O homem do sanitário
Vivia pelas ruas, de porta em porta; bate e espera. Se não aparecer alguém e estando aberta a porta, entra sem permissão, não sabendo estar cometendo crime de violação de domicílio, tipificado no Código Penal. Quando alguém o atende e pergunta-lhe o que quer, a resposta é automática: “Um dinheiro pra comprar pão, pois estou com fome e não comi nada hoje”. Ante a negativa, declina o verdadeiro objetivo da abordagem:
— Então deixa eu usar o sanitário.
Muitos o deixavam entrar, com pena. Afinal, apertado, na rua, sem lugar adequado, pedir para usar o sanitário (a privada ou a sentina, nomes antigos) é como implorar um copo d’água. Quem haveria de negar água, ainda mais a um senhor de certa idade? Pois, a pessoa de boa fé que fizesse a caridade sofreria as consequências. O dito cujo se trancava no banheiro e não se propunha sair durante todo o dia. Após tentativas infrutíferas, geralmente deliberavam arrombar a porta do reservado e grande era a surpresa: o homem dormia sentado no vaso sanitário. Dormir sentado no vaso era um transtorno obsessivo. Como era pobre e naquele tempo pobre não tinha direito a sanitário privativo em casa, a chamada privada, o homem saía em peregrinação por um momento de descanso.
Ficou conhecido. Quando apontava na rua, gritavam: “Lá vem o homem do sanitário. Fecha a porta!”. Logo, a voz suplicante anunciava… Ô de casa! Uma caridade por amor de Deus… Quem é, perguntavam. Um pobre largado da vida, e com três filhos pra criar, lamuriava-se. A dona de casa abre a porta. Pois não, senhor…
— Uma caridade. Nem que seja um pedaço de pão.
— Acabou.
— …de beiju.
— Acabou também.
— Um ovo.
— A galinha não pôs ainda.
— Então me dê um copo de água.
Como negar o copo com água? A mulher entrou em busca da água; o homem escorregou pelo corredor lateral direto ao sanitário. Entrou e fechou a porta. Ao sentar, murmurou… “Meu Deus, já estava cansado. Dois dias sem dormir…”.
A mulher retornou com a água, desculpando-se…
— Não está muito fria, não. Enchi o pote agora. — Olhou em volta. — Onde esse homem se meteu? Parece que arribou no mundo? Ei, tome a água!
Nem sinal do sedento e tudo volta ao normal. Volta ao trabalho, precisava terminar a costura de uma camisa. O tempo passa. Quase meio dia. A filha retorna da escola. Depois de toda a manhã no colégio, banheiros de uso coletivo e nem sempre em boas condições de higiene, precisava ir ao sanitário. Encontra a porta fechada. Empurra. Fechada mesmo. Volta. Muda a roupa, recolhe a farda ao guarda-roupa. Volta ao sanitário, empurra a porta. Continua fechada. Pergunta…
— Mãe, tem alguém no sanitário?
— Ninguém.
— A porta está trancada por dentro.
— Deve ter sido o vento; empurre com força.
— Mais força, só se derrubar. Por dentro fecha com ferrolho? Vento nenhum sabe trancar ferrolho. Não entrou ninguém aqui?
A mãe para, mira o telhado para se lembrar…
— Por aquela porta não entrou ninguém. Só um homem me pediu água. Vim buscar a água, mas não o encontrei mais.
A filha arregalou os olhos: — Mãe, era ele! O homem!
— Era homem mesmo, ora.
— Era o homem do sanitário!
— Não é possível!
Correram ao sanitário e bateram na porta: — Tem gente aí? — Sem resposta. O homem certamente dormia o segundo sono. Gritaram por socorro. A vizinhança atendeu: O que foi? O homem do sanitário! Se trancou aqui em casa.
— Vou chamar alguém pra arrombar a porta.
— Não vou deixar ninguém arrombar minha porta!
O drama continuou por um bom tempo. Ninguém tirava a razão da dona da casa, fechadura naquele tempo custava os olhos da cara. Mesmo só o ferrolho ainda sairia caro, pois, de tão careiro, o marceneiro quase metia a mão no bolso dos clientes.
O delegado é chamado a intervir. Visivelmente contrariado, desceu do veículo, armado e paramentado, acompanhado pelos dois soldados do destacamento policial.
