Viva o povo brasileiro

O tempo se encarrega de levar o passado, que vai ficando cada vez mais passado… Lembro-me de João Ubaldo Ribeiro escrevendo as primeiras linhas nas colunas do Jornal da Bahia, em Salvador, e transformar-se em grande Escritor do mundo. O Brasil acordou “mudo” ao perder tão cedo o vozeirão literário de João Ubaldo. Para homenagear o autor de “Viva o povo brasileiro”, pequena passagem do meu livro “Lampião, governador de Brasília”, publicado em 2009.

A diarreia do Capitão
Por Astrogildo Miag*

Notícia corre mais que as pernas. A festa de Lampião em Ibotirama espalhou pela região de tal forma que, no percurso para Barreiras, ainda na Bahia, quando a grande cavalhada passava, à margem do asfalto para preservar os cascos dos animais, as comunidades já esperavam os cangaceiros com bandeirolas. Não raramente, o prefeito, como ocorreu em Cristopólis, foi até Lampião e o convidou para visitar a urbe. O capitão não poderia aceitar; mas, a insistência foi tanta que se obrigou entrar na cidade e tomar um café com o gostoso beiju de puba. Os cangaceiros, ainda com as panças cheias do churrasco rodízio de Ibotirama, empanturraram-se com beiju, gerando reação agressiva nos intestinos. Foi uma obradeira horrível cerca de duas horas após ganharem a estrada. A comitiva estacionou sob uma mangueira e espalharam-se para evacuar os intestinos. Era uma choradeira só. Lampião, esse, coitado, em estado lastimável, quase bota as tripas para fora com uma cólica intestinal sem tamanho. Prometeu nada ingerir, a não ser líquido, durante dois dias. Nem cavalgar o capitão podia, pois sacolejava a barriga e aí já viu, a cólica atacava as estranhas.
Severino sorria baixinho para si mesmo. Não é valentão, e agora? Vença a caganeira, capitão! E o capitão mal abria os olhos, condoído por dentro e por fora. Também, não abria a boca para se queixar; obrava calado, espremendo-se para expelir a cólica seca. Só uma vez admitira, prostrado, falando alto, que já se salvara de tanta bala de fuzil e via-se na hora de morrer de uma caganeira. Severino, agora bem próximo do homem, tudo ouvia. Sorriu para si mesmo e disse:
— Capitão, o senhor é valente, é macho e é brabo, mas pra doença todo corpo é mole, inclusive o senhor. É a lei da natureza.
Lampião negou que estivesse doente, apenas sentia uma dor de barriga, ora! Dor de barriga essa que obrigou a comitiva a ficar todo o dia sob a sombra da mangueira, bebendo chás de folha e de casca de pau. E nada de melhorar. Era tanta a gastura e o sofrimento que o doido do Feião queria, ainda arreiou o cavalo, voltar à localidade onde achava ter sido a origem da comida que tanto mal fizera ao grupo. Desistiu, não por livre vontade, mas, por conta de não apresentar condições físicas razoáveis para a tal viagem. Aparecesse uma volante policial naquele dia e estariam irremediavelmente mortos e enterrados, pois a reação seria mínima. “Deus do céu, desse jeito vou virar bosta de tanto cagar”, disse o diabo do Feião correndo mais uma vez ao mato.
Lá pelas tantas, de tardezinha, sol já posto, Lampião lembrou que perdera muito tempo em desfavor do objetivo da viagem. Ia perder a moral se não estivesse na capital federal nos trinta dias que mandara informar ao presidente. E convocou a tropa. Antes, pediu ao cangaceiro Rezador que fizesse uma oração forte. Rezador, então, concentrou-se no fundo da alma, tirou uma oração e partiram. O capitão, era o chefe de todos, amarrou o cavalo na sela de Moderno, pediu licença, pró-forma, e viajou descansando na boleia da camioneta de Vadinho, cada vez mais cheia de presentes. Entre os cangaceiros ainda se brincou: Se a moda pega e o capitão gostar de andar na boleia ele pode se amofinar, hem Beija-flor? Beija-flor não concordava com a brincadeira. O homem estava doente, e muito doente, não aguentava nem ficar em pé. Também! Parece que nunca tinha visto comida, lembrou Pinga Fogo, logo se desculpando, estava brincando, com medo de alguém contar ao capitão.
