Capítulo I
Viu a pouca vergonha?
Esta história desenrola-se na cidade perdida no fundo da minha alma, na acepção mesma das palavras. Remanso, no Médio São Francisco da Bahia, onde nasci, já não existe, tragada pelas águas da Barragem de Sobradinho nos idos da década de setenta.
Era dia dedicado aos funcionários públicos. Correram Livro de Ouro, fizeram bingo, rifa, jantar dançante. Conseguiram dinheiro suficiente para doação de dez bancos de cedro. A entrega solene seria na novena, logo mais. Os bancos na igreja desde cedo, portas abertas à visitação pública. O padre achou um primor:
— Nossa Senhora do Rosário agradecerá com muitas graças a doação.
Edmundo dos Correios, representando os funcionários públicos, conduzia os visitantes aos bancos. Eu próprio fui conferir: — Boa tarde, Agildo. Como vai seu pai? Esses dias vai ter muito trabalho, graças a Deus! Eu mesmo vou lá cortar meu cabelo. Pode entrar, você é de casa. Conhece a igreja mais do eu.
— Que nada, seu Edmundo, o senhor faz parte do corpo místico da igreja. É no mínimo uma parte do braço direito. Eu não sou nem um pedaço do braço esquerdo.
— Gostaria de ter um filho igual a você. Sabe se comportar e conhece o catecismo como poucos. Remanso precisa de um filho padre. Estou achando que vai ser você. Deus o conserve.
Agradeci. Olhei os bancos novos, bonitos e envernizados. Mostravam que o marceneiro Doca caprichara no serviço. Ainda lavrara uma mensagem na própria madeira: “Oferta dos funcionários públicos a Nossa Senhora do Rosário”. Fiz menção de sentar-me; fui repreendido por dona Carlota: “Não sente, não; o padre só vai benzer de noite”. Obedeci.
Os pássaros voavam indiferentes. Churés, primos de pardais, sentavam na cabeça de Santo Antônio. Cantavam desrespeitosamente a cantiga bonita que Deus lhes dera. Não satisfeitos, voavam e sentavam no braço direito da imagem de Cristo segurando o globo terrestre. Faziam safadeza ali mesmo, no ato sexual mais natural. Após, batiam as asas, arrepiavam as penas e relaxavam para recuperar as forças. Voavam os dois, lado a lado.
Os altares mostravam pequenas manchas provocadas pelos pássaros. Sujavam tudo de cocô, trabalho para Carlotinha. Diariamente limpava a igreja, como naquele momento. Não aguento mais limpar tanta bosta de passarinho, disse enquanto descansava o balde com água. Tem churé demais! Cagam tudo! O padre não quer que mate. Por mim, jogava veneno e matava. Matar é pecado, dona Carlota, disse-lhe.
— Pecado é o que eles fazem.
— São inocentes, não têm juízo.
— Você é quem diz. Parece que fazem as coisas olhando pra gente. Não viu a pouca vergonha? Os dois em cima da cabeça da imagem de Jesus fazendo?
— Dona Carlota, foi Deus quem criou os pássaros e mandou que se reproduzissem. Jogar veneno seria pecado.
— Não é você que limpa. Já cagaram até na minha cabeça. Tinha que diminuir a quantidade de passarinhos.
— Não é cheio de coruja no sótão? Quem deveria se encarregar de matar churé era coruja. Animal contra animal não é pecado.
— Coruja só sai de noite. De noite os churés estão dormindo, ninguém sabe aonde.
— Então, dona Carlota, Deus quer que os churés fiquem aqui na igreja.
Caminho à saída. A imagem da padroeira não está no altar. Pergunto: Dona Carlota, a imagem de Nossa Senhora já chegou?
— Não sei; passei na casa do padre pra saber. Ele estava tão triste que resolvi não perguntar.
— Será que vai encontrar o caminho de volta, longe como está? A santa é milagrosa, mas esse Mato Grosso é longe. É terra desbravada pelos bandeirantes. O fim do mundo! Só tem índio e onça. Não sei não…
Deixo Carlotinha entregue ao serviço. Despeço-me de Edmundo perguntando pela Santa. Responde-me:
— Não sei não, Agildo; foi parar no Mato Grosso. Dizem que é terra de muito ouro. Será que vão deixar ela voltar? O bispo pediu ajuda à empresa construtora da barragem. Viajou uma pessoa pra cuidar disso. O lugar é longe; quase no Pantanal. A previsão é um mês pra ir e voltar.
— Um mês? Quando chegar já acabou a Festa. Não podia ser mais depressa?
— Só vier de avião. Mas tem que consertar o campo de aviação, que é mato puro. O padre vai se reunir com o prefeito amanhã. Se não preparar o campo, a imagem só chega no outro mês.
Que adianta festa de padroeira sem a própria? Resolvo ir à casa do padre. Atravesso a praça da igreja. Roque de Maninho Soeiro conduz as vacas holandesas do patrão. Compridas, manchadas de preto, cada peito enorme guarda mais de dez litros de leite. É leite demais. Ao passar pelo beco das Machadas alguém chama. É Bira do Valdemar Viana, bom de bola da Rua de Cima. Pergunta-me para onde vou; respondo-lhe que vou à casa do padre. Bira provoca-me: “Fazer o quê, lá? Depois diz que não é filho do padre”. Defendo-me: Deixe de safadeza! Vou à casa do padre tratar assunto da igreja. Mas você só vai por interesse!…