisa errada. Nenhum apartamento tem ligação direta. Pega do tanque de cima.

— O senhor já viu luz vir do tanque?

— Não falei de luz; falei de água.

— Quem está falando de água? Sou maluca? Vim correndo, quase bato o carro; estou com a geladeira cheia e cortaram minha luz.

— Só agora a senhora falou que era luz.

Ao abrir a porta da sala dos medidores decidiu não colaborar com a mulher. — Não trabalho na companhia, dona Gildete; não posso ligar. — Diga assim: não quero ligar, pronto! O condomínio precisa contratar quem queira e precise trabalhar. Tanta gente desempregada! Outros têm o emprego, mas não valorizam. Vai ligar ou não?

— Desculpe, mas não posso. Preciso do meu emprego.

— Se ligar vai perder o emprego? Acho o contrário; se não ligar é que perde.

— Dona Gildete, sou pago para fazer o correto. Ligar luz clandestina não é correto.

— Você é um araçá mesmo. Dos maduros da beira da estrada; ninguém quer. — A mulher olha desiludida — É contador demais. Se fosse um para todo o condomínio minha luz não estaria cortada.

— Dona Gildete, saia daí. A companhia funciona vinte e quatro horas. Basta mostrar o recibo pago.

— O problema é que não sei onde coloquei o recibo.

— Pague novamente, depois recebe de volta.

— Uma hora dessas, mais de seis horas? Seu Araçá, quer saber mesmo? Não paguei! Gastei o dinheiro no jogo da seleção brasileira. Vieram meus irmãos, cunhados e sobrinhos assistir ao jogo aqui, em casa. Entendeu? O que faço agora? Por que não disse logo que estava sem dinheiro?

— Dona Gildete, cada apartamento tem seu contador. Antes de cortar o fornecimento colocam esse aviso. — mostrou o papel. — Mas quase todos estão com o aviso! Estão na previsão de corte por atraso no pagamento. Pelos cálculos, o da senhora está nessa fileira. É este! Está desligado mesmo.

— Ligue, seu Araçá, pelo amor de Deus!

— Não posso; está com lacre. É crime. Quando desligam invertem os fios. Só eles sabem desfazer.

— Pelo que o senhor tem de mais sagrado na vida, ligue aí. O que custa? Não ligo porque não sei. Eu pago a metade do seu salário. Quero ligar para não passar vergonha.

O porteiro respira fundo… — Não pelo dinheiro, vou mostrar quais são os fios. — explica — Pega este… O preto. Enfia aqui… — Aonde? Está escuro. — Enfia debaixo desse parafuso. Depois o vermelho… Puxa para cá… — Não dá choque, não? — Só se encostar um no outro. Enfia aqui…

 

Araçá afasta-se. A mulher pega o primeiro fio… — Está escuro, seu Araçá. Agora lembrei: na pressa esqueci os óculos. Qual a cor deste fio que está na minha mão. É o preto? O preto eu enfio ali…

— Cuidado, dona Gildete! Não deixe triscar no outro. Esse é o vermelho!

— Não estou enxergando quase nada.

— Enfie aí. Aperte mais. Se der mau contato queima o fusível.

— Ainda disse que não sabia… Agora pego o vermelho, esse… Dobro…

Alguém chama o porteiro. — E agora, dona Gildete? Vou até a portaria. Cuidado para não triscar um no outro.

Antes de chegar ao destino, um grito: Seu Araçá! Acuda aqui! Sou eu, Gildete! Na sala dos contadores ligando a luz, esqueceu? — O porteiro já respondeu no escuro. — Estou indo! Aguarde um momento que faltou luz. — Faltou não! Eu desliguei. Estou sem óculos. — Está tudo escuro; tanto faz com óculos ou sem óculos. — Estou falando da hora de enfiar o vermelho no buraco. Enfiei no lugar errado. — Ainda bem que estava sem luz. — Não, senhor; quando enfiei desligou tudo. — Então foi a senhora? — Foi! Venha me acudir. Estou pregada no fio de alta tensão. — Impossível, dona Gildete; a energia está desligada. Afaste-se do fio que a luz pode voltar a qualquer momento. — Não deixe isso acontecer. Fico sem luz mesmo!

Enquanto procurava a vela aparece o síndico; pergunta quem está na casa dos medidores. A mulher responde: Gildete do 905; encostei um fio no outro! — Como entrou aí? A porta vive fechada! — Seu Araçá abriu, responde a mulher. — Com ordem de quem? Vou mandar apurar. — Não paguei mesmo não! — Não pagou o quê? — A conta de luz. Estava ligando minha luz cortada. — Foi isso, foi? Seu Araçá ajudou?

As pessoas retornavam de mais um dia de trabalho.

— Essa agora… Quando não falta água falta luz.  Nos horários mais inconvenientes. Parece que faltou só aqui. Será falta de pagamento?

— Pode ter sido; tem muito condômino inadimplente. Pior é subir dezoito lances de escadas. — Tadeu, filho mais velho de Josesus, não entendeu; perguntou o que era lance. — Não acredito! Um rapaz inteligente… Lance é a própria escada. Lances, meu filho, são os degraus que vão de um andar a outro.

Um som estridente: Préennnn! A sirena do elevador! Tem gente presa. O elevador parou com gente dentro. Tem gente no elevador? — A sirena tocou novamente. O homem repetiu: — Tem gente aí preso? Em que andar? (Danou-se! No escuro, trancado, como saber o andar? A resposta foi outra sirenada). Diga pelo menos o andar! (Mas, como saber o andar no escuro?). Porteiro Nivaldo é chamado: — Está surdo, Nivaldo? — Como vou enxergar sem luz, defende-se. — Para ouvir não precisa de luz. Tem gente presa no elevador!  — Qual deles, de serviço ou social? — Aí cabe a você investigar.

A sirena toca insistente. Nivaldo responde que já ouvira e pede calma. Ainda nem começara o turno e já aparece problema, falou baixinho. No escuro mesmo procurou o colega Araçá, que apareceu já com a vela acesa. — Vá resolver seu pepino, Araçá. O elevador parou no seu turno. Tem gente presa. A pessoa está perdendo a calma. Também!… Presa, sufocada e no escuro. Vá-ver o elevador está lotado.