E assim romperam a noite, os cavalos produzindo bem sob a lua e clima ameno. Não acostumado ao ritmo, Severino cochilava, cai não cai do animal, motivo de pilhéria.
Três dias depois desciam a serra que conduzia a Barreiras, berço da cultura da soja na Bahia, cidade robusta, verdadeiro eldorado. Na entrada da urbe a comitiva foi interpelada por alguém vestido como policial. Queria falar com o chefe, para onde foi levado. Pediu a identificação. Lampião meteu a mão nos embornais procurando a certidão de batismo, apresentou-a ao “policial”, que não aceitou: Queria a carteira de identidade. Ninguém tinha. Disse que os animais estavam presos. Ah menino, Lampião pegou este homem pela abertura da camisa, suspendeu e disse: — Pega ele aí, Zé Baiano! Ensina como se respeita homem!
Zé Baiano arrancou o instrumento de ferrar, e mostrou: Você sabe o que é isso? — Ante a resposta negativa…
— É ferro de ferrar homem e mulher safada!
Pinga Fogo correu para acender o fogo onde o ferro viraria brasa. No mesmo instante, Beija-flor retirou das calças o punhal sem tamanho e mostrou ao “policial”… — E isso, sabe pra que serve? — Ante a estupefação do coitado, ele mesmo respondeu: — É pra capar gente igual a você, que quer ombrear com o capitão Virgulino! — Com quem, perguntou o coitado. — Com o capitão Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião!
— Me desculpe capitão Lampião! Nunca pensei que fosse o senhor! Não sou nem policial. O senhor está vendo essa farda, foi meu patrão que me mandou vestir pra cobrar pedágio a quem usar suas terras como passagem, pois a chuva comeu a estrada e ele mandou construir esse desvio. Vi tanta gente, me animei achando que podia cobrar um real de cada pessoa. Mas nunca pensei que fosse o senhor. Me perdoe, capitão!
O homem se jogou ao chão, chorando. Lampião não o deixou na farsa de continuar extorquindo o povo. Foi incisivo: — Levanta e deixe de choro. Tire a roupa! — O coitado não acreditou: — Tirar a roupa, capitão? Pra quê? — Ainda quer retrucar? — Feião encostou já com o punhal na mão. O homem obedeceu imediatamente e mostrou-se nu, só de ceroula. Beija-flor perguntou se era para capar; Zé Baiano inquiriu se ferrava na bunda ou na cara; e homem se acabando de chorar…
Severino apreciava, um pouco afastado. Não conhecia cangaceiro no exercício da profissão; repugnou a violência. Intercedeu pelo homem… — Capitão, me desculpe a intromissão; mas, vai capar e ferrar o coitado?
Os dois cangaceiros envolvidos na operação esperaram a resposta… Por quê? Tem alguma coisa contra? — Perguntou Lampião. Severino contemplou… — Capitão, estamos em região de paz. Por onde o senhor passa é só festa. Se o povo pudesse, carregaria o senhor nos braços. Polícia nenhuma vai se bater contra o senhor. Então, deixe o homem ir.
Beija-flor não aceitou as ponderações:
— Ele despeitou o capitão e tem que ser castigado!
Severino baixou a voz e disse ao cabra:
— Beija-flor, admiro sua coragem e fidelidade; mas, o coitado não conhecia nem pensou que fosse o capitão Virgulino e seus homens. Estava cobrando pedágio pelo uso do terreno particular, pois a chuva quebrou a estrada. O patrão dele fez este desvio para cobrar um real a cada um que passasse, entendeu?
— E a farda?
— Não é uma farda como a de vocês, aliás, como a nossa, pois também estou fardado. — Severino mirou a sua “farda” e a viu bem suja, hora de ser lavada. Insistiu com Lampião…
— Então, capitão, minha ideia é essa; soltar o homem sem castigo nenhum, mas o senhor é quem decide.
Lampião ordenou que recolhessem as ferramentas, pois o homem não era inimigo. Mesmo assim, Beija-flor ainda aplicou um açoite de chicote de cavalo nas costas do coitado, deixando a marca…
— Da próxima vez não tem salvação!

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