— Só faltava essa! Com tanto bandido matando e assaltando a força policial foi chamada para arrombar porta de sanitário! Que lugar mais atrasado!
Com raiva, meteu o pé na porta, continuadamente, prestes a dilacerar a madeira. A dona da casa pedia calma:
— Devagar, delegado. Não precisa quebrar a porta toda, basta no lugar do ferrolho.
O delegado disse não admitir que paisano se intrometesse nas atividades policiais. Buscou adjutório dos dois soldados e colocaram a porta abaixo. Porta no chão, o mesmo espetáculo: o homem, sentado, traseiro tomando todo o assento do vaso, dormia e roncava indiferente ao barulho e aos passos destemidos da tropa militar.
— Levanta daí! Sanitário não é lugar pra dormir! Ainda mais na casa dos outros! Vai preso agora!
O coitado despertou do torpor. Abriu os olhos devagar… Assustou-se! Levantou-se agitado, já com as roupas nas mãos.
— Valei meu pai eterno! Que lugar é esse que não se consegue nem cochilar? Desse jeito vou morrer. Quem pode viver sem dormir? Já perdi a conta dos dias que não durmo! Agora que consegui um pouquinho vem esse povo todo como se eu fosse um criminoso!
— Você vai é preso! — tornava o delegado.
— Preso posso até ir, mas só depois que terminar meu cochilo. Agora, de jeito nenhum. Prefiro morrer!
O delegado enrijeceu os beiços, mordeu a língua de tanta raiva…
— Se estivesse sozinho você ia de qualquer jeito. Imagine estando com a força policial!
O homem não aceitava ordem nem ponderação. Só iria depois de saciar o sono. Os policiais nervosos. A dona da casa sem saber se livrava a casa do indesejado ou rogava pela vida do coitado. A filha, só de anágua e sutiã, aos berros, correu à rua afirmando não voltar para sentar no mesmo vaso usado pelo homem do sanitário. Fora, frente da casa, o povo aguardava o desfecho da agonia.
— Pega! Tira! Mata!
Os gritos determinaram o libelo. O delegado ordenou que segurassem os braços e as pernas do coitado. Seria retirado à força, sob pena de desmoralizar a polícia. Arrastaram no rumo da porta sob protesto de “não vou, não vou”. Vai, vai! — delirava a autoridade enquanto arrastavam o homem. De repente, no meio da contenda, um barulho seco, fogo de artifício ou de bala. Na rua, as pessoas esperaram a confirmação da suspeita. O corpo do homem amoleceu, perdeu as forças. O delegado viu a arma do soldado Araújo fora do coldre, no chão…
— Você matou o homem! Você matou o homem!
Araújo defendeu-se: — Eu não, delegado! Juro que não fui eu! Ele pegou a arma na minha cintura e puxou o gatilho. Juro que não fui eu!
— Foi você, sim! A responsabilidade é sua, não teve o devido cuidado com a arma que o Estado passou para as suas mãos.
— Mas não tive intenção, delegado! Não fui eu que puxei o gatilho!
— Vai ter que provar, todo mundo está vendo que a arma é sua! O tiro pegou bem na testa e a arma é sua!
— Mas, delegado…
— Nem mais nem menos. Em nome da segurança pública, em nome do Estado, está preso!
Ao soldado não restou alternativa senão oferecer os pulsos às algemas. Logo, saíam os dois policiais arrastando o corpo pelos braços, acompanhados pelo cabisbaixo Araújo, que enfrentaria a temida justiça militar em plena ditadura. Acabou. Ouve-se um plim-plim e a televisão anuncia a nova programação. Assusto-me. Uma voz chama:
— Nildo, Nildo… Está melhor? Foi ao banheiro? Conseguiu fazer?
Desnorteado, confuso, não entendi… Como? Como? E o homem do sanitário?
— Homem do sanitário? Você está sonhando? Quem deve ir ao sanitário é você mesmo, há três dias sem conseguir botar pra fora!…
Envergonhado, bati a mão espalmada no ventre ainda fofo, constipação intestinal que me acomete quando me excedo na bebida e na comida. Certamente, adormeci. Não fui ao banheiro nem terminei de assistir ao filme policial da programação da televisão, onde a polícia, no final, capturava e matava alguém — na minha percepção inconsciente, o homem do sanitário. Pior é que este homem era eu mesmo, precisando ir ao banheiro e morto de sono em decorrência da agonia intestinal.