— Vou subir pelas escadas. E a portaria? Ladrão aproveita é no escuro.

Araçá subiu as escadas. Passou pelo primeiro andar. Tem gente aí presa? Sem resposta, tomou a escada ao segundo andar. A mesma resposta negativa. Depois, ao terceiro. Tropeçou na curva da escada, a vela voou longe e ele rolou escada abaixo. Parou ao lado da vela, ainda acesa. Que sorte… Podia ter quebrado o braço. Ainda bem que a vela não apagou e clareou a queda. Levantou-se, chegou ao terceiro andar. O cachorro do 302 late várias vezes. A mulher manda o animal calar. Araçá raciocina: “Que cachorro danado! Me farejou no escuro”. Subiu ao quarto andar. Pote de cerâmica, enorme, no corredor. Quase tropeça. É lugar de deixar pote? Lembrou-se da razão da subida e desceu um andar; perguntou se tinha gente no elevador. Sem resposta, passa direto ao quinto andar. A casa de Jéferson Costa, sexto andar, porta aberta, vela acesa na sala. Araçá falou: — Dona Carmem, cuidado com a porta aberta. Faltou luz. Por que a porta aberta? Ladrão age no escuro. — A mulher respondeu ter alergia a escuridão. — Então feche a porta. A vela acesa está dentro de casa.

— A porta aberta diminui o medo. Está com o pega-ladrão!

— Até rato pode entrar.

— Tem rato no sexto andar?

— E barata das grandes. O condomínio está cheio de calunguinha.

— Verdade, seu Araçá? —    A porta foi fechada com força. — Deus me livre!

No sétimo andar, painel grande, cópia de auto-retrato de pintor famoso. Assusta-se. Parece de verdade! Tem gente no elevador? Esse elevador parou aonde? Chega ao décimo andar, cansado depois de um dia de trabalho. Agora a resposta vem: “Não está ouvindo a sirena? Abra a porta, aqui tem mulher grávida”. — Vou botar uma vela acesa pelo buraco pra clarear aí dentro. — Está maluco? Faltando ar e você trazendo vela para fumaçar? Abra a porta!

Araçá retira do bolso uma penca de chaves. Deve ser uma dessas… Voz feminina chora: “Pelo amor de Deus, abra logo essa porta”. A senhora sabe qual é a chave? (A sirena apita, longe. Araçá interroga se foi dali o apito). “Não, senhor; não foi daqui, não; se apertar a sirena, vamos ficar mais nervosos ainda”.

— E quem foi então?

A resposta foi outro apito. Deve ser o elevador de serviço também cheio de gente! Não sei qual a chave de um, imaginem de dois elevadores! A senhora sabe qual é a chave? A mulher chora… Vou perder esse menino… — Valha-me Deus! Nivaldo, Nivaldo! Vem me ajudar!

Alguém implora que abra a porta. Como, se não sei qual é a chave? — Vá chamar o outro porteiro. Pelo amor de Deus… Vou perder esse menino…

A energia retorna! O elevador deu um tranco, iluminou-se o painel. Marisa, a grávida, passava mal. Em solidariedade, todos só saíram do veículo quando a mulher foi recebida pelo marido. Porteiro Araçá desceu ao térreo, entregar a penca de chaves: Aqui não tem nenhuma chave de elevador! Nivaldo foi sarcástico. — É idiota mesmo. A chave do elevador é esse pino. Basta meter no buraco e rodar. Assim…

Araçá desculpou-se, elevador nunca parara durante seu horário. Não deu nem até logo e subiu para o descanso, no pequeno recinto à disposição dos funcionários do condomínio, no décimo nono andar.

 III

             Julho é mês frio em Salvador. A sensação térmica atinge os menores índices do ano. Os casacos saem dos guarda-roupas, desfilam pelas avenidas. O rádio anunciou uma tromba d’água na cidade. Na Manoel Dias, bairro Pituba, a água chegou a mais de metro! O locutor orientava: “Se tiver que sair de casa, evite transitar pela Manoel Dias, que está totalmente tomada pela água e sem energia!”. Araçá acompanhava pelo pequeno rádio, companheiro das longas noites. Quem sairia numa hora daquelas? Tomar chuva e arriscar-se a um assalto? Conferiu o relógio, quase onze horas. Bocejou. Puxa a cadeira, baixa o volume do rádio… “Atenção, muita atenção! O noticiário da sua FM Sensação em caráter extraordinário! As chuvas já provocaram dezenas de deslizamentos com centenas de desabrigados. Por último, uma tragédia! — Araçá enfia o ouvido no rádio — A Ladeira da Montanha veio abaixo!”. — O quê?! — O locutor parece ter ouvido a exclamação e explica: “A Ladeira da Montanha veio abaixo com as fortes chuvas que castigam a cidade!”. — A Ladeira da Montanha? — Araçá não acreditou. O locutor prossegue informando: “Uma das maiores tragédias de todos os tempos atingiu a Bahia! A centenária ladeira, que liga a cidade alta à cidade baixa, desmoronou, soterrando mais de vinte casas que ficavam no sopé!”. — Que diabo é sopé? — O locutor respondeu: “Soterrou toda a parte baixa da ladeira, interditando a Avenida do Contorno”. — Será que morreu gente? — O locutor continuou respondendo: “Ainda não se sabe o número de vítimas. Calcula-se que pelo menos quarenta pessoas perderão a vida no maior acidente do gênero! A Bahia está de luto. O prefeito comanda, ele mesmo, os trabalhos de salvamento. O governador está na Coréia, assinando contrato de cooperação industrial. Vai trazer a primeira fábrica de carros para a Bahia. Já foi informado do acidente e chega amanhã cedo. Repetindo: a Ladeira da Montanha veio abaixo com mais de cinqüenta vítimas fatais!”. Araçá procura lembrar: A Ladeira da Montanha é… O rádio ajuda: “O local é conhecido como zona de baixo meretrício, onde a principal atividade é a prostituição feminina”. Hoje, Sábado, as casas certamente estavam lotadas, todos no pecado da perdição. Será que alguém se salva? — O rádio respondeu: “Todas as guarnições do Corpo de Bombeiros estão no local. O trabalho é dificultado pela escuridão. O tráfego está interrompido…”.

