A magreza de Aniceto de Abreu

Meu nome é Aniceto de Abreu, nasci em Morpará, beirada do São Francisco. Notícias, só quando Jurandir Barroso, da Barca Riachuelo, encostava no porto entregando querosene, fósforo e sal aos bodegueiros e carregando mel, mamona e couro de bicho do mato. Por Jurandir fiquei sabendo que eu era muito magro quando perguntou a meu pai:— Fulgêncio, esse menino não bota corpo nem engrossa a batata da perna. Será que tá doente?— Tá vendendo saúde, Jurandir! Não fez doze anos e já carrega nas costas um fardão de algodão!E continuei com minha magreza. Tão magro que fui levado por mamãe ao médico, em Ibotirama. Subi na balança, o doutor anotou o peso e mediu altura. Deitei na mesa de ferro; abriu meus olhos, apertou a barriga. Por fim, chamou mamãe:— Esse menino não tem nada. Tá ficando rapaz, quando arranjar namorada vai engordar. — Doutor, o problema é essa magreza, só tem couro e osso!O médico garantiu não ser anormal e passaria com a idade, mas não acalmou mamãe. Continuou na mesma pisada de me ver engordar, inclusive envolvendo outras pessoas, como minha madrinha, que participava do esforço e chegava com novidade:— Comadre, trouxe esse remédio pra meu afilhado. Disse o moço da farmácia que é remédio pra mulher criar bunda. Não sei o que vai aconteceu com o menino, se quiser dar, dê.No outro dia mamãe chamou-me:— Meu filho, comadre Biluca trouxe esse remédio, disse que engorda de fazer gosto. São dois comprimidos por dia.Perguntei-lhe o nome do remédio. Pegou a embalagem e soletrou:—Le-ve-do de cerveja e hor-mô-nio feminino. É pra ganhar peso, quem disse foi o homem da farmácia.Acreditei no poder do remédio e aumentei a dosagem por conta própria. Quinze dias depois os comprimidos acabaram e eu magro do mesmo jeito. Danou-se, e agora? Queixei-me à mamãe, que mudou de ideia:— Vamos fazer diferente, meu filho; agora você vai comer muito de tudo!O dia transformou em maratona. De manhã, coalhada com buriti, rapadura e beiju de puba. Dois pratos de comida no almoço e “de-noite” repetia-se tudo. Sentia-me cheio e empanturrado, mas engordar que era bom, nada; e já estava desistindo.Uma semana depois da maratona chegou uma prima de Maria, a vizinha. Perguntou quem eu era e apresentei-me como filho de D. Rai. Olhou-me de cima a baixo:— Você é bonito, magro e alto, queria ser assim.Foi o primeiro elogio da minha vida. Engracei-me de Aparecida, e passei a acompanhá-la pra onde fosse, inclusive tomar banho no rio. Nadávamos, minha perna triscando na perna dela. Quando vi estava enganchado com ela.Duas semanas depois Cida foi embora e caí em tristeza sem fim. Mamãe dizia:— Esquece essa moça, Niceto, ela não vem morar aqui. Ainda mais com essa sua magreza!Mamãe não sabia do chamego. Alguns dias depois a vizinha chegou trazendo carta pra mim. Mamãe perguntou quem era, respondi que era dela. Indagou:— Ela quem, aquela moça?Sacudi a cabeça confirmando e fui ler a carta trancado no quarto. Com letra bonita dizia ter gostado muito de me conhecer e um dia voltaria pra reviver os bons momentos.Passei mais de mês matutando sobre minha vida, deixando sempre um lugar pra Cida. Até que resolvi correr atrás e não ficar parado esperando cair nos pés. Lembro como se fosse hoje; dia ensolarado, peguei a Barca do Jurandir Barroso e arribei pra Ibotirama atrás da felicidade.Endereço na mão, bati na porta da casa. Uma voz perguntou quem era; respondi “Aniceto!” Atendeu-me uma senhora distinta. Olhou-me de cima a baixo, perguntou novamente quem eu era. Antes que respondesse, Cida apareceu:— Essa é minha mãe! Aniz é um amigo que conheci no Morpará, vizinho de Tia Maria. É artista e veio conhecer a senhora, não foi Aniz?Não podia dar pra trás e confirmei tudo que Cida falava.Bem recebido, fiquei hospedado lá mesmo. Dois dias depois perguntou-me se eu queria trabalhar em Ibotirama, e saímos procurando emprego. Em uma semana já estava empregado na recepção de um hotel da cidade. Dia e noite no batente, as folgas passava feliz com Cida.Um dia “Seu” João, o pai, chamou-me:— Aniz, não sei o que você e minha filha andam fazendo. Então, acho melhor procurarem se casar.E não é que gostei? Ainda pensei: Quem casa engorda, agora vou engordar!Dois meses depois mamãe e papai vieram abençoar o casório e lembrou-me:— Agora vai, meu filho. Quem casa, engorda!Feliz com a notícia via-me elegante, corpo cheio e pesado. Mas, o tempo passou e eu magro do mesmo jeito. Recebi até uma carta de mamãe procurando as novidades; terminava perguntando se eu já tinha engordado. Disse mais: Se tivesse engordado pouco não me preocupasse, pois ia engordar muito quando os filhos chegassem, só de provar mingau e comida de menino.Porém, chegou o primeiro filho e eu magrelo do mesmo jeito. Partimos para o segundo, eu na certeza que a gordura chegaria, e nada. Até que desisti, deixei de lado esse querer engordar.Acomodei o espírito e aceitei ser magro mesmo. Nas folgas passei a correr até a Polícia Federal, lá fora da cidade. Criei músculo e agora quem não quer engordar sou eu. Corpo atlético pronto pra tudo, do jeito que Aparecida gosta. Ser feliz, ser amado e bem cercado pelos dois filhos é o que importa.De vez em quando volto a Morpará, rever a família e mostrar os filhos. Mais velha, mamãe me olha enviesado e diz:— Mas, tu não engordou mesmo, Aniz? O que tua mulher diz?Aparecida finge não ouvir; aflora um sorriso no canto da boca como se respondesse:Magro, alto e agora musculoso, é assim que gosto…E a vida continua. É como diz o ditado: Com Deus adiante o mar é chão. Estou muito feliz com meu chão…——————*Escritor, autor de A santa do pau oco, Purgatório de Eduardo, Memórias de um coroinha, Era uma vez um comunista, Legado da loucura, Lampião, governador de Brasília, O homem que morreu cinco vezes e A curva do vento. No prelo, em Brasília zero hora.Foto de C. Ferreira: Ibotirama, ponte sobre o São Francisco.

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