Foi minha segunda morte. É sonhar demais…
E nós, para onde vamos?
Já iniciando o mês de setembro, a falta de chuvas, conhecida como “a seca”, continuará a caminhada avassaladora sobre o nordeste brasileiro. É tão certa como dois e dois são quatro. Todo ano, desde os tempos que a memória alcança, vem matar aos poucos a família nordestina. Meu primeiro livro, A Santa do Pau Oco, editado em 2003, tem como fio condutor a famigerada seca. Começa assim…
“A seca continuava comendo bicho e gente. Quase todos os barreiros e cacimbas já tinham secado. Os catingueiros fugiam para a beira do rio, acampando na sede do município. Comiam o que encontravam pela frente. O povo tinha medo. O comércio de cereais e alimentos fechava as portas; o risco de saque era grande. O prefeito pouco fazia, dizia não saber fazer chover…”
O que mudou objetivamente em relação à seca de 1890, 1940, 1980, 2013, 2014 e agora em 2015? Nada mudou. A situação permanece inalterada por conta da utilização da seca como instrumento de controle político. Nunca, em todos os tempos, teve tantos carros pipas cortando as estradas nordestinas “distribuindo” água. Antigamente, os caminhões eram velhos, caindo aos pedaços; hoje, são de última geração, novos e caros. Ou seja, o que se paga para distribuir água pra matar a sede agora compensa investimentos de grande monta. E pergunto: Mudou a compreensão das causas e as formas adequadas para combater o mal? Qual a diferença entre o tempo em que Dom Pedro II jurou vender as jóias da coroa, mas resolveria o problema da seca, e os tempos de hoje?
Não vejo diferença. O mal nunca foi resolvido e a falácia é a mesma. Só reproduzindo o que ouvi no meu tempo de Extensionista Rural na EMATERBA e o que li nos livros dos governos e dos especialistas, a forma de combater a seca seria possibilitar ao flagelado melhores condições para enfrentá-la. Ou seja, criar estrutura de convivência. Lembro-me que vários colegas de trabalho foram a Israel estudar as avançadas técnicas que possibilitavam produzir em pleno deserto, com precipitações pluviométricas (chuvas) abaixo do nordeste brasileiro. Foram, conheceram, voltaram, repassaram os conhecimentos, foram realizados seminários… Cumpriram a obrigação, mas, de concreto mesmo, pouco chegou ao nordestino flagelado. Continua dependendo dos carros pipas, das benesses de governos através dos cabos eleitorais.
Agora pergunto: E eles, para onde vão?
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As fotos foram obtidas em Remanso, BA.
São João de fogo morto…
É São João, das mais alegres festas nordestinas. Permite a participação plena de todos por nada exigir, apenas equiparar-se ao matuto, ou seja, apresentar-se de forma simples e bonita. A Festa mudou muito. Não cabe arguir se para melhor ou não; mas, difícil não recordar os folguedos, ainda mais nas cidades do interior nordestino. Como esquecer o pipocar dos fogos iluminando a noite e o fumaceiro cobrindo a cidade?
Famílias inteiras chegavam de Salvador, São Paulo e outros lugares distantes para festejar, como recomendava a música: “Vamos, vamos Joana, vamos na carreira, vamos pra fogueira festejar o São João…”.
Meninos trocavam os tostões por qualquer enfeite da festa. Mais tarde, receberiam dos pais alguns fogos para iluminar a noite, quantidade e qualidade proporcional às condições da família. Dinheiro era difícil. Eu costumava receber uma caixa de fósforos “elétricos” coloridos, chuvinha prateada e alguns traques, pequenas bombas no formato de palito, com recomendação de “muito cuidado pra não se queimar”. Os meninos misturavam-se na rua e produziam uma festa de pipocos e fumaça. Os mais velhos tocavam traques na mão, virando o rosto, e até colocavam bombas sob latas e penicos que voavam aos ares sob o impacto da explosão. Infelizmente, acidentes aconteciam, não raramente com gravidade.
Após, arribávamos em busca das fogueiras, símbolo maior do São João de antigamente. Quem não conhece a música “a fogueira está queimando em homenagem a São João”?