            O porteiro não conseguiu dormir, coração acelerado. Bebeu dois copos de água; queria misturar com açúcar, não tinha açúcar. Chegou Gustavo, filho de Marli do 504.

— Que chuva!

— Pior foi o estrago da chuva.  A Ladeira da Montanha desabou! — informou o porteiro.

— A Ladeira da Montanha, lá na Praça Castro Alves? Puta merda! E aí?

— Mais de cinqüenta pessoas soterradas. É a previsão por baixo. Já pensou, morrer soterrado?

— O que vai ter de gente nu, em plena transa…

Josesus, do décimo oitavo, retornava do culto, bíblia debaixo do braço. O frio o deixava menor ainda.

— É tempo dela mesmo, seu Araçá. Chuva é vida. Sabe de que precisamos? Orar mais! O povo está desembestado. Cristo não aprova o andamento das coisas.

(Josesus era comerciante. Vendia de tudo, de calcinha a caçarola. As coisas piorando, o comércio minguando. Vendeu uma loja para pagar dívidas. Pensou estar capitalizado, mas as vendas continuaram caindo. Vendeu mais duas lojas. Passou a freqüentar uma igreja evangélica. Cabisbaixo, como todos que buscam refúgio espiritual para problemas materiais. Gelou quando o pastor orou: “Aqui, temos pessoas que foram ricas, tiveram dinheiro e poder! Hoje buscam a proteção de Cristo para se desapegar das coisas materiais!”. — Referia-se a ele? Procurou esconder-se. O pastor o fitou… “Procuram de todas as formas esconder o fracasso. A família é a última a saber; continuam na mesma vida, gastando, alheios à nova realidade. O chefe da família sofre sozinho, sem coragem de falar que o dinheiro acabou; impotente, pois não dispõe de meios para reverter a situação. Sei que isso aconteceu com muitos de vocês. Não foi mesmo?”.

O pastor olhou os fiéis… Um deles levantou a mão.

— As palavras do pastor provam que Cristo está entre nós. Essa foi a minha história!

Josesus temia que o pastor descobrisse a sua, dele, história. Nem a mulher sabia que estava ali, na igreja. Nunca mais perdeu reunião. Fez amizades que o ajudaram a vencer o drama da família desfeita — a própria mulher o abandonou, desacostumada com vacas magras.  Era esse mesmo Josesus que voltava do culto).

— Quero ver quando você vai lá… — questiona pela enésima vez. — Vai se sentir tão bem!…

—Seu Jesus, aconteceu uma tragédia.  A Ladeira da Montanha…

— Cruz credo! Não fale o nome desse lugar. Fico todo arrepiado; não tem outro nome? Que aconteceu com essa ladeira? Não precisa falar o nome. — Caiu. — Quem caiu? — A ladeira; o senhor não quer que diga o nome. — A ladeira onde ficam as casas de prostituição? Caiu como? Uma casa só? — A ladeira toda! Ainda comeu um pedaço da Praça Castro Alves. — Lugar de perdição, também. Quem disse? — O rádio, em edição extraordinária. — Desabou tudo? Não ficou nada? — Nada, mesmo. Até a Praça Castro Alves. — Foi Cristo. Ali era lugar de perdição, tinha que acabar. — Que acabasse, mas sem mortes. Mais de cinqüenta! — cuidou de aumentar um pouco. — Cinqüenta pessoas? Impossível, Cristo não é vingativo. Tem certeza, seu Araçá? — Como dois e dois são cinco. — Então é mentira. — Juro pela fé em Deus. — Não faça isso! Não tome o nome do Senhor por coisas tão pequenas! — Desabou mesmo. Mais de cinqüenta pessoas mortas. Até o governador já sabe. — O governador não foi buscar a fábrica de carros na Coréia? — Alguém avisou a ele. Deve ter sido a rede Globo, que tem gente no mundo todo. — Não é possível! Tem alguém orando pelos miseráveis? — Pelos pobres? — Conversar com o senhor é difícil, seu Araçá. — O senhor perguntou se tinha alguém orando pelos miseráveis. Miserável não é pobre? — Pobres somos todos nós! Rico é Cristo, dono de tudo. Miserável, referi-me às pessoas que foram soterradas. Que vão deixar muitos órfãos!

Rafael, ébrio, chegava. Desejou boa noite. Josesus murmurou “de novo?”, referindo-se à embriaguez costumeira. O bêbado não entendeu: — Só dei uma vez; se quiser duas vezes, lá vai: Boa noite! Dei novamente porque pediram. — Olha a brincadeira, seu Rafael — Araçá fala sério; o homem não se intimidou e provoca: — Já foi procurar o outro porteiro? Josué, o que trabalhava de noite e via assombração.

Josesus reagiu: — Vê assombração quem não reza e vive feito bicho.

— É comigo, é? Fique sabendo que não levanto sem fechar o corpo. E quando bebo peço perdão a Deus. E que a bebida nunca me faça mal.

Josesus sentiu-se ofendido: — Não blasfeme, ligando o nome de Deus com cachaça!

— Cachaça não: cerveja. Só bebo cerveja.

— Álcool do mesmo jeito. Respeite o lugar onde mora com os filhos.

— Já estão todos grandes. Sou até avô!

— Respeite então os netos. Aliás, respeite você mesmo, como ser humano.

— Respeito mesmo! Nunca me xingo, nunca me bato. Quer o que mais?

Araçá informa: — Seu Rafael, já sabe da tragédia?

— Perdeu; dois a um, mas é assim mesmo. Ainda se classifica em primeiro lugar. Por isso estou bebendo, de raiva! Igual à seleção de setenta nunca mais!

— A tragédia foi outra. A maior que já aconteceu na Bahia.

— Oxente! Não vai mais ter a fábrica de carros?

— A fábrica o governador foi buscar na Coréia.

