Seria o último comício antes das eleições se a campanha eleitoral não tivesse o prazo alongado por conta da seca. O povo não entendeu a decisão do juiz e perguntava o que tinha a ver o “c…” com as calças. O candidato da oposição, tido como “já eleito”, insatisfeito, dizia que o juiz estendera a campanha pra dar tempo de recuperação à candidatura do prefeito. O juiz nem tomava conhecimento; o dia todo no fórum.A campanha seria finalizada em comícios no interior do município. O candidato Zé Marcelino, da oposição, escolheu como local o povoado Riacho, curral eleitoral da família Loura. Para receber os eleitores e prestigiar o candidato, Manuel da Loura mandou matar três bois. O juiz, informado pelo secretário do prefeito, despachou servidores da justiça para confiscar os bois. Na estrada, Zé Valter, um dos servidores, matutava a forma de cumprir a ordem…— Mandar é fácil, queria ver ele juiz prender esses bois. E se os bichos já estiverem mortos? O povo passando fome e não ter direito a um pedaço de carne de boi? Dia de eleição sempre foi dia de fartura!O outro servidor da justiça, Antonio Castelo, tentou explicar que agora só a justiça eleitoral podia dar comida no dia da votação. Quem retrucou foi Zé Bichim, que acompanhava o grupo como segurança… — O povo só devia votar de pança cheia! Juiz nenhum tem condição de dar comida a tanta gente. Onde já se viu? Eleição sempre foi muita festa e fartura, agora querem acabar? Quem vai perder é o candidato do prefeito que aceitou esse tipo de coisa. Já perdeu meu voto…Ao chegar ao Riacho a comitiva viu a frente da casa enfeitada com bandeirolas. Recebidos pelo dono da casa, leram a ordem judicial que mandava confiscar os bois. Manuel da Loura não acatou, inclusive os bois já estavam retalhados na salmoura. A seção eleitoral era na fazenda dele e matar boi no dia da eleição era tradição de família e não ia deixar o povo votar e voltar sem comer um pedaço de carne assada!Antonio Castelo não teve como negar o direito ao fazendeiro. Tentou negociar sugerindo que não fosse distribuída bebida. O fazendeiro acatou:— É melhor mesmo. A comida não posso negar; a carne já está na salmoura só esperando o fogo amanhã cedo. Então, diga ao doutor juiz que a ordem dele chegou um pouco atrasada.Antonio Castelo lembrou ao Manuel da Loura que desobedecer ordem judicial era cadeia certa. Quem tomou as dores foi Zé Bichim:— Ordem judicial não tem nada a ver com dar comida ao povo. Ordem judicial é pra não ter roubo, não ter compra de voto. Todo mundo que vem votar come e bebe. Se esse povão chegar e não tiver comida, você se responsabiliza? Voltaram sem cumprir a ordem. Informado, o juiz ainda pediu reforços ao exército, sem êxito. Foi aconselhado a deixar o trem correr. E assim foi feito.Como era tradição, o último comício foi um festão. Abraçados, os eleitores juraram votar em Zé Marcelino pra derrubar o prefeito ladrão. Depois, rezaram Pai Nosso, Ave Maria e bateram palmas. Nesse exato momento riscou uma viatura, de onde apearam o juiz e a força policial. Chegaram fotografando, gravando e filmando tudo, inclusive as garrafas de cachaça vazias e o povo com cara de bêbado, até o candidato Marcelino. Deram voz de prisão e recolheram todo o material de boca de urna: santinhos, recortes de papel com nome e número do candidato. Pra completar, o secretário do prefeito, que chegou na viatura, tirou um pacote de dinheiro das calças e jogou no chão pra quem quisesse avançar. O povo disputou o dinheiro no tapa, devidamente fotografado e filmado de forma que desse pra pegar Zé Marcelino e Manuel da Loura, como se deles originasse o dinheiro.Feito isso, juiz e polícia tomaram o rumo da cidade. O povo perguntou o que fazer com tanto dinheiro. Inocente, Marcelino disse que pegassem o dinheiro e votassem nele. Alguém, não se sabe quem, gravou o diálogo.O resultado das eleições não deixou dúvidas sobre o desejo do povo. Marcelino foi vitorioso em quase todas as urnas. A comemoração foi animada, até o padre participou. Um Trio Elétrico veio de longe animar a festa. Manuel Moura chorava de alegria. Por fim, cansados e um pouquinho embriagados, recolheram-se. Marcelino, o eleito, quase não chega em casa; foi carregado pela multidão que gritava “o povo unido jamais seria vencido!”Mas, ainda não era o final da história. Passados alguns dias das eleições chegou uma força-tarefa da justiça eleitoral, protegida por um caminhão com soldados do exército. Determinaram toque de recolher às dez horas. Quem desobedecesse seria enquadrado na lei de segurança nacional. Logo, descobriu-se o motivo da intervenção: A força-tarefa conduziu Zé Marcelino, o eleito, ao quartel da cidade e deu-lhe voz de prisão por incitar a desobediência civil. Como prova, apresentaram as fotografias e gravações daqueles episódios já citados. O prefeito eleito ainda tentou defender-se; foi aconselhado a não se rebelar sob pena de descer preso para a capital. O povo quedou-se frente às baionetas e metralhadoras. E foi com tristeza que viu Abidiel Machado tomar posse como prefeito reeleito, que todos sabiam ser corrupto e ladrão. Foram anos de sofrimento e de tristeza. O município mergulhou na escuridão até o raiar definitivo da democracia, quando foi eleito prefeito um jovem do povo.O resultado da história? Manuel da Loura partiu deste mundo. O juiz foi acusado e condenado por corrupção. O prefeito Abidiel Machado arribou e foi morar no sul país; dizem até que já morreu. E Zé Marcelino, eleito e não empossado, nunca esqueceu os fatos. A depressão vem quando se lembra dessa triste história. Pior foi a alcunha que ganhou dos adversários para o resto da vida: o candidato que ganhou fogo na roupa, como se referia antigamente aos perdedores em contendas eleitorais. Mesmo assim, acredite: O voto é a força do povo!———————-*Escritor, autor de A santa do pau oco, Purgatório de Eduardo, Memórias de um coroinha, Era uma vez um comunista, Legado da loucura, Lampião, governador de Brasília, O homem que morreu cinco vezes e A curva do vento, de onde foi retirado este texto. Os livros podem ser adquiridos na página da Editarte.com.br, amazon.com.br e principais livrarias.
O voto é a força do povo
Esta entrada foi publicada em Sem categoria. Adicione o link permanente aos seus favoritos.
11 respostas a O voto é a força do povo