Em Remanso, minha terra, queimavam muitas fogueiras. A mais famosa era a de Zé Clementino, animada pela família e parentes da capital. Um festão! Comida e bebida farta animada por sanfonas, zabumbas e saxofones, todos esperando o momento da queima da fogueira.
Logo, as labaredas lambiam o tronco da árvore trazida de longe e enterrada em frente à casa. As pessoas ávidas para avançar as prendas amarradas aos galhos e desejando a “caixinha de segredo”, pequena embalagem recheada de dinheiro, sempre no galho mais alto. Era o sonho de todos. A pressão era tanta que muitas vezes não esperavam a fogueira queimar; era derrubada “crua” mesmo, como se falava. Os acostumados vestiam várias roupas molhadas para proteger do fogo e dos busca-pés, faziam carreira e tentavam derrubam a fogueira. Nem sempre conseguiam.
Quando a grande árvore corroída pelo fogo sinalizava cair, todos se preparavam, inclusive os tocadores de busca-pés, cuja função era afugentar os mais afoitos.
Logo, o fogaréu consumia o tronco e a fogueira arriava. Palmas, gritaria, foguetes e busca-pés! O povo disputava no braço as prendas nos galhos: sabonete, loção, macarrão, bolacha, cachaça e, principalmente, a caixinha do segredo. Os busca-pés faziam a festa, a fumaça turvava a noite, o povo gritava, caia, levantava e corria das fagulhas do bicho!
Aos poucos, a fogueira virava cinzas e morria. O local adquiria perfil esfumaçado de guerra, mas, para felicidade geral, entre os feridos todos se salvavam. E começava o forrozão temperado com muita fumaça e licor. Viva São João! Fogos dos mais diferentes cortavam os céus. Como tudo era novidade, os meninos diziam:
— Desse eu nunca tinha visto!
E hoje? O São João perdeu o perfil rural. Urbanizou-se. Foi ficando distante até esvanecer-se por trás do caminho e da vida de cada um. Virou fogo morto. Cinzas, como as fogueiras que animavam as noites frias do dia 23 de junho. Tudo tem seu tempo. É como diz o povo: Águas que vão não voltam…
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*Astrogildo Miag é Escritor. Autor de: A Santa do Pau Oco, O Purgatório de Eduardo, Memórias de um Coroinha, Era uma vez um comunista, O legado da loucura, Lampião, governador de Brasília e O homem que morreu cinco vezes.
Visite: astrogildomiag.com.br
Pelo 57º Aniversário de Taguatinga/DF
Taguatinga, Titico e o galo garnisé
Por Astrogildo Miag*
Taguatinga completa cinquenta e sete anos. Muitos exaltam a Taguatinga “metrópole” e renegam a pecha de cidade de interior sob o argumento da grande população e desenvolvimento. Pois, Taguatinga ainda é uma cidade interiorana!
Como prova, informo que, todo santo dia, com chuva ou sem chuva, desperto ouvindo o canto de um galo garnisé no quintal de alguma casa da rua. O canto rouquenho e esganiçado rasga a madrugada a partir das três horas de todos os dias. Certamente, pelo volume do canto, é um animal pequeno; mas, enche de melodia as madrugadas frias do conjunto J da QNL 8.
A mesma quadra é, também, morada de Titico, cão de estimação da senhora Terezinha. Conheci poucos tão inteligentes quanto Titico. Às vezes, quando se atrasa nas andanças pelas ruas, encontra sua “residência” com as portas travadas. O que faz? Não tem voz humana, mas sabe se comunicar. Titico, caminhando paralelo, roça e vibra a cauda sobre a grade de proteção da residência. Produz um som característico e conhecido como se chamasse os “de casa”. E todos já sabem: Titico chegou e pede para entrar!
Titico conhece (de vista, é claro) os moradores da rua. Sua vizinha Inês saúda-o manhã cedo (Titico, você já está na rua?) e o contempla com um pão doce ao retornar da padaria. Ao avistá-la, de longe ainda, mesmo carregando o fardo de mais de dez anos de idade animal, Titico levanta-se faceiro e vai encontrar a vizinha ainda na metade do caminho. Ganha o doce que lhe é servido com uma observação reservada aos humanos, mas, também, a um animal inteligente…
— Você não esquece, hem?
Balançando a cauda confirma a observação da vizinha.