— Deve gastar um dinheirão para trazer uma fábrica montada. E quem vai operar?

— Meu amigo, bote os pés no chão.

— Tem mais de dois? Se tiver, diga que eu boto. — Rafael olha os pés. — Virgem! Me sujei todo. A mulher não vai querer lavar o barro do meu sapato. E a fábrica, vem mesmo?

Josesus pede licença para retirar-se. — Vou orar. Cristo é tão bom! Não vai desamparar os que ficaram sem pai. — Rafael completa na sua embriaguez: — E sem mãe. A minha, morreu há mais de dez anos!

Alguém chama o elevador. O veículo sobe. Rafael assusta-se. — Que diabo é isso? Será o porteiro assombrado? Reze pela alma dele, Araçá. — O elevador inicia a viagem de volta. A porta abre, aparece Julinho Pontes. Josesus, o evangélico, fala baixinho “primeiro foi o bêbado; agora o comunista…”. Rafael não entendeu: — Bêbado posso ser; comunista não! Comunista come fígado de menino. Eu como outras coisas.

Julinho Pontes, comunista desde os anos setenta, quando líder estudantil no auge da ditadura militar, sente-se ofendido: — O que tem o comunismo? É uma doutrina igual ao capitalismo. Vai dominar o mundo na próxima década e acabar as desigualdades sociais.

Rafael provoca: — Que vai ser melhor, vai; pior não pode; mas não acha a próxima década muito cedo?

— De fato, para mudança tão grande uma década é pouco tempo; mas, os movimentos sociais não obedecem ao calendário histórico. Acontecem como um processo! O processo de conscientização das massas trabalhadoras se iniciou com a revolução industrial. Entenderam?

Rafael continua provocando: — No comunismo ninguém é dono. O Estado manda e desmanda, não é seu comunista?

— Me chame de Júlio. A repressão existe, travestida na falsa democracia. O senhor bebe, mas não perde a razão.

— Seja franco, seu Julinho: Comunista come fígado de menino mesmo?

— São crendices vindas de quem não quer mudanças. Garanto que, até o final da próxima década, o mundo vai estar bem melhor.

Josesus, impaciente, espera o elevador: — Que elevador pirracento! Quer que eu ouça essas coisas… — O senhor é contra, seu Jesus?, pergunta Julinho. — Seu moço, sou cristão. Acredito em Deus, portanto não posso gostar do comunismo.

— Assim como adotou o cristianismo pode aderir à doutrina comunista. Basta conhecer. Tenho bons livros em casa, quer? Não precisa nem ler o Capital, de início.

— Cruz credo! Deus me livre!

— Pode iniciar por um ensaio que mostre as diferenças entre o capitalismo e o comunismo.

Josesus cuidou de cortar conversa… — Vou indo, fazer minhas orações.

Araçá arruma os papéis. Admira a propaganda de uma loja de eletrodomésticos. “Ainda vou ter um rádio desses”. Lembrou da tragédia. — O senhor já sabe da montanha, seu Julinho? Foi a maior desgraça até hoje!

— Agora está lendo a bíblia? Eu li quando ainda era garoto. É uma passagem muito bonita, o sermão da montanha.

— Desde aquele tempo já era previsto acontecer?

— Não sei, não; mas, essa passagem é bonita. Os sermões mais inteligentes de toda a pregação de Cristo.

— O senhor não é comunista? Comunista lê a bíblia?

— Li antes de ser comunista. Temos a obrigação de conhecer as alternativas para escolher melhor. Entendeu? O sermão da montanha é uma pregação de Cristo aos discípulos, parece; não tenho certeza.

— Então estamos falando de coisas diferentes. Perguntei se o senhor já sabia da tragédia da Montanha.

— Acabei de dizer o que foi o sermão da montanha.

— Eu falei da tragédia da ladeira da Montanha.

— Não existe essa passagem na bíblia.

— Não foi na bíblia; aconteceu lá, na Ladeira da Montanha, perto da Praça Castro Alves.

— Você não se explicou. Estou raciocinando em função das leituras que fiz da bíblia antes de ser comunista. O que aconteceu na Montanha, ou seja, na ladeira?

— Arriou. Caiu, desabou.

— Quem lhe disse? Verdade mesmo?

— O rádio não iria mentir. Passou agora também no noticiário da televisão. Mais de cinqüenta pessoas morreram.

— Meu Jesus, tende piedade!

— O senhor não é comunista?

— A emoção às vezes trai. Falei da boca para fora. Vou até lá.

— Nessa chuva? A cidade está cheia de água e sem transportes. Se o senhor tivesse carro…

— Não tenho e nem quero ter! Não consumo o maior símbolo do capitalismo. Carro de jeito nenhum! Vou de coletivo, apesar de péssimo. Nos países comunistas o transporte coletivo é eficiente. De graça e sem fins lucrativos. Com segurança, regularidade, conforto e modicidade nas tarifas. Quero dizer: O transporte coletivo é de graça, mas eficiente. Ninguém passa horas esperando carro. O sistema é rotativo. Se uma seção está sobrecarregada, recebe auxílio de outras onde o movimento é menor. Não existe apropriação privada. Entendeu?

— E pode?

— Claro! A partir do momento em que não existem donos das linhas.

— Linha de que, seu Julinho?

— Estou falando de transportes coletivos, o comunismo como referência, entendeu? O Estado é, representando a sociedade, dono dos transportes coletivos. No Brasil, o transporte é coletivo porque é acessível a todos, basta ter dinheiro; mas a propriedade é particular. Entendeu? No comunismo o transporte é coletivo mesmo! O dono das empresas é o Estado. Os ônibus e os trens pertencem a todos. — Alguns segundos para Araçá raciocinar… — Entendeu, seu Araçá?

— Entendi. Quer dizer que no comunismo eu seria dono de uma empresa de ônibus?

— Em tese, meu amigo. Em tese, quer dizer, na teoria.

— Agora foi que deu… Posso ser dono na teoria?

Julinho Pontes alisa os parcos cabelos… — No comunismo você não seria dono de um ônibus porque lá ninguém é dono de nada.

