Taguatinga, Titico e o galo garnisé
Por Astrogildo Miag*
Taguatinga completa cinquenta e sete anos. Muitos exaltam a Taguatinga “metrópole” e renegam a pecha de cidade de interior sob o argumento da grande população e desenvolvimento. Pois, Taguatinga ainda é uma cidade interiorana!
Como prova, informo que, todo santo dia, com chuva ou sem chuva, desperto ouvindo o canto de um galo garnisé no quintal de alguma casa da rua. O canto rouquenho e esganiçado rasga a madrugada a partir das três horas de todos os dias. Certamente, pelo volume do canto, é um animal pequeno; mas, enche de melodia as madrugadas frias do conjunto J da QNL 8.
A mesma quadra é, também, morada de Titico, cão de estimação da senhora Terezinha. Conheci poucos tão inteligentes quanto Titico. Às vezes, quando se atrasa nas andanças pelas ruas, encontra sua “residência” com as portas travadas. O que faz? Não tem voz humana, mas sabe se comunicar. Titico, caminhando paralelo, roça e vibra a cauda sobre a grade de proteção da residência. Produz um som característico e conhecido como se chamasse os “de casa”. E todos já sabem: Titico chegou e pede para entrar!
Titico conhece (de vista, é claro) os moradores da rua. Sua vizinha Inês saúda-o manhã cedo (Titico, você já está na rua?) e o contempla com um pão doce ao retornar da padaria. Ao avistá-la, de longe ainda, mesmo carregando o fardo de mais de dez anos de idade animal, Titico levanta-se faceiro e vai encontrar a vizinha ainda na metade do caminho. Ganha o doce que lhe é servido com uma observação reservada aos humanos, mas, também, a um animal inteligente…
— Você não esquece, hem?
Balançando a cauda confirma a observação da vizinha.
E são muitas as demonstrações dos ares interioranos de Taguatinga. Certo dia, na caminhada matinal ao lado da Chácara Onoyama, ouvimos o canto do anum, pássaro muito encontrado nas paragens nordestinas. Ao ouvir o belo canto, o cidadão desconhecido que cruzava em sentido contrário o calçadão parou-me e mostrou o braço…
— É o canto do anum branco. Fiquei todo arrepiado. Lembrei quando ainda era menino lá, em Santana, na Bahia, e ouvia o anum cantar no pé de aroeira.
Que demonstração de intimidade e carinho de alguém que nunca me vira; mas, se achou no direito — e eu reconheci — de parar um desconhecido para referir-se à intimidade da alma e lembrar a infância perdida. Quando tal seria possível se Taguatinga não respirasse ares interioranos?
São muitos os flagrantes de bucolismo; provam que a “cidade” pode ser grande e rica sem perder o calor humano. Entretanto, simplicidade não significa prostrar-se aos caprichos e ditames de outros, sejam pessoas, entidades ou à própria Administração do Distrito Federal. Neste ponto, infelizmente, a Taguatinga opulenta e rica fragiliza-se. É o ponto fraco.
A Constituição Federal veda ao Distrito Federal a divisão em municípios, principal característica dos Estados da Federação. Ora, se não pode subdividir-se em municípios não poderia crescer demasiadamente. Mas, assim não pensaram os governantes que trouxeram o inchaço populacional. O resultado é que, embora com problemas de município real, as antigas “satélites”, como Taguatinga, não têm autonomia política, não elegem prefeito e vereadores. Ostentam administradores regionais escolhidos pelos políticos e nomeados pelo Governador. E sendo nomeado pelo livre arbítrio pode ser demitido amanhã, ou hoje mesmo, se aquele governante assim deliberar. Temos, então, uma Taguatinga rica, dinâmica e enfraquecida politicamente, sem autonomia orçamentária e financeira, recebendo as “rebarbas” dos recursos prioritariamente aplicados em Brasília, núcleo do Distrito Federal.
Defendo o direito à discordância. O administrador regional de Taguatinga pode sentir-se ofendido. Os governadores podem declarar que fizeram, fazem e tudo farão por Taguatinga. Porém, ainda falta muito em termos de usufruto das benesses e investimentos públicos de modo a se aproximar da proporcionalidade da sua importância.
Mas, chega de referir-me às mazelas. Não quero ser ave de agouro na “cidade” onde vejo as peripécias de Titico e ouço o canto esganiçado do galo garnisé cortando a madrugada. Porém, obrigo-me a reconhecer a precária representação política de Taguatinga. Não comungo o ditado da “farinha pouca meu pirão primeiro”; mas, concordo que tem sido mais fácil meter a faca no boi (que é grande) que a unha na pulga, que é quase invisível. Ou seja, a maior parte das lideranças mata o boi na época das eleições para a Câmara Legislativa, mas não mata uma pulga no cotidiano normal da cidade. A comunidade parece estar acéfala politicamente. Sem pai, sem mãe…
Pra compensar, tenho a inteligência de Titico e o canto madrigal do galo garnisé. Deus tome conta de quem espera quieto as coisas melhorem. Quando? Só Ele sabe…
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*Astrogildo Miag ocupa a Cadeira nº 27 da Academia Taguatinguense de Letras. Membro da Câmara de Vereadores Comunitária de Taguatinga, CVCT/DF. Visite: astrogildomiag.com.br