E são muitas as demonstrações dos ares interioranos de Taguatinga. Certo dia, na caminhada matinal ao lado da Chácara Onoyama, ouvimos o canto do anum, pássaro muito encontrado nas paragens nordestinas. Ao ouvir o belo canto, o cidadão desconhecido que cruzava em sentido contrário o calçadão parou-me e mostrou o braço…
— É o canto do anum branco. Fiquei todo arrepiado. Lembrei quando ainda era menino lá, em Santana, na Bahia, e ouvia o anum cantar no pé de aroeira.
Que demonstração de intimidade e carinho de alguém que nunca me vira; mas, se achou no direito — e eu reconheci — de parar um desconhecido para referir-se à intimidade da alma e lembrar a infância perdida. Quando tal seria possível se Taguatinga não respirasse ares interioranos?
São muitos os flagrantes de bucolismo; provam que a “cidade” pode ser grande e rica sem perder o calor humano. Entretanto, simplicidade não significa prostrar-se aos caprichos e ditames de outros, sejam pessoas, entidades ou à própria Administração do Distrito Federal. Neste ponto, infelizmente, a Taguatinga opulenta e rica fragiliza-se. É o ponto fraco.
A Constituição Federal veda ao Distrito Federal a divisão em municípios, principal característica dos Estados da Federação. Ora, se não pode subdividir-se em municípios não poderia crescer demasiadamente. Mas, assim não pensaram os governantes que trouxeram o inchaço populacional. O resultado é que, embora com problemas de município real, as antigas “satélites”, como Taguatinga, não têm autonomia política, não elegem prefeito e vereadores. Ostentam administradores regionais escolhidos pelos políticos e nomeados pelo Governador. E sendo nomeado pelo livre arbítrio pode ser demitido amanhã, ou hoje mesmo, se aquele governante assim deliberar. Temos, então, uma Taguatinga rica, dinâmica e enfraquecida politicamente, sem autonomia orçamentária e financeira, recebendo as “rebarbas” dos recursos prioritariamente aplicados em Brasília, núcleo do Distrito Federal.
Defendo o direito à discordância. O administrador regional de Taguatinga pode sentir-se ofendido. Os governadores podem declarar que fizeram, fazem e tudo farão por Taguatinga. Porém, ainda falta muito em termos de usufruto das benesses e investimentos públicos de modo a se aproximar da proporcionalidade da sua importância.
Mas, chega de referir-me às mazelas. Não quero ser ave de agouro na “cidade” onde vejo as peripécias de Titico e ouço o canto esganiçado do galo garnisé cortando a madrugada. Porém, obrigo-me a reconhecer a precária representação política de Taguatinga. Não comungo o ditado da “farinha pouca meu pirão primeiro”; mas, concordo que tem sido mais fácil meter a faca no boi (que é grande) que a unha na pulga, que é quase invisível. Ou seja, a maior parte das lideranças mata o boi na época das eleições para a Câmara Legislativa, mas não mata uma pulga no cotidiano normal da cidade. A comunidade parece estar acéfala politicamente. Sem pai, sem mãe…
Pra compensar, tenho a inteligência de Titico e o canto madrigal do galo garnisé. Deus tome conta de quem espera quieto as coisas melhorem. Quando? Só Ele sabe…
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*Astrogildo Miag ocupa a Cadeira nº 27 da Academia Taguatinguense de Letras. Membro da Câmara de Vereadores Comunitária de Taguatinga, CVCT/DF. Visite: astrogildomiag.com.br
Capítulo II – A Promessa
Anoitecera. Após a sopa do jantar, penteei os cabelos e despedi-me rumo à igreja. A novena era dedicada aos artífices — cabeleireiros, marceneiros, alfaiates, sapateiros. Encontrei-me com Zelito, sapateiro, em roupa de linho branco. Carlotinha completava as duas garrafinhas, do vinho e da água. Repreendeu-me:
— Estava viajando? Nunca mais veio pra novena. Não teve nem coragem de avisar ao padre? — Estava doente, dona Carlota; ele não recebeu nenhum recado? Pergunte a ele, respondeu-me desinteressada. Indaguei se a novena fora bonita. Respondeu-me: — Não sei; estava rezando. Não vi se foi bonita ou não. — Pedia perdão a Deus, dona Carlota? — Perdão de quê? Uma pessoa viúva, com minha idade, morando sozinha, que pecado pode cometer? Tá me achando com cara de quê? Vou dizer ao padre suas pilhérias…
Saí da sacristia. Deparei-me com a procissão dos artífices, todos de branco, velas acesas. À frente, meu padrinho Mindu, marceneiro. Parei a apreciar aqueles homens de labutar grosseiro, que, em louvor à mãe de Deus, carregavam flores. Entoaram o hino da Virgem: “Salve ó virgem mãe piedosa. Salve estrela formosa do mar…”
O grupo avançava à entrada principal. Carregavam andor feito por eles mesmos. No centro, onde deveria estar a imagem, o vazio. A imagem ainda não voltara do Mato Grosso. Assustei-me ante a possibilidade da santa não estar presente no dia da festa. Pensei alto, chamando a atenção de quem passava. Carlotinha perguntou-me:
— Parece que falava em Nossa Senhora. Sabe de alguma coisa?