— Lá aonde, seu Julinho? O comunismo fica aonde?

— Na cabeça dos homens livres e de pensamentos igualitários. Está espalhado pelo planeta. Aqui mesmo, no Brasil, existe o comunismo. Aliás, não existe o comunismo; existem os comunistas, como eu. Como talvez você, num amanhã breve.

Araçá conduz ao lado prático: — Voltando ao ônibus, seu Julinho, no comunismo posso ou não posso ser dono de um?

— Impossível! Lá não existe propriedade privada. Tudo é do Estado. Os transportes coletivos, ou seja, os ônibus, pertencem ao governo. Uma pessoa isolada não pode ser dona de nada.

— Agora fiquei triste. Queria ser dono de um ônibus; só um.

— Tem um porém, amigo: no comunismo ninguém paga passagem de ônibus!

Araçá sorri. Esse bicho é bom mesmo. Julinho orgulha-se do convencimento: — É o destino da humanidade! Breve o mundo vai comungar o comunismo — sonha. — Comungar é maneira de falar. Significa aceitar e gostar.

— O senhor já foi lá?

— Ainda estou me preparando. Vou me realizar quando vestir a calça cinza surrada e colocar aquele gorro que todos na Rússia usam. Depois posso até morrer. Por enquanto, vou juntando adeptos para a grande mudança. Viva o comunismo!

— Seu Julinho, que hora é essa? Mais de doze da noite! O povo está dormindo. Se gritar, posso perder o emprego.

— No comunismo você será empregado do Estado. Produzirá o suficiente para seu sustento. O que sobrar, o excedente, em vez de ser apropriado pela iniciativa privada, passa a ser propriedade do Estado, para que este distribua entre aqueles que não produzem o suficiente.

— Sendo vigia eu produzo?

— No comunismo todo trabalho é socialmente importante; tem uma função social a cumprir. O médico tem a mesma função social que o seu trabalho como vigia.

— Aí também é demais, seu Julinho. Um vigia igual a um médico?

— Aliás, no comunismo você não trabalharia como vigia porque não existe ladrão. — Virgem do céu! Vou perder meu emprego, preocupa-se Araçá. — Pelo contrário; o Estado garantiria outro trabalho melhor e mais gratificante. Quem sabe, até numa grande plantation de cana-de-açúcar. São os assentamentos e as fazendas coletivas que o Estado é detentor.

— É o quê?

— Detentor; quer dizer dono. Lá todos trabalham, se alimentam, vestem e estudam com o produto do seu suor. Entendeu?

— Entendi, seu Julinho. Esse comunismo vai chegar quando?

— Mais cedo do que se espera. Você será um grande camarada. Vai morrer e viver pelo comunismo, não é mesmo?

                                               ***

             O sol rompeu a barra do dia. O rádio, a cada hora, informava em edição extraordinária. Tanta edição extraordinária? Todo mundo já sabe o que aconteceu… O locutor insistia em trazer mais informações: “E atenção, muita atenção! As últimas notícias do acidente que vitimou a conhecida Ladeira da Montanha”. Parece até que a ladeira é gente… “De acordo com estimativas estão desaparecidas quase cem pessoas! A remoção do grande volume de entulhos é dificultada pelas chuvas. Existe perigo de mais desabamentos, inclusive da Praça Castro Alves, o grande palco do carnaval da Bahia!”. Pediu a atenção novamente: “O prefeito de Salvador neste momento chega ao local do crime!”.         — E foi crime? — O locutor cuidou de corrigir: “Desculpem: ao local do acidente. Chove muito na área. É grande o perigo de novos desabamentos. Vamos tentar conversar com o prefeito”. Araçá reprovou: “Conversar para que, depois de morrer tanta gente?”. O rádio retoma a palavra: “Pedimos licença para desligar nossos equipamentos. Existe perigo de curto-circuito por conta da fiação completamente encharcada. E atenção, senhoras e senhores! Está desabando a outra parte da Ladeira da Montanha! Tudo indica que a Praça Castro Alves, que é do povo, vai desaparecer para sempre. Atenção Bahia, Atenção Brasil! A Praça Castro Alves, o grande palco do carnaval do Brasil, está desaparecendo!”. — Parece Galvão Bueno; será que saiu da Globo pra transmitir a tragédia? — O locutor continua: “Socorro, governador! Mande todas as forças para cá. Chame a Odebrecht e a OAS, duas das maiores empresas do Brasil, orgulho da Bahia! Venham salvar a Praça Castro Alves!”. Araçá levanta-se… Galvão Bueno nenhum! Ele é maluco…

A cidade desperta. Jonas Arapiraca, paramentado, parte  para a caminhada matinal: — Vou indo, porteiro. Já passou do horário.

— O senhor é maluco, seu Jonas? Sair com tanta chuva.

— Me chamou de maluco?

— Maluca é a chuva. Parece que está doida. Esse rádio não me deixou dormir a noite toda. Tomara que acabe logo a bateria dele.

— Está maluco? O senhor é quem liga o rádio. E se liga, pode desligar.

— Como desligar, depois da desgraceira da Montanha? A Ladeira da Montanha desabou; morreram mais de cem pessoas! Foi o que o rádio falou. Disse mais: a Praça Castro Alves também veio ao chão. Parece que tinha muita gente lá. Não é a praça do carnaval?

— Mas não é época de carnaval. Fora de época é micareta. Salvador não tem micareta. Que idéia!

— O senhor vai sair?

— Vou fazer minha caminhada. Tenho medo de infarto.

— Nessa escuridão? Nessa chuva? Nessa trovoada? O senhor trabalha na Odebrecht ou na OAS?  O rádio está chamando para ajudar a retirar o entulho. É tanto que pode derrubar até o Mercado Modelo.

— Impossível! Para chegar ao Mercado Modelo primeiro vem o Elevador Lacerda.

— Esse mesmo! Parece que caiu.

— O Elevador Lacerda?

— Lacerda, sim. Parece que caiu. Se Deus não tiver pena… Caetano vai aparecer por lá?

— Caetano Veloso deve estar em São Paulo, no Rio ou em outro lugar longe daqui.

— Ele não é dono da Praça Castro Alves?

— A praça é do povo. Nem do povo é; é do município, da prefeitura.

— Esse mesmo, o dono, o prefeito, já chegou lá. Chegou cedo, ainda de pijama. O locutor correu pra falar com ele. Foi quando desabou o outro lado da ladeira com a praça. O senhor ainda vai sair?

— Vou, sim; está maluco. Não diz coisa com coisa.

O sol desabrochou. O barulho de liquidificadores preparando sucos e vitaminas informava: os trabalhadores já saíam ao trabalho. Do elevador apareceu Rogério Santos, do 304, encarregado na central de manutenção do Pólo Petroquímico de Camaçari. Fechou devagar a porta do elevador; mesmo assim fez barulho. Indignou-se: — Já pedi ao síndico que providenciasse outra mola. Essa batida incomoda até o último andar.

— Uma porta é quase o preço do elevador — respondeu Araçá.

— Não precisa trocar a porta; apenas a mola. Pode até tirar a mola do terceiro andar, onde moro.

— O senhor aceita; e os outros moradores do andar?

Santos dirigiu-se à portaria principal, onde tomaria o transporte. Araçá o interpela: — Que mal pergunte, seu Santos, o que leva nessa caçola? Desculpe; nessa sacola?

— Por que quer saber? Carrego minhas ferramentas.

— Alicate, chave de fenda, fita isolante? O senhor é eletricista?

— Quer matar a curiosidade? — Santos despejou o conteúdo da sacola. Caiu logo o telefone celular. — O senhor tem celular? Deve ser rico; celular é caro. — Santos revirou outras coisas: — Mate a curiosidade… Caneta, bloco de anotações, uma camisinha…

— O senhor não tem medo de andar com essa camisinha? Se sua mulher souber?

— Foi ela que me deu de presente.

— Foi mesmo? Esse pessoal de São Paulo é adiantado mesmo. E o guarda-chuva? Vou dar um conselho: providencie um guarda-chuva. Vai ter que usar; está chovendo. E se passar perto da Ladeira da Montanha, adeus Amélia! Nem camisinha nem telefone celular. Estou preocupado.

— Desde quando sou motivo de preocupação para o senhor?

— O senhor, não; a Ladeira da Montanha. Essa camisinha não era para ir lá? Desista. A Ladeira caiu. O senhor deu a maior sorte. Se fosse lá ontem, teria morrido debaixo de barro e pedra.

— Meu amigo, não sei nem onde fica essa ladeira.

— E a camisinha? Acha que acredito que ia usar em casa, com sua mulher?

Santos saiu expelindo fogo pelas narinas, de raiva. Araçá, quieto, impressionado com o diálogo. Quem diria… Seu Santos do 304 com rapariga na Ladeira da Montanha…

Desceu Paulo Miranda, do 901, conduzindo o cachorro pela coleira: — Vamos, já estamos atrasados. Bom dia, seu Araçá. — Bom para uns e mau para outros, responde o porteiro. — Que aconteceu, interroga o condômino. — A Ladeira da Montanha. Seu Santos, do 304, ia para lá ontem. Desistiu porque sentiu dor de dente. Viveu novamente. A casa aonde ele ia, lá na Ladeira da Montanha, caiu.

— Aquelas casas são mal conservadas. O governo vai recuperar como recuperou o Pelourinho.

— Vai recuperar, não.

— Está desconfiando? A verba chega até o final do ano.

— Recupera mais não. A ladeira veio abaixo. A Praça Castro Alves, e, parece, o Elevador Lacerda também. Mais de cem mortos. Se seu Santos tivesse ido, seriam cento e um. Não sei onde vão enterrar tanta gente.

O cachorrinho puxou a corrente, arrastou o dono até o gramado. Levantou a perna, fez xixi. Abaixou-se, fez cocô. Adiante, Paulo Miranda encontrou Zé Carlos Pereira… — Zé,  parece que a cidade está enlutada.

— De luto está todo dia. O povo vive na miséria, passando fome. O desemprego está como nunca esteve. Sem aumento há mais de cinco anos. Luto é pouco. Está todo mundo morto. Só falta enterrar.

— Amigo, é sério. Morreram mais de cem pessoas na Montanha. A ladeira desabou toda, com um pedaço da Praça Castro Alves. Parece que o elevador Lacerda caiu também. Morreu um rapaz do terceiro andar, me disse o porteiro. O rádio passou a noite falando do acidente. Como não ouço rádio…

José Carlos Pereira correu a informar-se com Araçá. — Uma desgraceira, seu Zé Carlos. Morreram mais de cem! Só de entulho, mil e tantas caçambas! Morreu até gente do prédio. Parece que era do terceiro andar, não sei bem.

Julinho comunista sai do elevador. Os olhos de Araçá brilham ao ver o comunista… — Não passe perto da Ladeira da Montanha. Mais de cem mortos! Aliás, cento e uma pessoas incluindo um rapaz do prédio.

— No comunismo essa tragédia não aconteceria. O Estado controla tudo, até situações de eminente perigo público. Breve o comunismo chega ao Brasil. — vaticina o comunista. No portão encontrou Carlos Vilaça. — De arrombar, Vilaça. É um país de irresponsáveis. Derrubaram a Ladeira da Montanha.

— Quem derrubou?

— Pode ter sido até atentado. A Castro Alves, a praça do povo, virou pó. Aliás, nunca foi do povo; serve para exercício da demagogia capitalista: o carnaval. A festa que cega, ensurdece e endoidece o povo.

— O povo merece um pouco de diversão, Julinho.

— O povo gosta mesmo é de circo. Bancando ele mesmo o palhaço.

— É verdade o acidente?

— Até o Elevador Lacerda, dizem, caiu. Sabe o que acho? — Traz o amigo para perto de si — Pode ter sido atentado terrorista.

— Alguém assumiu a autoria? Terá sido o partido?

— Não acredito. Se bem que cada célula é independente, inclusive nas ações. Terá sido ato terrorista? De repente os inimigos dos americanos resolveram se vingar. Existe parceiro político mais incondicional aos americanos que o Brasil? É a história de atirar nos ovos de um para pegar na boca do outro.