— Ia perguntar à senhora se a santa chegou ou não.
— Ainda não; o padre está sem dormir. As filhas do Apostolado rezam o dia todo a Salve Rainha só até o mostrai Jesus… Aí completam: mostrai a imagem da virgem do Rosário.
— Dona Carlota, a imagem vai aparecer, tenho certeza!
— Também acho. Ela foi para o povo sentir falta. E que falta! É como se todos perdessem a mãe e o pai na véspera de Natal.
— A senhora viu a procissão dos artífices carregando o andor vazio pra mostrar que ninguém preenche o lugar dela?
O padre chegava à igreja. Carlotinha deseja boa noite; o vigário responde solícito: — Seria a melhor noite do mundo se recebêssemos uma mensagem da mãe do céu. — Virou-se a mim: — Já não quer ser coroinha? Três dias sem aparecer…
— É o que mais quero, padre. Estava doente. Minha mãe não disse nada? Mandei recado ao senhor. Ainda estou adoentado.
O padre chamou-nos. Perguntei-lhe pela santa:
— Nem sinal. O pior é que o telégrafo não recebe nem envia mensagem. Seu Sátiro do telégrafo viajou no lombo de burro pra correr a linha até Juazeiro.
— Vai demorar quanto tempo, padre?
— Dez dias andando dia e noite, me disse. Espero que descubra o defeito para, pelo menos, enviar e receber mensagem do Bispo. — O padre vai ao guarda-roupa, escolhe os paramentos… — De hoje em diante só se celebra de preto, em sinal de luto.
— Agora, padre, a santa imagem de Nossa Senhora foi fazer o quê, em Salvador? Por que não mandaram consertar antes?
— Consertar? Que palavras duras. A imagem santa foi a Salvador para restauração.
— Restaurar não é consertar?
— Mas não são os termos.
— Certo. Quem mandou pra restauração?
— Dona Lúcia Sobrado pediu ao chefe da barragem, que encaminhou ao melhor restaurador com todas as despesas pagas.
— O erro foi esse. De graça nada presta.
— Não entendi aonde quer chegar.
— A lugar nenhum. Já cheguei e estou aqui pra ajudar a novena.
A procissão dos artífices entrou pela porta principal. Velas acesas. O andor vazio intrigou a muitos; mais ainda Januária, apelidada Januária doida:
— Nunca vi procissão com andor vazio. É pra não carregar peso? Se essa moda pega…
Os artífices continuaram a marcha. O padre pediu um minuto de silêncio pela alma de Anita, dona de barraca de mingau que acabara de ser assassinada. Um minuto de silêncio pelo aparecimento da santa…
Januária doida, como era chamada, reprovou:
— Desse jeito não vai ter novena. Não basta procissão com andor sem santo? Daqui a pouco, mais um minuto de silêncio pelo filho do governador que morreu do coração, em Brasília. Outro minuto pelo cantor que está com câncer…
A marcha dos artífices prosseguia. Zé Romão, que segurava um dos braços do andor, escorregou. Uma vela do andor foi lançada ao altar, ateando fogo na toalha de linho. Tudo rápido. O padre gritou, avexado: Não deixem o fogo tomar conta do altar!
Alice Carneiro tentou abafar o fogo que já queimava o missal. O padre, paralisado ao ver o missal ser destruído. Gino Muniz, com sua voz de trombone, implorou: Tragam água! Tragam água!…
— Aqui não tem água, não!