— Então pode ter sido ato terrorista mesmo.

— Não espalhe. Parede tem ouvidos.

Glória, 1.302, descia ao trabalho. Funcionária pública, dividia-se entre o emprego e os afazeres domésticos. Vigiava o filho dia e noite com medo que entrasse no vício.

— Esse condomínio já foi bom. Agora só tem vício. Viu que horas Diego chegou ontem? Amizade ruim bota um na perdição. Sou pai e mãe ao mesmo tempo, tenho que trazer em corda curta.

Araçá quis falar: Dona Glória, a senhora… — Se for dinheiro emprestado, não tenho. É sobre o Diego?

— Coisa pior, dona Glória. Seu filho é um santo.

— O que teve ele?

— Foi a Ladeira da Montanha.

— Ele foi? Meu Deus, onde eu errei? Meu filho no baixo meretrício! Não diga que é normal. Não criei filho para sair pecando por aí. Foi com quem? Levou pelo menos camisinha?

— Não foi ele, já disse.

— Amizade ruim dá nisso. Pior é ser a doença incurável; só se manifesta daqui a dez, quinze anos. Ele vai me explicar tudo direito.

Glória respondeu ao bom dia de Gildete, que queria conversa: — Está com a fisionomia abatida. Algum problema, Glória?

— Filho só dá dor de cabeça. Soube agora que meu filho foi para a Ladeira da Montanha.

— Foi mesmo? Não é possível! Quantos anos ele tinha?

— Tem dezessete anos. Não sei a quem puxou.

— Coitada de você, amiga…

Glória partiu de ônibus para Itapuã. Gildete permaneceu no playground dos fundos enquanto seu pequeno animal fazia xixi: “Não esqueça, primeiro o xixi; depois o totôzinho”. O animal fez xixi na brita, resto de reforma de algum apartamento. Depois, rápido ao monte de areia grossa onde fez cocô. A mulher exigiu mais: — Não vai enterrar? — O animal espiou o ambiente, não deu atenção. A mulher insistiu: — Não vai enterrar? — O animal, cavando em volta, jogou areia no toletinho. A mulher, satisfeitíssima. — Agora venha para eu dar um cheiro. — Pegou o animal, beijou longamente na barriga: — Toda vez que fizer assim ganha um cheiro no pipi.

Edna saiu do elevador apressada. Fazia transporte escolar como meio de vida. — Estou atrasada, Gildete; dormi pouco; acompanhava o noticiário. A Ladeira da Montanha desabou. Vai morrer muita gente. Só de casa de prostituição foram soterradas mais de dez. Parece que morreu um rapaz do terceiro andar.

— Meu Deus, por isso Glória estava chorando. O filho dela foi ontem para a Ladeira da Montanha. Deve ter morrido.

— Ela mora no terceiro andar?

— No décimo-terceiro.

— Então já são duas pessoas do condomínio. Vai aparecer mais gente. Era sábado, dia de movimento.

A mulher embarca. Liga a ignição, o arranque desliza. Depois chora, querendo pegar. Duas tentativas e finalmente a bateria descarrega. — Nunca mais compro carro a álcool. No tempo frio essa porcaria não pega. Agora só no empurrão. — Pede ajuda ao porteiro. Chega mais gente para ajudar e o Fusquinha vermelho acorda da noite de frio. A mulher acelera. Agradece. Chama a atenção de Zé Carlos Pereira: — Zé, já sabe da Montanha? Uma tristeza; parece castigo. Pelo visto morreu muita gente. Daqui do prédio já foram dois. Um, era do terceiro andar; não sei o nome. Dizem até que era bicha.

— Bicha no baixo meretrício? E o outro?

— O filho de Glória do décimo terceiro. Não tinha dezoito anos. A mãe saiu louca da vida. Foi buscar o corpo.

Josesus dá bom dia. Araçá não responde. — Não ouviu meu bom dia, seu Araçá?

— Esse rádio a noite toda… O locutor é teimoso. Desligava, ele ligava em edição extraordinária. Estou com o ouvido que não agüento.

— Fala sério, porteiro?

— A cabeça estourando. Além do porteiro assombrado, agora apareceu esse locutor. Para mim foi ele que causou esse acidente na Montanha. Só pra falar a noite toda.

— Você está bem, porteiro?

— Não estou melhor porque não dormi. Morreu mais gente.

— Quem lhe disse?

— O locutor do rádio. Toda hora me acordava. Parece que morreu até freira.

— Freira, irmã de caridade?

— Essa mesma. Morreu uma com roupa preta.

— Fazia visita de caridade?

— Uma rapariga se vestia igual à freira. O apelido dela era Irmã.

— Cruz credo, que profanação!

Josesus quis sair, Araçá o conteve: — Seu Jesus, já morreram dois daqui, soterrados. Um, é do terceiro andar, não sei o nome; o outro, é filho de dona Glória. A mãe saiu se acabando de chorar. Acho que foi buscar o corpo.

— Cristo, tende piedade dessas famílias.

Vavá Amorim deixou o elevador de serviço. Engenheiro de formação e flamenguista de coração, jornal de esportes debaixo do braço, provocou: — Cadê seu Bahia, Araçá?

— Bahia num luto desses?

— Perdeu novamente e está de luto?

— Quem está de luto é a cidade toda. O senhor não soube? A Ladeira da Montanha…

— Conheço bem. Quando era rapazinho andei por lá.

— Se fosse ontem, morria. A Ladeira caiu.

— Como?

— Caindo. Já são mais de cem mortes. Aliás, cento e três com os dois moradores daqui e uma freira.

— Uma freira? Morava aqui?

— A freira era de uma igreja da cidade. Fazia visita de caridade.

— E os daqui?

— Um morador do terceiro andar e um rapaz do décimo terceiro, filho de dona Glória.

Vavá apanhou a pasta e correu, paralítico de uma perna, ao ônibus da empresa. Na pressa, esqueceu o jornal de esportes. Lúcia aparece no playground. — Meu sobrinho não chegou ainda. Saiu com uns amigos; até agora não retornou. Saiu para comemorar um aniversário e…

— Quantos anos ele tinha, dona Lúcia? — Antes da resposta Araçá arregala os olhos — Quantos anos, dona Lúcia? Será que foi ele?