— Nem de beber? Uma igreja não ter nem um pouco de água? O padre não sente sede?
— Já vem abastecido. Nunca me pediu água. — respondeu Carlotinha.
Os artífices tentaram apagar o fogo com as mãos. Alice Carneiro implorou:
— “Minha Nossa” Senhora, ajuda aqui! Remanso não tem Corpo de Bombeiros, a igreja vai pegar fogo!
Everaldo gritou por água:
— Cadê a água? Será que nessa Casa não tem água?
Januária doida não gostou:
— Mais respeito com a casa de Deus! Precisamos é rezar pra que Ele apague o fogo. Ele quer uma demonstração de fé. Vamos rezar o Credo: Creio em Deus pai…
Todos aderiram ao Credo. O padre foi carregado desmaiado à sacristia. Everaldo continuava clamando por água:
— Reza é forte, mas sem água não apaga fogo. Um pouco de água pelo amor de Deus!
Uma voz respondeu: — Água tem e muita.
— Aonde? — perguntou Everaldo.
— Água benta. Nunca falta água benta em uma igreja.
— Não vou jogar água benta no fogo.
— Então deixe a igreja queimar. Aí, nem igreja nem água benta.
— Derramar água benta é pecado.
— Fora a água benta, ainda tem muita água.
— Aonde?
— Na pia batismal.
— Aí é pecado dos grandes. Usar a água santa do batismo, que tira os pecados, pra apagar fogo?
— Então deixe a igreja pegar fogo. Aí nem pia batismal nem igreja.
O fogo não diminuía. Alguns já fugiam com medo de uma catástrofe: Saiu no rádio uma igreja pegando fogo. Morreram mais de cem. Vamos embora!
Uma voz clama. Era Januária:
— É castigo! O fogo veio em um andor vazio. Só existe uma forma de apagar: Com oração e água da pia batismal. Uma lata d’água apaga esse fogaréu. Peguem a água! Aproveito para lembrar que a Santa Mãe ainda continua longe. Quero fazer uma oferta ao Pai: Prometo, perante esse fogo, trocar minha vida pelo retorno da nossa padroeira. Dou minha vida pela volta da santa! É minha promessa.
Por conta da agonia do momento ninguém analisou as palavras e a promessa de Januária, a doida. Após, a impressão foi que os ânimos se acalmaram. Everaldo trouxe, ele mesmo, uma lata d’água da pia batismal e apagou o fogo. O padre voltou a si. Alice Carneiro sugeriu que o mesmo fosse pra casa, descansar. O Reverendo não aceitou. Caminhou ao altar, falou em voz alta:
— Queridos fiéis, precisamos ter fé. Preparemos o coração para receber a imagem da nossa padroeira, que estará aqui, com fé em Cristo, antes do último dia de novena. Vamos rezar, afugentar os espíritos malignos. Esta será a última Festa. No próximo ano, quem tiver a graça, verá a Festa na cidade nova que está sendo construída. A Virgem Maria é bondosa, ama o povo desta terra e estará aqui no dia da despedida!
A Promessa, capítulo 1
Capítulo I
Viu a pouca vergonha?
Esta história desenrola-se na cidade perdida no fundo da minha alma, na acepção mesma das palavras. Remanso, no Médio São Francisco da Bahia, onde nasci, já não existe, tragada pelas águas da Barragem de Sobradinho nos idos da década de setenta.
Era dia dedicado aos funcionários públicos. Correram Livro de Ouro, fizeram bingo, rifa, jantar dançante. Conseguiram dinheiro suficiente para doação de dez bancos de cedro. A entrega solene seria na novena, logo mais. Os bancos na igreja desde cedo, portas abertas à visitação pública. O padre achou um primor:
— Nossa Senhora do Rosário agradecerá com muitas graças a doação.
Edmundo dos Correios, representando os funcionários públicos, conduzia os visitantes aos bancos. Eu próprio fui conferir: — Boa tarde, Agildo. Como vai seu pai? Esses dias vai ter muito trabalho, graças a Deus! Eu mesmo vou lá cortar meu cabelo. Pode entrar, você é de casa. Conhece a igreja mais do eu.
— Que nada, seu Edmundo, o senhor faz parte do corpo místico da igreja. É no mínimo uma parte do braço direito. Eu não sou nem um pedaço do braço esquerdo.
— Gostaria de ter um filho igual a você. Sabe se comportar e conhece o catecismo como poucos. Remanso precisa de um filho padre. Estou achando que vai ser você. Deus o conserve.
Agradeci. Olhei os bancos novos, bonitos e envernizados. Mostravam que o marceneiro Doca caprichara no serviço. Ainda lavrara uma mensagem na própria madeira: “Oferta dos funcionários públicos a Nossa Senhora do Rosário”. Fiz menção de sentar-me; fui repreendido por dona Carlota: “Não sente, não; o padre só vai benzer de noite”. Obedeci.
Os pássaros voavam indiferentes. Churés, primos de pardais, sentavam na cabeça de Santo Antônio. Cantavam desrespeitosamente a cantiga bonita que Deus lhes dera. Não satisfeitos, voavam e sentavam no braço direito da imagem de Cristo segurando o globo terrestre. Faziam safadeza ali mesmo, no ato sexual mais natural. Após, batiam as asas, arrepiavam as penas e relaxavam para recuperar as forças. Voavam os dois, lado a lado.
Os altares mostravam pequenas manchas provocadas pelos pássaros. Sujavam tudo de cocô, trabalho para Carlotinha. Diariamente limpava a igreja, como naquele momento. Não aguento mais limpar tanta bosta de passarinho, disse enquanto descansava o balde com água. Tem churé demais! Cagam tudo! O padre não quer que mate. Por mim, jogava veneno e matava. Matar é pecado, dona Carlota, disse-lhe.
— Pecado é o que eles fazem.
— São inocentes, não têm juízo.
— Você é quem diz. Parece que fazem as coisas olhando pra gente. Não viu a pouca vergonha? Os dois em cima da cabeça da imagem de Jesus fazendo?
— Dona Carlota, foi Deus quem criou os pássaros e mandou que se reproduzissem. Jogar veneno seria pecado.
— Não é você que limpa. Já cagaram até na minha cabeça. Tinha que diminuir a quantidade de passarinhos.
— Não é cheio de coruja no sótão? Quem deveria se encarregar de matar churé era coruja. Animal contra animal não é pecado.
— Coruja só sai de noite. De noite os churés estão dormindo, ninguém sabe aonde.
— Então, dona Carlota, Deus quer que os churés fiquem aqui na igreja.
Caminho à saída. A imagem da padroeira não está no altar. Pergunto: Dona Carlota, a imagem de Nossa Senhora já chegou?
— Não sei; passei na casa do padre pra saber. Ele estava tão triste que resolvi não perguntar.
— Será que vai encontrar o caminho de volta, longe como está? A santa é milagrosa, mas esse Mato Grosso é longe. É terra desbravada pelos bandeirantes. O fim do mundo! Só tem índio e onça. Não sei não…
Deixo Carlotinha entregue ao serviço. Despeço-me de Edmundo perguntando pela Santa. Responde-me:
— Não sei não, Agildo; foi parar no Mato Grosso. Dizem que é terra de muito ouro. Será que vão deixar ela voltar? O bispo pediu ajuda à empresa construtora da barragem. Viajou uma pessoa pra cuidar disso. O lugar é longe; quase no Pantanal. A previsão é um mês pra ir e voltar.
— Um mês? Quando chegar já acabou a Festa. Não podia ser mais depressa?
— Só vier de avião. Mas tem que consertar o campo de aviação, que é mato puro. O padre vai se reunir com o prefeito amanhã. Se não preparar o campo, a imagem só chega no outro mês.
Que adianta festa de padroeira sem a própria? Resolvo ir à casa do padre. Atravesso a praça da igreja. Roque de Maninho Soeiro conduz as vacas holandesas do patrão. Compridas, manchadas de preto, cada peito enorme guarda mais de dez litros de leite. É leite demais. Ao passar pelo beco das Machadas alguém chama. É Bira do Valdemar Viana, bom de bola da Rua de Cima. Pergunta-me para onde vou; respondo-lhe que vou à casa do padre. Bira provoca-me: “Fazer o quê, lá? Depois diz que não é filho do padre”. Defendo-me: Deixe de safadeza! Vou à casa do padre tratar assunto da igreja. Mas você só vai por interesse!…