— Foi ele o quê? Tinha dezessete para dezoito anos.

— Então foi ele. Seu sobrinho morreu!

— Está maluco? O menino foi comemorar um aniversário.

— Foi ele, sim! A senhora sabe que a Ladeira da Montanha veio abaixo e matou mais de cem pessoas? Entre os mortos, um é morador do terceiro andar; outro é um rapaz de dezessete anos. A senhora mora em que andar? Foi ele mesmo! Pode se preparar para ir buscar o corpo.

A mulher foi ao chão. Francisco Souza, 1002, a socorreu: — Ajude aqui, porteiro! A mulher está se sentindo mal. Será que está grávida?

— Foi o susto. — responde Araçá. — O sobrinho dela morreu na Montanha. Parece que já são três só daqui do condomínio.

A conversa ganhou pernas: três moradores vitimados. O síndico convocou reunião extraordinária com a seguinte pauta: “Discussão do acidente da Ladeira da Montanha. Identificação das três pessoas do condomínio sinistradas no acidente. O que ocorrer. Horário: 20h30min com metade mais um dos condôminos. 21h00min com qualquer número”. A ata foi aberta às vinte e uma horas com qualquer número de pessoas. O próprio síndico lavrou a ata, iniciou, finalizou e assinou, só ele, com o juramento: “Nunca mais convoco reunião nesse condomínio. Ninguém comparece! Aliás, vou convocar mais uma: para entregar o cargo, irrevogavelmente”.

***

Apareceu Julinho comunista para a lavagem cerebral diária. Seu Julinho, o senhor demorou hoje. Estava assistindo o noticiário da Montanha? — perguntou Araçá.

— Quem não se salvou não se salva mais; os escombros estão molhados, não há condição de respiração. Assistia o noticiário político. A preocupação hoje é a fome.

— A fome que engole montanhas. Não é assim que está na bíblia?

— Na bíblia está escrito que a fé remove montanhas.

— Desculpe, seu Julinho. E o comunismo?

— O assunto do momento é o projeto do senador ACM da Bahia. Quer acabar a fome no Brasil.

— Ele é comunista?

— Até agora, não; parece que vai se juntar ao Lula do PT. A primeira reunião será amanhã.

— É reunião para distribuir comida?

— Que pobreza! Primeiro a questão macroeconômica, entendeu? — Araçá não responde, atrapalhando o discurso egocêntrico de Julinho, que insiste: — Entendeu? Primeiro a questão maior. Estão falando na criação de um programa de fome zero. Depois vão entrar nos detalhes. Aliás, os detalhes não importam. Só as grandes questões interessam.

— Distribuir comida é detalhe?

— Dos menores. O importante é abrir a discussão a nível nacional e internacional. Provocar remorso nos países ricos, além de promover o Lula a estadista. Ganhou ponto o senador Magalhães ao abrir a questão. É uma união complicada.

— Ele é comunista?
— Está maluco? O homem é o maior líder da direita. Não é comunista, mas pode ocorrer uma adesão, entendeu?

— E esse comunista vem quando?

— O comunismo? Quando o povo decidir. Pegar das armas, depor o governo que está aí.

— Depor como, seu Julinho?

— Tirar do poder usando da força, das armas. Entendeu?

— Não, senhor.

— A culpa não é sua. O aprendizado é um processo de aglutinação. As informações vão chegando aos poucos. Breve você será um comunista. Quando, só Deus sabe.

— Comunista acredita em Deus?

— Claro que não! É a maneira de falar.

A tragédia da Montanha foi a pior do gênero em Salvador. As chuvas intermitentes sempre trazem desabamentos e mortes. As áreas de risco são mapeadas e apresentadas à imprensa. Administradores públicos mostram projetos e obras que prepararão a cidade para o período de chuvas. A tragédia da Montanha chamou a atenção pelo inusitado. Ninguém pensaria, jamais, que a ladeira secular fosse área de risco. Nem o próprio prefeito.

A imprensa acompanhou a desobstrução das pistas. Foram resgatados corpos nas mais estranhas situações. Um soldado da guarnição de socorro descobriu o corpo de uma mulher parecidíssima com a sua própria. Largou tudo e correu a telefonar. Voltou chorando; era ela mesma. A imprensa noticiou o caso de uma senhora da alta sociedade que mantinha vida dupla. Sob a luz do dia era madame; nas trevas, transformava-se numa das prostitutas mais requisitadas da zona. Tentaram abafar, mas o caso ganhou manchete nacional. O marido, empresário e candidato a político, reclusou-se num mosteiro nas montanhas da Chapada Diamantina. Mudou de nome e hoje é monge.

Jornais publicaram fotos da empregada e do patrão, ramo da construção civil. Ele foi deixá-la em casa, cujo percurso incluía a Avenida do Contorno, parte baixa da sinistrada ladeira. Foram soterrados dentro do carro; o destino os uniu para sempre num momento dantesco. A viúva não acreditava na inocência do marido. “Aquela vagabunda era rapariga dele! Estão escondendo a verdade. Eles estavam quase nus dentro do carro”.

A verdade, só Deus sabe.

Chocaram as cenas desesperadas da mãe que se arrastou do interior da Bahia para reconhecer o corpo da única filha. Não entendia a razão da menina, dezoito anos, bonita, encontrar-se naquele fatídico lugar. “Veio para Salvador trabalhar e estudar. Escreveu dizendo que trabalhava como vendedora num shopping. Agora falam que ela morava nessa ladeira. Que vergonha!”.

Não relataremos outros casos para preservar a dignidade humana. Quantos aos mortos, não chegaram aos cem informados por Araçá. De ordem do síndico, porteiro Nivaldo, o mais letrado, aplicou pesquisa perguntando se alguém tivera irmão, pai, filho ou parente vitimado no acidente. A conclusão foi zero, graças a Deus. O resultado confirmou: Araçá vivia grave problema mental.


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